Martin Scorsese viu On the Waterfront (no Brasil, Sindicato de Ladrões) quando o filme estreou, em 1954. Tinha então 12 anos, e viu o filme no Lowe’s Commodore, no número 109 da Segunda Avenida, entre as ruas 6th e 7th East. Era um baita cinemão, com 2.830 lugares. O garotinho Martin Marcantonio Luciano Scorsese, nascido no Queens e criado ali pertinho, na Little Italy, Sul de Manhattan, apaixonou-se perdidamente pelo filme.
Quando Scorsese estava com 24 anos, e estudava cinema na New York University, em 1966, Elia Kazan deu uma palestra na escola, e um aluno perguntou ao veterano diretor o que ele faria se pudesse começar de novo a carreira.
Em seu documentário Uma Carta para Elia, co-escrito e co-dirigido com Kent Jones, Scorsese não comenta sobre a pergunta feita pelo seu colega, mas eu posso dizer aqui que é uma pergunta inteligente, esperta, e também safada, provocativa, levando-se em consideração a história de vida de Elia Kazan.
Não se sabe se Kazan fez algum esforço para ignorar a provocação do petulante estudantezinho, mas o que Scorsese diz é que a resposta foi: “Eu começaria trabalhando na sala de montagem”.
Famoso no teatro, Kazan já começou no cinema como diretor
Uma resposta puramente técnica, instrutiva, perfeita para uma palestra de diretor consagrado diante de uma platéia de estudantes de cinema. A sala de montagem está para quem quer fazer cinema assim como as lições de anatomia com um corpo humano estão para os estudantes de medicina, ou a cobertura de um caso policial ou um acidente de trânsito está para um repórter iniciante.
É ali, na sala de montagem, que se dá a forma ao filme. Não é à toa que alguns dos diretores mais perfeccionistas, que mais dominam o artesanato cinematográfico – David Lean, Robert Wise – começaram como montadores. Nem é à toa que Bob Fosse tenha mostrado seu alter-ego, o coreógrafo e diretor Joe Gideon, dedicando boa parte de seu tempo à sala de montagem.
Elia Kazan – conforme mostra o documentário de Scorsese – já começou no cinema como diretor. Primeiro foi ator de teatro em Nova York, no início dos anos 1930, e chegou a trabalhar como ator em alguns filmes. Seu talento o levou rapidamente a ser um dos mais respeitados diretores do teatrão de Nova York. Dirigiu as primeiras produções na Broadway de duas das mais famosas e respeitadas obras da dramaturgia americana, Death of a Salesman, aqui A Morte de um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller, e A Streetcar Named Desire, de Tennessee Williams, no Brasil ora traduzido como Um Bonde Chamado Desejo, ora como Uma Rua Chamada Pecado.
Um dos maiores diretores de teatro de Nova York, um dos fundadores do mais que lendário Actors Studio, a escola de interpretação que formou Marlon Brando, Paul Newman, James Dean, Al Pacino e tantos mais. Elia Kazan – nascido em 1909 em Constantinopla, hoje Istambul, filho de gregos que emigraram para os Estados Unidos – já era um nome respeitadíssimo quando foi levado para Hollywood pela 20th Century Fox.
Sete filmes dele tiveram 27 indicações ao Oscar
Estreou como diretor em 1945, com A Tree Grows in Brooklyn, no Brasil Laços Humanos – um drama realista sobre o rito de passagem para a adolescência de uma garotinha pobre no início do século XX. O primeiro filme de Kazan como diretor teve duas indicações ao Oscar – melhor roteiro e melhor ator coadjuvante para James Dunn, e este último levou o prêmio.
Em 1947, lançou três filmes: O Justiceiro/Boomerang!, Mar Verde/The Sea of Grass e A Luz é para Todos/Gentleman’s Agreement. Um noir sobre a luta de um promotor para provar a inocência de um homem acusado de um crime grave, um western com o casal nota 1.000 Spencer Tracy-Katharine Hepburn, um extraordinário estudo sobre o anti-semitismo entre classe média teoricamente liberal, avançada, de Nova York, com uma fantástica interpretação de Gregory Peck. Tudo em um único ano.
Seguiram-se O que a Carne Herda/Pinky (1949), Pânico nas Ruas/Panic in the Streets (1950) e Uma Rua Chamada Pecado/A Streetcar Named Desire (1951). O primeiro é sobre racismo, um dos pioneiros a enfrentar de frente essa horrorosa chaga – a história de uma moça de pele clara que esconde que a avó é negra. O segundo, em tom que faz lembrar o neo-realismo italiano, tem a imensa maior parte das sequências filmada nas ruas de Nova Orleans, assolada por uma doença contagiosa. O terceiro é a filmagem da peça que ele havia dirigido na Broadway, com Marlon Brando como Stanley e Vivien Leigh como Blanche.
O Justiceiro teve indicação ao Oscar de melhor roteiro. A Luz é Para Todos teve oito indicações e levou os Oscar de melhor filme, melhor direção e melhor atriz coadjuvante para Celeste Holm.
O que a Carne Herda teve três indicações ao Oscar. Pânico nas Ruas teve apenas uma, de melhor roteiro, e levou o prêmio.
A Streetcar Named Desire teve 12 indicações ao prêmio da Academia, e levou 4: atriz para Vivien Leigh, ator coadjuvante para Karl Malden, atriz coadjuvante para Kim Hunter, direção de arte.
Faz-se necessário um balanço. Como é mesmo? Sete filmes entre 1945 e 1951. Com sete filmes, 27 indicações ao Oscar, das quais nove transformaram-se em prêmios.
Cacete.
Aí aconteceu uma coisa, como diz Scorsese em seu documentário. “And then something happened”.
Um depoimento pessoal e intransferível de Scorsese
Uma Carta para Elia é um documentário bem curto (apenas 60 minutos; a rigor, é um média-metragem), simples, direto e absolutamente pessoal. Embora a direção e o roteiro sejam assinados pela dupla Martin Scorsese e Kent Jones, a narração é feita por Scorsese. Há diversas tomadas dele, de pé, encostado em uma mesa de trabalho, olhando diretamente para a câmara e dando seu depoimento, sempre em primeira pessoa.
Não é exatamente um documentário sobre a vida e a carreira de Elia Kazan: é de fato uma carta, como diz seu título, uma carta pessoal de Martin Scorsese a Elia Kazan. Uma visão extremamente pessoal de um sujeito que não apenas é um dos diretores mais consagrados e respeitados do cinema americano nos últimos 50 anos como também um dos maiores estudiosos do cinema, a respeito da obra de um cineasta por quem tem profunda admiração, desde quando era criancinha na Little Italy e refugiava-se deste insensato mundo ora numa igreja, ora nos grandes cinemas, e, desde garotinho, babou pelos filmes do mestre que agora homenageia.
Claro: A Letter to Elia traz diversos trechos dos filmes de Kazan, trechos de entrevistas dele, em diversas fases da longa vida (ele morreu em 2003, aos 94 anos), fotos dele ao longo das décadas. Tudo o que um bom documentário tem que ter. Mas o fio condutor é sempre a narração de Scorsese, seja com a voz em off, seja nas tomadas sempre daquela mesma maneira que descrevi, ele de pé em seu escritório, encostado à mesa de trabalho, falando diretamente para a câmara.
E a narração de Scorsese é personalíssima. Não é propriamente um estudioso, um scholar, discorrendo sobre a obra de um artista – embora Scorsese seja um grande estudioso, um scholar como poucos. É um homem dando seu depoimento pessoal e intransferível sobre sua visão a respeito do artista que admira e sua obra.
O documentário foca em especial quatro filmes do diretor
Vemos sequências e fotos de diversos dos filmes de Kazan – um autor, na verdade, de poucas obras: 19 títulos, ao longo dos 31 anos decorridos entre 1945, o ano de Laços Humanos/A Tree Grows in Brooklyn, e 1976, quando fez seu canto do cisne, O Grande Magnata/The Great Tycoon, adaptação do romance inspirado na vida do todo-poderoso produtor Irving Thalberg, que F. Scott Fitzgerald deixou inacabado ao morrer prematurissimamente em 1940, aos 44 anos de idade.
Mas é tudo uma escolha pessoal de Martin Scorsese. E então não me lembro de ter visto, nos 60 minutos de A Letter to Elia, uma foto sequer de Marlon Brando no papel de Emiliano Zapata, no filme Viva Zapata!, lançado em 1952, depois que aquela tal coisa tinha acontecido. É praticamente certo que Scorsese não tem grande amor por Viva Zapata!, um filme que vi em 1966 e de que tenho muito boas lembranças.
(Se a memória não me falha, no final de Viva Zapata! Kazan aborda o fascinante tema da grande questão que existe quando os revolucionários chegam ao poder. Tudo bem: derrubou-se o governo, estamos no poder – e agora, o que fazer? Zapata, pelo que lembro, não tinha qualquer aptidão para virar um Fidel Castro, revolucionário quando jovem, depois ditador que não quer abandonar jamais o poder, por mais caquético que estejam ele e seu regime.)
A Letter to Elia mostra, eu dizia, trechos e/ou fotos de vários dos 19 filmes de Kazan, mas concentra-se mais em quatro deles: o já citado Sindicato de Ladrões/On the Waterfront (1954), Vidas Amargas/East of Eden (1955), Rio Violento/Wild River (1960) e, sobretudo, America, America, no Brasil Terra do Sonho Distante (1963).
O documentário abre com sequências de America America. Mais tarde se dirá que este era o filme predileto de Kazan, seu filme de que mais gostava, e que é também o seu filme mais pessoal. America America narra a história de um tio de Kazan e sua épica e desesperada luta para imigrar da Anatólia natal para o país dos sonhos, da esperança.
E Scorsese insiste em dizer e repetir que a história de Kazan é muito parecida com a sua própria história. A família de Kazan emigrou do velho mundo em busca da terra do sonho distante assim como os pais do próprio Scorsese imigraram da Itália natal. Passaram todos pela Ellis Island – assim como a família de Frank Capra, nascido Francesco Rosario, assim como a família de Frank Sinatra, nascido Francis Albert.
Aliás, Elia Kazan nasceu Elias Kazanjoglou. E aproveito para dizer que Scorsese pronuncia Ília Kazán. Estavam errados, portanto, os bons críticos de Belo Horizonte que, nos cursos sobre história do cinema que fiz quando era garoto, me ensinaram que a pronúncia certa era Eliá.
Obra boa, segundo Kazan, segundo Scorsese, é a obra pessoal
Scorsese mostra de peito aberto que dá grande importância, em seu documentário, a America, America porque é o filme predileto do diretor sobre o qual está falando, e também porque é um filme sobre imigração, e portanto que fala diretamente a ele mesmo, filho de imigrantes. E vai ainda mais longe na coisa de falar de peito aberto ao dizer que, garoto, ficou embevecido, mesmerizado com On the Waterfront e East of Eden porque os dois filmes, embora tão diferentes entre si, mostram o conflito entre irmãos, o conflito no seio da família – e os conflitos entre o personagem de Marlon Brando e o de Rod Steiger no primeiro, e os entre o personagem de James Dean e o de Richard Devalos no segundo, o faziam pensar nos seus próprios problemas com seu irmão, com seus pais, no pequeno apartamento de três cômodos que dividiam em Little Italy.
E aí é impossível não lembrar que os trágicos irmãos do romance de John Steinbeck que Kazan filmou em East of Eden, Caleb e Aron, são o espelho dos bíblicos Caim e Abel.
Scorsese, como bom filho de italianos, foi criado no catolicismo, sempre teve ligação com a religião – está aí o extraordinário A Última Tentação de Cristo para provar.
Sobre On the Waterfront, Scorsese insiste em dizer – enquanto vemos seqüências da obra-prima – que, quando viu o filme, ainda garoto, impressionou-se com o fato de reconhecer todas as paisagens mostradas na tela. Os becos, as vielas, os apartamentos, o crucifixo na parede, e, sobretudo, os telhados. O cerne da ação de On the Waterfront se dá nos telhado de prédios de apartamentos em bairro pobre de Nova York.
Up on the roof, cantou Carole King, a cantautora que inaugurou a era dos cantautores, dos singers/songwriters.
Em seu personalíssimo documentário sobre Elia Kazan, Scorsese realça que o mestre tem clara preferência pelos filmes que realizou depois que “aí aconteceu uma coisa”.
Ouvimos a voz de Kazan dizer (não há legendas identificando em que momento tal depoimento foi dado):
– “Os únicos filmes originais e genuinamente bons que fiz foi depois do meu testemunho. Os filmes que fiz depois de 1º de abril de 1952 são pessoais, saíram de mim.”
O mestre, assim como o discípulo, entende que bom é o que fazemos de maneira pessoal. Aquilo em que expomos o que somos.
Kazan disse a Scorsese que conversava com as fotos dos ancestrais
Aos 12 anos, em 1954, Scorsese viu On the Waterfront. Aos 24, em 1966, ouviu Kazan dar uma palestra para sua classe. Dois anos depois, já formado, o garotão filho de imigrantes italianos soube que o grande diretor filho de imigrantes gregos nascido na sempre inimiga Turquia estava preparando um novo filme, baseado em um romance que ele próprio havia escrito, The Arrangement. Scorsese procurou Kazan na tentativa de obter um lugar de assistente na filmagem de The Arrangement, que no Brasil ganharia o título de Movidos pelo Ódio. Não rolou: o jovem chegou tarde, o veterano já estava de saída do escritório; desejou ao rapaz boa sorte, e foi embora.
Scorsese não dá detalhes sobre a forma com que afinal se encontrou com Kazan mais tarde. Diz apenas que eles voltariam a se encontrar, e por muitas vezes. Ficaram amigos.
O documentário mostra várias fotos dos dois juntos, enquanto os anos vão se passando.
Scorsese conta que Kazan disse para ele que gostou bastante de um e outro de seus filmes, e que de outros não gostou tanto.
The Arrangement é de 1969. Depois dele, Kazan dirigiria apenas mais dois filmes: Os Visitantes/The Visitors (1972) e o já citado O Último Magnata/The Last Tycoon (1976). Entre 1976 e 2003, o ano de sua morte, não dirigiria mais.
O primeiro filme que firmou Scorsese como um realizador promissor, interessante, a ser seguido, Mean Streets, veio em 1973. No ano seguinte, com Alice Não Mora Mais Aqui, se firmaria como um nome importante.
Foram amigos até a morte do mais velho – mais ou menos, me pego pensando aqui, como Bob Dylan e Woody Guthrie. Conta-se que, no iniciozinho dos anos 1960, o garoto Dylan ia com frequência à casa de saúde em que Guthrie passava seus últimos dias.
Scorsese se lembra no documentário da última vez em que viu Elia Kazan. Ele estava sozinho na sala de seu apartamento, cujas paredes eram repletas de fotos de sua família, seus ancestrais, gente que tinha vivido no final do século XIX, início do XX, no lado mais oriental do Mediterrâneo, onde se unem o finalzinho da Europa, a Ásia e o Oriente Médio, aquela região que nunca teve paz, e naquela época vivia guerras insanas.
Kazan disse a Scorsese que conversava com as pessoas das fotos – e às vezes as pessoas também falavam com ele.
Scorsese e De Niro entregaram o Oscar a Kazan
Scorsese conta que, quando a Academia resolveu dar a Elia Kazan um Oscar honorário pelo conjunto de sua obra, em 1999, convidou a ele e a Robert De Niro para entregar a estatueta. “As velhas controvérsias voltaram à tona”, diz Scorsese, olhando para a câmara. Vemos Scorsese dando seu depoimento e vemos fotos da cerimônia de entrega dos Oscars, ele, De Niro e Kazan, depois fotos dele e Kazan abraçados.
Scorsese diz que muita gente não gostou de a Academia dar aquele prêmio.
Ele não diz – mas está absolutamente claro, evidente, que a Academia quis que o prêmio fosse entregue por Scorsese e De Niro porque ninguém na platéia ousaria vaiar aquele velhinho porque ele estava entre um cineasta e um ator acima de qualquer suspeita.
Não consigo me lembrar se houve ou não vaias ao fato de Elia Kazan, um dos maiores realizadores da História do cinema, estar recebendo um Oscar honorário. Mas me lembro muito bem que, naquela cerimônia do Oscar de 1999, as câmaras da TV mostraram diretores e atores que não aplaudiam.
Kazan passaria cerca de 50 anos sendo odiado, desprezado
Mas afinal – poderá perguntar o eventual e distraído leitor – qual foi o problema? O que foi aquilo que aconteceu? Qual era a controvérsia?
O documentário de Scorsese menciona o fato sem dar a ele ênfase exagerada. Me parece que faz isso em parte porque é uma história que foi fartamente contada, esmiuçada na sua época; em parte porque pretende tratar o caso como coisa muito antiga, não tão importante assim, seguramente muito menos importante do que a obra do realizador extraordinário.
Scorsese vai falando sobre os primeiros filmes de Kazan, o sucesso, o fato de que ele estava no auge, no início dos anos 1950 – “and then something happened”.
Eis o que aconteceu:
Kazan foi chamado para depor diante do Comitê de Atividades Anti-Americanas. Era 1952, o auge da época da louca caça às bruxas empreendida pelo senador Joseph McCarthy, republicano de Wisconsin, em que se enxergavam comunistas em todos os lugares, até mesmo embaixo de camas na Casa Branca.
Scorsese lembra que, no primeiro depoimento, Kazan não disse nada. No segundo depoimento, deu o nome de oito pessoas, do tempo de seu grupo de teatro no início dos anos 30, que, como ele, pertenceram ao Partido Comunista.
– “Claro que ele não foi o único a testemunhar”, relata Scorsese. “Mas, ao publicar uma carta no New York Times em que tentava se justificar e explicar, (Kazan) praticamente garantiu que ele seria a única pessoa de quem todos iriam se lembrar.”
A pecha de dedo-duro, traidor, filho da puta, perseguiria Elia Kazan por toda a sua longa vida.
Quando Martin Scorsese e Robert De Niro entregaram o Oscar honorário a Kazan, na cerimônia de 1999, ele estafa com 90 anos de idade. Haviam-se passado 47 anos desde seu testemunho perante o tribunal da caça às bruxas.
O IMDb registra o seguinte, na longa página em que apresenta os prêmios e indicações recebidos por Kazan como diretor, produtor e roteirista – 33 prêmios e outras 24 indicações:
“Uma grande controvérsia cercou a apresentação deste prêmio a Elia Kazan, já que ainda havia ressentimento por sua presença diante do Comitê das Atividades Anti-Americanas da Câmara dos Representantes (o equivalente à Câmara dos Deputados) 47 anos antes. Além da presença de uma dúzia de manifestantes do lado de fora do teatro, muitos convidados permaneceram sentados enquanto ele recebia o prêmio, recusando-se até mesmo a aplaudir. O conselho executivo da unidade Leste do Sindicato dos Escritores da América votou um protesto contra a decisão da Academia de dar um Oscar honorário a Kazan, acusando-o de ter causado dano irrevogável às vidas e carreiras de diversos colegas profissionais ao informar ao Comitê das Atividades Anti-Americanas da Câmara dos Representantes que eles tinham no passado pertencido ao Partido Comunista.”
Nos Estados Unidos, assim como em países menos desenvolvidos do continente que fica abaixo deles, não houve um Nelson Mandela para pôr uma pedra sobre o passado, virar a página e seguir adiante.
A plaqueta do Oscar entregue a Kazan diz: “Em agradecimento por uma carreira longa, ilustre e sem paralelo durante a qual influenciou a própria natureza de fazer filmes através da criação de obras-primas do cinema”.
Um imigrante, um estrangeiro, como Kazan
Me permito uma pequena digressão, coisa personalíssima. Afinal, o site é meu, personalissimamente meu, e estas minhas anotações são mesmo pessoais, exatamente como o documentário de Scorsese.
Vi um filme de Kazan pela primeira vez quando tinha 14 anos de idade – dois a mais que Scorsese tinha quando viu On the Waterfront no Lowe’s Commodore da Segunda Avenida. E foi exatamente Sindicato de Ladrões. Está lá no meu primeiro caderninho de filmes, com a letrinha de adolescente, na mesma página em que estão Deus e o Diabo na Terra do Sol de Gláuber Rocha e A Garota dos Olhos de Ouro/La Fille aux Yeux d’Or de Jean-Gabriel Albicocco. Não vi numa das grandes salas que havia em Belo Horizonte (e que, como o Lowe’s Commodore, foram derrubadas ao longo das últimas décadas); vi no Auditório da Faculdade de Ciências Econômicas, onde se exibiam grandes clássicos, com debates após a projeção.
Já era então, e permaneceria por várias décadas, um comunista linha sonhadora. Cresci, passei minha adolescência e juventude aprendendo a gostar de tudo o que fosse arte “de esquerda”, e a desprezar tudo o que pudesse ser identificado como “de direita”. Já adulto, teoricamente maduro, beirando os 30 anos, ainda era capaz de implicar com artistas da estatura de Caetano e Gil quando entendia que eles não estavam tão críticos da ditadura militar quanto deveriam.
Sempre admirei os artistas que se recusaram a depor no tribunal do macarthismo e que se pronunciaram contra ele – de Lillian Hellmann e Dashiell Hammett a Zero Mostel, Dalton Trumbo, Martin Ritt.
Porém – e isso me causa agora até espanto, porque eu era de fato um patrulheiro ideológico dos mais chatos, pentelhos, imbecis – jamais deixei de admirar Elia Kazan.
Babei com Sindicato de Ladrões. East of Eden me fascinou profundamente, quando vi o filme muito provavelmente sem compreender direito tudo o que ele dizia. Admirei Viva Zapata! America America me fascinou de maneira profunda, irreversível. E The Arrangement foi uma das obras que mais me marcaram quando começava a virar adulto, no iniciozinho dos anos 1970. Já velho, me emocionei com o brilho, a coragem, a lucidez de Gentleman’s Agreement. E, mesmo antes de vê-lo, sempre fui fascinando por Splendor in the Grass.
De alguma maneira, por algum motivo, a genialidade de Elia Kazan conseguiu atropelar minha imbecilidade dos tempos de patrulheiro ideológico.
No documentário de Scorsese, Kazan diz: “Eu tenho a alma de imigrante. Sou um estrangeiro.”
Nisso, me sinto um tanto como ele. Mineiro nascido em Goiás com passagem pelo Paraná, aos 18 vim para São Paulo – assim como italianos, gregos, turcos, armênios e etc e etc foram para os Estados Unidos e também vieram para cá, com alguma vaga esperança e sem um tostão furado.
Ao final de A Letter to Elia (e posso falar do final, já que é um documentário, não uma história de ficção), Scorsese se dirige diretamente ao homem que criou os filmes que o fizeram tremer de emoção no Lowe’s Commodore da Segunda Avenida, e diz: “A única forma de dizer o quanto você foi importante é fazer filmes.”
A forma que tenho é escrever estas anotações.
Obrigado, Scorsese. Obrigado, Kazan.
Anotação em julho de 2013
Uma Carta para Elia/A Letter to Elia
De Martin Scorsese e Kent Jones, EUA, 2010.
Documentário com depoimentos de Elia Kazan, Martin Scorsese, e trechos de diversos filmes do primeiro.
Roteiro Martin Scorsese e Kent Jones
Fotografia Mark Raker
Montagem Rachel Reichman
Na TV a cabo (gravado do TCM). Produção Far Hills Pictures, Sikelia Productions. Da série American Masters.
Cor e P&B, 60 min.
***
Ainda não assisti este “Uma Carta para Elia”.
De Elia Kazan só tinha assistido há algum tempo, ” Uma Rua Chamada Pecado “. Detalhes, voce sabe muito melhor que ninguém.
Um filme espetacular, um verdadeiro marco no cinema. Brando, Vivien Leigh, Karl Malden.
Mas assisti sim , na sexta feira passada dia 15, em um site de filmes online, duas obras magníficas deste cineasta que voce cita aqui neste texto.
” Vidas Amargas ” e ” Sindicato de Ladrões ” dois outros filmes maravilhosos de Elia.
“Sindicato…” então, é arrebatador. Marlon Brando este monstro sagrado que mudou tôda uma forma de atuar. O ótimo Karl Malden também atua com Brando, aqui.
Dos 3 filmes que James Dean fez, há muito tempo comecei a ver ” Juventude Transviada ” mas não lembro por qual motivo não terminei.
Vou procurar nos sites online outros filme de Elia Kazan.
Um abraço !!
Bom dia ou bôa tarde (hora verão).
Eu disse no meu comentário anterior que iria procurar outros filmes do Elia e encontrei como voce diz aqui, aquele que foi seu canto do cisne, “O Último Magnata”.
Eu até gostei do filme mas não sei dizer o que me incomodou nele.
Este é o quarto filme que vejo do Elia e, ainda faltam mais 15 mas, sei lá, gostei bem mais dos tres que cito no outro comentário.
Foi muito bom sim, ver todos aqueles ótimos e maravilhosos atores.
A atriz Ingrid Boulting que viveu a Kathleen Moore é muito bonita.
Dei uma fugidinha rápida e acabei de encontrar em outro site, “Viva Zapata”.
Será o quinto do Elia que vou ver.
Tem Marlon Brando ( “monstro sagrado” ) e Anthony Quinn ( outro que foi “fera” ) então tem tudo para ser um ótimo filme.
Um abraço !!
Boa tarde.
Um pouco atrasado esse comentário, mas totalmente verdadeiro. Tive a oportunidade de conhecer a casa do Genio Elia Kazan. Assim como comentado por Martin, seu escritório era sim repleto de fotos de filhos, infância e amigos. Um lugar muito calmo com costas para um jardim muito agradável. Impressiona o quanto o ser humano é cruel um para com o outro e não superar os problemas do passado. Elia era pessoa muito consciente até os ultimo dias de vida. Sabia do erro e as consequências por isso, mas mesmo assim viveu com a maior dignidade.