Seguramente o cinemão americano fez comedinhas tão bobas quanto esta aqui nos anos 60. Mas eu duvido seriamente se alguma delas consegue ser ainda mais boba do que The Glass Bottom Boat, no Brasil A Espiã de Calcinhas de Renda.
E digo isso porque sou fã de carteirinha da estrela do filme, Doris Day, aquela absoluta gracinha. Foi na condição de fã de carteirinha dela que me dispus a rever o filme para escrever um comentário para o site. Sim, rever: tínhamos visto em 2005, quando comprei a caixa Coleção Doris Day Volume 2, com este filme e mais Já Fomos Tão Felizes/Please Don’t Eat the Daisies (1959) e A Mais Querida do Mundo/Billy Rose’s Jumbo (1962).
Com uns 20 minutos de filme, eu me sentia um tanto envergonhado diante de tanta bobagem. Mas tem Doris Day, tem uma ou outra boa piada, tem até umas coisas divertidas, e eu tenho estômago forte para comedinhas bobas – muito mais do que para seriedades papo-cabeça metidas a besta –, e além do mais estava numa das noites sem álcool e insones, e então fui indo até o fim. Cheguei a pensar em nem escrever sobre o filme, mas, diabo, tenho um site sobre filmes!
O personagem de Doris Day usa como maiô uma cauda de sereia
The Glass Bottom Boat é dirigido por Frank Tashlin (1913-1972), e Frank Tashlin merece respeito. Foi o diretor de várias das boas comédias com Jerry Lewis. Diz dele o mestre Jean Tulard: “Foi um excelente animador dos desenhos da Warner (Pernalonga) e um notável gagman para comediantes como Bob Hope e Red Skelton. Sua obra traz a marca dessas duas experiências anteriores. Tashlin criou um estilo moderno, muito admirado por Godard, e redobrou as gags mais extravagantes e mais ousadas (as tampas das garrafas de leite saltam diante da passagem de Jayne Mansfield).”
Este filme aqui foi lançado em 1966, e é um reflexo claro, óbvio, de seu tempo, de seu momento: fala de Guerra Fria e corrida espacial; de uma certa maneira, é uma gozação com os filmes de James Bond – e tem até uma pitada de Meu Tio, o grande clássico de Jacques Tati lançado oito anos antes.
A narrativa começa na Ilha Catalina, lugar próximo a Los Angeles, destino popular de milhares e milhares de turistas. O comandante Axel Nordstrom (Arthur Godfrey) é o dono e o operador de um barco de turismo cujo fundo é de vidro, de tal forma que os turistas possam observar o belíssimo fundo do mar. (Daí o título original do filme, claro, The Glass Bottom Boat.)
Por rádio, o comandante Nordstrom avisa sua filha Jennifer o melhor momento de ela mergulhar e passar por baixo do barco, vestindo uma cauda de sereia, para absoluto júbilo da turistada.
Neste momento da sequência inicial do filme, Jennifer (o papel de Doris Day, é claro) mergulha – mas não consegue nadar até embaixo do barco do pai, porque a cauda de sereia que ela veste é fisgada pelo anzol de um sujeito que está por ali, numa bela lancha – Bruce Templeton, o papel de Rod Taylor, o tremendo canastrão de Os Pássaros, de Hitchcock.
Jennifer consegue se despir da cauda de sereia, e nada até a lancha do desconhecido. Berra, furiosa, para que ele devolva seu traje de banho. O diálogo é gostoso:
Ela: – “Ei! O que diabo você acha que está fazendo?”
Ele: – “Você está falando comigo?”
Ela: – “Sim, estou falando com você! Isso aí que está no seu anzol é o meu maiô.”
Ele: – “Ah, desculpe… É um maiô engraçado.”
Ela: – “É a minha cauda de sereia. Pode por favor jogá-la de volta para mim?”
Ele: – “Vai ser difícil. Está tudo enrolado. Por que você não sobe aqui no barco enquanto eu desenrolo para você?”
Ela: – “Bem, isso seria um pouco difícil também, já que eu não tenho nada na parte de baixo do biquíni!”
É um dos axiomas das comedinhas românticas: mocinha e mocinho se conhecem em situação embaraçosa, odeiam-se profundamente. Aposta certa: vão terminar a história juntos.
A trama não tem pé nem cabeça, é a coisa mais doida que se pode imaginar
Depois dessa sequência que funciona assim como um intróito, temos os créditos iniciais, belos créditos, com grafismo esperto, inteligente, como se usava muito naquela época (basta lembrar, por exemplo, a série A Pantera Cor de Rosa).
Ao fim dos créditos, Jennifer – que, veremos, é viúva – está começando a trabalhar numa grande empresa de tecnologia de ponta na área aeroespecial. A empresa acaba de inventar um sistema que cria a gravidade zero, e que será absolutamente indispensável para a Nasa, a agência espacial americana. O dono da empresa, que é também um gênio da física, da matemática, o autor do sistema, vem a ser exatamente Bruce Templeton.
Quando os dois se reencontram na empresa, há um delicioso diálogo, bem digno do diretor que fez as tampas das garrafas de leite saltarem diante da passagem da peitudérrima Jayne Mansfield:
Ele: – “Ei! Você é a sereia!”
Ela (furiosíssima): – “Sim, eu sou a sereia!”
Ele: – “Não reconheci você vestida”.
Jennifer, a essa altura, ainda não sabe que aquele sujeito é o patrão, o dono da grande empresa.
Bem. Para simplificar, é o seguinte: o encarregado da segurança da empresa, um doido, Homer Cripps (Paul Lynde), passará a desconfiar que Jennifer é uma espiã russa atrás da fórmula secreta que Bruce Templeton inventou para criar a situação de ausência de gravidade. O sócio de Bruce, Zack (Dick Martin), também passará a acreditar nisso. Surgirão na história um espião russo de verdade, um general do Pentágono (Edward Andrews), um técnico de som trapalhão que trabalha para o espião russo (Dom DeLuise), um suspeitíssimo agente da CIA (Eric Fleming).
A trama é o mais autêntico rock do roteirista doido – os fatos históricos segundo a interpretação do crioulo do samba de Stanislau Ponte Preta são mais lógicos e factíveis do que a de autoria desse Everett Freeman.
Uma sequência deliciosa: o mocinho vê Doris Day como a espiã Mata Hari
Mas Frank Tashlin é Frank Tashlin, e então há, no mínimo, no mínimo, uma sequência maravilhosa. É quando Bruce, com os ouvidos bombardeados pelas pessoas próximas garantindo que Jennifer é, sem dúvida alguma, uma espiã sovietiskaia, olha para a moça que, para sua surpresa, atendeu ao convite e chegou à casa dele, aparentemente disposta a passar a noite, e a vê transformada em Mata Hari – a imagem marcante que estaria nos cartazes do filme.
É uma delícia.
Citei mais acima Meu Tio, o clássico de Jacques Tati. A semelhança com o filme francês vem por causa dos gadgets, os aparelhinhos, as engenhocas modernas que povoam as duas histórias. Em Meu Tio, as engenhocas modernas da casa da irmã de Monsieur Hulot são parte fundamental da trama. Aqui, são para demonstrar a engenhosidade do personagem de Bruce Templeton, um cientista-inventor da nova era.
O robôzinho que faz lembrar um cachorro e limpa a cozinha é bem engraçado, em especial quando agarra a sandália de Jennifer. Já as sequências em que o filme vira literalmente pastelão são embaraçosamente ridículas.
Jean Tulard arrasa com o filme, Leonard Maltin elogia
Bem, opinião é opinião, cada um tem a sua. Sou, repito, fã de carteirinha de Doris Day – tanto a cantora quanto a atriz, tanto a atriz dramática (Ama-me ou Esquece-me, 1955, A Teia de Renda Negra, 1960) quanto a atriz das comedinhas românticas (Confidências à Meia-Noite, Já Fomos Tão Felizes, os dois de 1960), tanto a crooner de jazz com a orquestra de Les Brown nos anos 1940 quanto a cantora de sucessos pop, bossa nova e latinices dos anos 1960.
Já o mestre Jean Tulard detesta Doris Day. Diz ele, na continuação de seu verbete sobre Frank Tashlin, cujo início transcrevi lá em cima:
“E por que razão sua obra parece um tanto decepcionante atualmente? Podem-se salvar seus dois filmes – excelentes – com Jayne Mansfield (Sabes o que Quero e Em Busca de um Homem), dois ou três Jerry Lewis (como por exemplo o tão elogiado Artistas e Modelos, sobre a influência das histórias em quadrinhos), e isso é tudo. Esse bom especialista em gags foi vítima de seus atores: Jerry Lewis (o catastrófico O Rei dos Mágicos) e a atroz Doris Day (A Espiã de Calcinhas de Renda e Capricho).”
E, fã de Blake Edwards, Jean Tulard conclui: “Simplesmente não teve a sorte de encontrar um Peter Sellers, igualando-se assim a Blake Edwards”.
Cada um tem sua opinião. Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4: “Nonsense de Day acima da média, com a viúva Doris contratada por cientista Taylor como sua biógrafa. Ele tenta seduzi-la; els é confundida com uma espiã russa. Godfrey é o pai de Day, comandante do veículo do título. Cheio do pastelão que é a marca registrada de Tashlin.”
O filme foi bem sucedido nas bilheterias, segundo o livro The MGM Story: “Mais dólares do que sentido: The Glass Bottom Boat arrecadou quase US$ 5 milhões só nos cinemas americanos, graças aos tipos excêntricos e às situações doidas e à direção rápida de Frank Tashlin – e, claro, à popularidade durável de Doris Day.”
A trama do filme é perfeitamente idiota, é bem verdade. Mas, lá pelas tantas, Doris Day canta “Soft as the Starlight” – e aí esse filme bobo se redime, e nem parece assim tão bobo.
Anotação em outubro de 2014
A Espiã de Calcinhas de Renda/The Glass Bottom Boat
De Frank Tashlin, EUA, 1966
Com Doris Day (Jennifer Nelson), Rod Taylor (Bruce Templeton),
e Arthur Godfrey (Axel Nordstrom), John McGiver (Ralph Goodwin), Paul Lynde (Homer Cripps), Edward Andrews (General Wallace Bleecker), Eric Fleming (Edgar Hill), Dom De Luise (Julius Pritter), Dick Martin (Zack Molloy), Elisabeth Fraser (Nina Bailey), George Tobias (Mr. Fenimore), Alice Pearce (Mrs. Fenimore), Ellen Corby (Anna Miller), Robert Vaughn (Napoleon Solo)
Argumento e Roteiro Everett Freeman
Fotografia Leon Shamroy
Música Frank De Vol
Montagem John McSweeney Jr.
Produção Metro-Goldwyn-Mayer, Arwin Productions, Reame Productions, Euterpe. DVD Warner.
Cor, 110 min
R, *1/2
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