Toda lista é necessariamente imperfeita, tem falhas, erros, omissões – sobretudo omissões. A rigor, a rigor, lista é uma imensa bobagem, uma babaquice – mas a gente adora listas. Isso posto, digo que, na lista dos 20 filmes de que mais gostei na vida, está O Filho da Noiva.
E tinha visto só uma vez, em março de 2003, no Belas Artes, o grande, saudoso Belas Artes, segundo vejo nas minhas anotações. Na época, anotei apenas a ficha técnica básica, e duas frases curtas: “Junto com Fale com Ela, Amélie e Chicago, um dos melhores filmes novos que vi nos últimos muitos meses. Um show de talento.”
Revi agora, junto com Mary e Dona Lúcia, em absoluto estado de graça, de êxtase. Passei os 123 minutos de duração do filme sorrindo, feliz. Em alguns momentos, voltei atrás, para que pudéssemos rever tal e tal cena, ouvir de novo tal e tal diálogo.
Roger Ebert, provavelmente o crítico de cinema mais popular que já houve, escreveu que “o cinema é, entre todas as artes, aquela que tem o maior poder de empatia, e bons filmes farão de nós seres melhores”.
O Filho da Noiva faz de nós seres melhores.
O cinema argentino tem sabido, como poucos, falar de gente como a gente
Os personagens de O Filho da Noiva são gente como a gente: classe média, nem muito ricos, nem muito pobres – como deveriam ser todas as pessoas, se houvesse justiça neste mundo injusto de Deus e o diabo.
Duas das melhores cinematografias do mundo, a francesa e a italiana, sobretudo a italiana, costumam ter ódio, nojo, ojeriza pelas pessoas que não passam pelo horror da falta das coisas básicas – comida decente, teto decente. Para uma imensa quantidade de belos filmes italianos e franceses, quem não é trabalhador humilde, operário, camponês, explorado, é pequeno burguês, gente ruim, doente da cabeça e do pé.
O cinema argentino recente, das últimas décadas, tem sabido, como poucos outros, fugir dessa visão maniqueísta, simplificadora, minimizante e, ouso dizer, até calhorda.
Diversos filmes argentinos das últimas décadas têm sabido retratar a realidade social do país – mas conseguindo, ao mesmo tempo, e sobretudo, contar histórias interessantes de pessoas, seres humanos, gente como a gente, iguais a você e eu.
Tudo bem que haja filmes retratando a miséria profunda, a violência absurda, todos os Cidade de Deus e Carandiru da vida.
Mas que maravilha que haja espaço para o cinema nos contar também histórias de gente como a gente – nós, classe média, nem miseráveis nem milionários, nem torturadores nem torturados, nem assassinos nem ladrões. Nós, os que trabalhamos duro, pagamos um monte de imposto – e em geral vemos que os governos não usam nada bem o dinheiro que pagamos para eles.
Até porque, afinal de contas, somos boa parte da população, talvez até a maioria.
A cada dia que passa, mais me convenço de que o que importa são as pessoas – não as ideologias.
Até porque quem lucra com as ideologias são apenas os governos de plantão, e aqueles que os apóiam. Nós, a maioria, os sustentamos, com os impostos escorchantes que eles cobram do nosso trabalho honesto.
O filho da noiva tem problemas com as contas, com a ex-mulher, com o velho amigo
Rafael Belvedere, o protagonista de O Filho da Noiva, o filho da noiva do título, interpretado, brilhantemente, por Ricardo Darín, é uma dessas pessoas que sustentam o Estado com seus impostos. É um pequeno empresário: tem um restaurante, um bom restaurante. Pela cartilha maniqueísta do marxismo, ou do marxismo de botequim, é um patrão, essa figura que deveria ser abolida para que o Estado pudesse, enfim, ser o único proprietário de tudo.
Na vida real, é um trabalhador, tanto quanto são trabalhadores os seus garçons e cozinheiros.
Só os cegos, os imbecilizados por ideologias caolhas conseguem enxergar inimigos nos pequenos empresários.
Rafael está sempre correndo para pagar a compra – de vinho, de queijo, de tomate – de hoje com o dinheiro que cairá em sua conta amanhã.
Os cheques que entram, dos clientes, são mais molengas do que os cheques que saem, para os fornecedores.
Como está aí na faixa dos 40 e tantos anos, no início dos anos 2000, Rafael é divorciado, como quase todos nós. Como tantos de nós, Rafael tem com a ex-esposa uma relação não muito boa, muito mais conflituosa do que deveria ser. Todos nós deveríamos ter boas relações com as ex-mulheres, mas esse prêmio acaba sendo concedido a poucos. (Sujeito de sorte grande, sempre estive entre estes poucos.)
A filhinha, Vicki (Gimena Nóbile, na foto), de uns oito, nove anos, evidentemente sofre com o fato de pai e mãe não se darem bem.
Felizmente, a namorada de Rafael, Natalia, Naty (que vem na pele maravilhosa de Natalia Verbeke, então no frescor dos 26 aninhos), é uma pessoa do bem. É apaixonada por aquele sujeito tão absolutamente estressado, e mantém com a filha dele uma bela relação, carinhosa, afetuosa. (Antes de casar de novo, as pessoas deveriam ver se o futuro cônjuge se dá bem com o filho/a.)
De repente, do nada, reaparece na vida já bastante atribulada de Rafael um colega de escola do tempo da infância, que ele jamais havia voltado a ver, um tal Juan Carlos (mais uma bela interpretação do sempre ótimo Eduardo Blanco). Juan Carlos, que havia perdido a mulher e a filha num acidente de carro, é mais um aspirante a ator do que propriamente ator; faz apenas figuração em alguns filmes, não acha espaço para demonstrar se tem (ou não) talento. Solitário, Juan Carlos vai se agarrar a Rafael como se ele fosse seu único amigo no mundo.
Juan Carlos, uma figuraça, virá a ser bem importante no desenrolar da trama.
Com a sabedoria da velhice, Nino quer agora se casar com uma Norma de véu e grinalda
O roteiro de O Filho da Noiva, feito a quatro mãos pelo diretor Juan José Campanella e Fernando Castets, leva algum tempo para chegar à questão central da trama. Primeiro ele nos apresenta, sem pressa, esses personagens simpáticos, agradáveis, gente como a gente.
Estamos já com uma meia hora de filme quando a questão central da trama é colocada.
Nino (Héctor Alterio, numa interpretação que a gente deveria aplaudir de pé, como na ópera), o pai de Rafael, não havia se casado formalmente com sua mulher, Norma (o papel de Norma Aleandro, essa gigante, a Fernanda Montenegro dos hermanos, Oscar de melhor atriz por A História Oficial).
Lá no passado um tanto distante, 40 anos antes, Nino era um revoltado contra essas coisas todas que estão aí, as coisas burguesas, babacas, tipo as cerimônias de casamento.
Tudo o que a jovem Norma gostaria era de ter casado na igreja, de véu e grinalda.
Mas o jovem rebelde Nino tinha se recusado. Então tinham se casado na prática (mas não na igreja), tinham tido o filho – e nunca havia acontecido véu e grinalda.
Norma hoje tem Alzheimer, e vive numa ótima casa de repouso de velhinhos.
Velhinho, com a sabedoria que a velhice dá (não para todos, mas para muitos), Nino quer agora desfazer o erro do passado. Quer dar à mulher que ama aquilo que ela não teve quando jovem – um casamento formal, na igreja, com uma bela festa.
Um filme que transborda de amor pelas pessoas – e que mostra que as pessoas podem melhorar
O roteiro de Juan José Campanella e Fernando Castets dá um pau na Igreja Católica que é um nocaute. Lá do céu, ou do inferno, Luis Buñuel, o cineasta mais anti-Igreja Católica da História, deve ter aplaudido de pé. A diatribe de Rafael para o padre que diz que não pode casar uma mulher que sofre de Alzheimer é possivelmente um dos mais brilhantes ataques que o cinema já fez à Igreja Católica.
A mim, pessoalmente, o discurso brilhante de Rafael incomoda um pouco. Há quase 50 anos parei de me acreditar católico, mas jamais deixei de ter respeito pela religião, e pela Igreja que a representa.
O Filho da Noiva segue Buñel no anti-clericarismo, mas não é esse o tema central do filme.
O tema central do filme, me parece, é o amor pelas pessoas, a importância que as pessoas têm para as outras. E a capacidade das pessoas de mudar, e mudar para melhor.
Nino, o marido da noiva, melhora, com o passar dos muitos anos, das décadas. Percebe que, no passado, ao ter negado à mulher de sua vida um casamento careta, foi egoísta. Errou. Agora, bem mais velho, entende que abrir mão de suas idiossincrasias pode dar alguma felicidade à mulher amada.
Rafael, o filho da noiva, aprende muito, melhora muito, ao longo do filme. Torna-se menos tenso, menos estressado. E, com isso, torna-se um pai melhor, um namorado melhor.
Ah, tem o capitalismo, a globalização. Empresa de grande capital compra pequenos negócios que dão certo.
E daí? Dá para sobreviver com a globalização. Dá até para se sair bem com ela. Dá para ser fiel aos mesmos ideais, caso realmente se queira.
O Filho da Noiva é um belíssimo filme. Mas, além disso, é um dos filmes de que mais gosto na vida.
O particular é sempre mais importante do que o ideológico.
Anotação em maio de 2013
O Filho da Noiva/El Hijo de la Novia
De Juan José Campanella, Argentina-Espanha, 2001.
Com Ricardo Darín (Rafael Belvedere),
e Héctor Alterio (Nino Belvedere), Norma Aleandro (Norma Belvedere), Eduardo Blanco (Juan Carlos), Natalia Verbeke (Naty), Gimena Nóbile (Vicky), David Masajnik (Nacho), Claudia Fontán (Sandra), Atilio Pozzobon (Francesco), Salo Pasik (Daniel), Humberto Serrano (Padre Mario)
Argumento e roteiro Juan José Campanella e Fernando Castets
Fotografia Daniel Shulman
Música Ángel Illarramendi
Montagem Camilo Antolini
Produção Patagonik Film Group, Pol-Ka Producciones, Tornasol Films. DVD Europa Filmes.
R, ****
Adorei, muito bom o texto. É isso aí o que eu acredito.
Sério? Conheci hoje este blog. Dei uma passadinha em alguns dos filmes que mais gosto e vejo opiniões que se não são as minhas, são as que eu gostaria de ter escrito pelo menos. Estou perplexo mesmo. Dificilmente encontro algum crítico ou cinéfilo que seja com opinião tão semelhante a minha. Vou acompanhar mais o teu blog. ABraços.