L’Argent de Poche, no Brasil Na Idade da Inocência, o filme que François Truffaut fez em 1976, é um encanto, uma delícia, uma maravilha, uma obra-prima. Desses que a gente não cansa nunca de rever, que dão imenso prazer a cada nova revisão.
A infância-começo da adolescência é um dos temas mais presentes na obra de Truffaut. Seu segundo curta-metragem, Les Mistons, Os Pivetes, feito em 1957, quando ele estava com míseros 25 anos de idade, já adiantava dois dos temas onipresentes em seus filmes: a infância e o amor absoluto, apaixonado, pelas mulheres. Em 18 minutos de encantamento, Les Mistons mostra um bando de garotos encantados com a beleza de uma mulher, Bernadette (interpretada por Bernadette Lafont), uma jovem que anda de bicicleta pelas ruas de uma cidade do interior – e, ao pedalar, de saia, deixa entrever um pouco as coxas.
Os Incompreendidos/Les Quatre Cents Coups, o primeiro longa do realizador, feito em 1959, retrata um período da adolescência de um garoto de classe média média, de uma família um tanto disfuncional, que vai sendo levado à delinqüência. O protagonista Antoine Doinel é o alter-ego do cineasta; Truffaut, autor de filmes sempre pessoais e intransferíveis, fez em seu primeiro longa um relato autobiográfico – se não nos exatos fatos, na essência do personagem interpretado por Jean-Pierre Léaud.
O mesmo jovem ator voltaria a fazer o personagem em um dos episódios – Antoine et Colette (1962) – de L’Amour à 20 Ans, um filme de vários autores, e depois em três longas, Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e O Amor em Fuga (1979).
Em O Garoto Selvagem, de 1970, o diretor viraria também ator para tratar do menino criado na natureza, no meio do mato, longe da socialização com os humanos – uma antecipação dos temas que Werner Herzog discutiria em seu incensado O Enigma de Kasper Hauser, de 1974.
E mais tarde, em 1976, na maturidade, no absoluto domínio de sua arte, Truffaut faria este Na Idade da Inocência, um filme inteiramente sobre crianças.
É, como eu mesmo anotei depois de ver Les Mistons, “um dos mais belos, mais sensíveis, mais ternos, mais extraordinários filmes sobre a infância e o início da adolescência jamais realizados”.
Um filme de esquetes mas que também tem uma história com começo, meio e fim
A grosso modo, bem a grosso modo, sem que se faça uma contagem exata, pode-se dizer que metade dos filmes de Truffaut é adaptação de obras literárias. (O amor pelos livros é outro de seus temas fundamentais, assim como a infância, o amor pelas mulheres e as histórias de amor tristes, trágicas.) A outra metade é formada por histórias originais, criações do próprio artista. É o caso de L’Argent de Poche, argumento e roteiro de autoria de François Truffaut e Suzanne Schiffman, sua colaborada habitual.
L’Argent de Poche é quase um filme de esquetes, uma reunião de pequenos episódios, sem uma única história. Ao mesmo tempo, genialmente, é uma única história, com começo, meio e fim – dentro da qual vemos esquetes, episódios.
É a história de um momento na vida dos meninos de duas classes de uma escola pública de Thiers.
L’Argent de Poche (literalmente, dinheiro de bolso, trocadinho, moedas pequenas, ou seja, pequerruchos, pequetitos, meninos, garotos, piás, guris e gurias) tem um prólogo e um epílogo, como muitos dos livros que François Truffaut amou em sua vida plena de amores por livros, filmes e mulheres.
No prólogo, vemos uma garotinha linda, aí de uns 10, 11 anos, Martine (Pascale Bruchon) escrevendo um cartão postal para o primo. A foto do cartão é do monumento pequeno, sem qualquer graça, do vilarejo de Bruère-Allichamps, e Martine está bem ali, junto daquele monumentinho, coisa estranha em um país que é repleto de monumentos monumentais. No local do monumentinho, no centrinho do acanhado, sem qualquer graças vilarejo de Bruère-Allichamps, fica o centro geodésico do Hexágono, como os franceses mais antigos gostavam de chamar a França, esse país tão metido, que se acha tão importante, que pensa ter introduzido à Humanidade inculta e bárbara as noções de Liberté Égalité Fraternité.
Martine coloca o postal na caixa de correio da pracinha acanhada do vilarejo acanhado, e olha para o carro em que está seu pai – e, numa única tomada, vemos, no carro, fazendo o papel do pai da garota, dando uma de Alfred Hitchcock, o realizador, lui-même, Monsieur Truffaut.
(Nem Mary nem eu lembrávamos desse pequeno detalhe, de que Truffaut aqui dá uma de Hitch e aparece numa rapidíssima ponta. Truffaut repetiria essa característica do velhinho inglês doido, safado e genial de quem era profundo admirador no seu filme seguinte, O Homem Que Amava as Mulheres.)
Um bando de pequerruchos sai da escola numa alegria de presidiário enfim solto
Aí corta, entra o tema musical gostoso, forte, alegre, brincalhão, composto por Maurice Jaubert para o filme, e vemos, enquanto rolam os créditos iniciais, uma série de tomadas esplêndidas, maravilhosas, de um grande grupo de l’argent de poche – piás, gurias, guris, garotos, meninas, dez-reisinhos de gente, esos locos bajitos – correndo na saída da escola.
Um grande grupo de gente pequena sai da escola como se fossem presidiários enfim libertados. Correm à toda, alegres, felizes, álacres, porque a obrigação do dia terminou. Estão exultantes como se fossem trabalhadores deixando a mina de carvão no final da sexta-feira, hoje é sexta-feira, e toda sexta-feira todo mundo é baiano.
Uma e outra placa mostram para o espectador que aquela é a cidade de Thiers – e o que vemos é que Thiers tem morros como o bairro das Perdizes em São Paulo, ou Ouro Preto e Congonhas em Minas. Os meninos vão em disparada sempre descendo ladeiras – e Mary, que via ao meu lado pela não sei quantas vezes L’Argent de Poche, brincou que voltar para a escola lá no alto, subindo de volta todas aquelas ladeiras, deveria ser seguramente um suplício.
O espectador será então apresentado a uma dezena, uma dúzia daqueles dez-reisinhos de gente (para usar a expressão do português Sérgio Godinho), aqueles locos bajitos (nas palavras do espanhol Joan Manuel Serrat).
Retratar crianças na literatura, no cinema, não é nada, nada fácil
Ao longo dos 104 encantadores minutos de L’Argent de Poche, Truffaut nos fará diversas observações sobre essa coisa louca que são as crianças.
Transcrevo trecho que anotei depois de ver Les Mistons, porque tem tudo a ver:
Não é fácil retratar crianças na literatura, no teatro, no cinema. O risco de errar a mão é grande demais. É muito grande o perigo de retratar crianças como pequenos adultos – o que é um absurdo. Do outro lado, é muito grande o risco de retratar as crianças como uns debeizinhos mentais – o que é profundamente errado.
Criança é um bicho à parte. É um bicho difícil de se mostrar na ficção.
Truffaut é um dos cineastas que mais soube retratar crianças. Talvez por ter começado tão cedo. Talvez por ter sido uma criança difícil, numa família difícil, por quase ter virado um marginal. Talvez porque seja gênio. (…)
Geraldo Mayrink escreveu uma vez que possivelmente Steven Spielberg chamou François Truffaut para trabalhar como ator em seu Contatos Imediatos de Terceiro Grau, de 1977, porque queria aprender com o cineasta francês como trabalhar com atores infantis, como retratar crianças.
(Logo depois de lançar L’Argent de Poche, enquanto começava a preparar seu filme seguinte, O Homem Que Amava as Mulheres, Truffaut foi convidado por Spielberg para trabalhar como ator em Contatos Imediatos – e, como todos sabem, aceitou.)
Truffaut levanta diversos temas importantes sobre a criação de filhos
Assim que terminamos de rever mais uma vez L’Argent de Poche, Mary enumerou alguns dos temas que chamaram sua atenção no filme. Comento sobre eles.
* A fragilidade, os perigos.
São demais os perigos desta vida, cantou Vinicius. De fato. Mas o Poetinha, o grande poeta, estava se referindo ali especificamente ao fato de que, a qualquer momento, em qualquer esquina ou até em estrada reta, pode surgir a tentação de um novo amor, e aí o mundo periga desabar.
Em L’Argent de Poche, Truffaut discute muito a questão dos perigos que rondam as crianças, da fragilidade (ou não) das pequenas criaturas. Perigos há demais, de sobra: a vida é um enorme perigo – quanto mais para quem é pequetito. O miudíssimo Grégory vai atrás do gatinho, quando estamos com uns 25 minutos de filme, e de repente está diante de uma janela aberta no nono andar de um prédio. Eu já tinha visto aquilo várias vezes, sabia perfeitamente o que iria acontecer – mas me peguei angustiado, tremendo, apavorado, como da primeira vez em que segurei Marina nos braços e pensei: mas e se eu deixar ela cair?
Lydie (Virginie Thévenet), a mulher do professor, ela mesma grávida pela primeira vez, faz um pequeno discurso em que afirma as coisas óbvias, que nós, os sem-jeito, os bobos, acabamos esquecendo: os bebês são fortes. São elásticos, sabem se proteger. Truffaut aparentemente era agnóstico, ou talvez até ateu, mas eu diria que, além de tudo, as crianças, assim como os loucos e os bêbados, têm proteção especial dos anjos da guarda.
* O abandono, o desenvolvimento.
Nem todos os pais são atentos, amantes, cuidadosos, como foi a mãe de minha filha e como ela mesma é agora. Há uma imensa quantidade de pais que são desleixados, pouco atenciosos, pouco atentos, pouco amantes.
A mãe do pouco mais que bebê Grégory (interpretada por Nicole Félix) é um exemplo perfeito. Bem no início da ação, ela passa para um menininho muito jovem a tarefa de levar seu filho que não tem nem dois anos para casa. Depois, distrai-se na conversa com a mulher do professor, e não enxerga o que Grégory está fazendo com os mantimentos que ela acabara de comprar na mercearia. Depois deixa Grégory sozinho no apartamento do nono andar, sem grades de proteção, enquanto vai procurar pela carteira que perdeu. É uma mulher solitária, infeliz, que cria o filho sem pai – se o mundo fosse certo, correto, justo, ela não teria obtido o direito de ter filho, porque não sabe cuidar daquele que teve.
O casal que tem Sylvie (Sylvie Grezel), a menininha do aquário…
No domingo, o dia em que as crianças se entediam (e quando a ação chega ao domingo ouvimos Charles Trenet cantar “Les enfants s’ennuient le dimanche”), o inspetor de polícia (Jean-Marie Carayon) e sua mulher (Katy Carayon) se irritam porque a garotinha quer levar para o almoço em restaurante a bolsinha em forma de urso, velha, encardida, horrorosa – o objeto mais amado da pequena.
A mulher se recusa terminantemente a sair com a pequena se ela insistir em levar o objeto amado. Chama o pai para resolver a pendenga. O pai toma as dores da mulher, e não da filha. E faz a ameaça: se você insistir em sair com essa coisa horrorosa, então você não vai; nós saímos e você fica.
Sylvie fica firme. O casal sai de casa, a garotinha fica sozinha no domingão. Aprontará uma grande confusão – mas resolverá seus problemas. É uma seqüência deliciosa, num filme feito de seqüências deliciosas.
(Pequeno detalhe: seria aquela mulher a mãe de Sylvie, ou apenas uma madrasta pouco afeita à filha que não é sua? O filme não diz nada explicitamente, mas tudo indica que é uma madrasta. Uma mãe, por pior que seja, não trataria sua filha daquela maneira tão desleixada. Pequena digressão dentro do detalhe: não estou querendo dizer que as madrastas necessariamente tratam mal das crianças, de forma alguma; Mary, por exemplo, embora jamais tenha pretendido assumir a maternidade de minha filha, sempre a tratou com imenso amor. Mas eu mesmo fui um péssimo padrasto, embora a própria Inês, certamente devido a seu espírito generoso, não concorde com essa opinião que sempre foi a da mãe dela e também a minha.)
De uma certa forma, o filme mostra que os pequenos, quando são deixados mais soltos, quando são obrigados a resolver seus problemas, se desenvolvem mais rapidamente do que aqueles garotos que têm pais muito cuidadosos e correm o risco de ser superprotetores.
(Eu, pessoalmente, personalissimamente, tenho imensas dúvidas sobre essas questões. Não sou, é óbvio, a favor da superproteção – mas tenho horror à falta de atenção. Quando minha filha era menininha, fui muitas vezes acusado de superprotetor; Regina disse algumas vezes que eu estava criando um monstro. A vida demonstrou que ela estava, ahn, digamos… um tanto equivocada.)
* Responsabilização muito cedo.
Muitos pais – o filme mostra – tendem a, às vezes por pura preguiça, comodismo, botar muitas responsabilidades sobre ombros ainda não capazes de carregá-las. A pustema da mãe do garotinho Grégory confia o filho a um garotinho novo demais para levá-lo para casa, já que ela ainda queria fazer mais umas comprinhas. Os pais dos irmãos Deluca deixam que eles cuidem de si mesmos no domingão para que possam dormir até mais tarde. Os pais da garota Sylvie a abandonam sozinha em casa no domingo por causa de uma questão boba, menor – a bolsa fedida mas adorada pela pequena.
Às vezes não é por culpa dos pais – são dados da realidade, contra os quais não há o que fazer. O pai do garoto Patrick (Georges Desmouceaux), viúvo e deficiente físico, não tem outra opção a não ser sobrecarregar o filho com diversas tarefas da casa.
De novo, este é um tema controverso. Acho que não se deve responsabilizar os meninos cedo demais por muita coisa – porém deve-se evitar também o outro extremo, o fazer tudo por eles. Acho que tudo deve ter como base geral o bom senso, que em geral está no centro, nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
* Eles e elas.
Na questão dos gêneros, não há dúvida alguma: os meninos são mais bobos que as meninas. Os garotões serão inevitavelmente mais bocós que as garotonas. Elas se desenvolvem mais rapidamente, são mais precoces, mais sensíveis, mais safas. As mulheres serão melhores que os homens. Elas estão sempre à frente deles.
Patrick, um dos principais personagens do filme, é uma clara demonstração disso. Ele é sério, bem mais introspectivo do que livro-aberto. É tímido, levemente travado – e não que isso seja ruim. Ruim é o amigo dele, o garoto que se acha muito gostosão e vai ao cinema e termina por fazer um ménage à trois, enquanto Patrick fica sozinho a ver navios – ou, mais precisamente, a tela do cinema.
As meninas são mais desenvolvidas, mais espertas, mais liberadas.
Essa é uma das verdades mais absolutas da vida.
Uma trama especialmente bela envolve o garoto Patrick e a bela Nadine
Uma das coisas mais belas de L’Argent de Poche é o personagem desse Patrick, por quem Truffaut e sua co-roteirista Suzanne Schiffman demonstram especial carinho. Patrick, como já foi mencionado, é órfão de mãe, e carrega sobre os frágeis ombros a obrigação de cuidar do pai deficiente, preso a uma cadeira de rodas e sem movimentos na mão direita.
Patrick é bom nos estudos, e auxilia o garotinho Laurent (Laurent Devlæminck) a fazer seus deveres. Mas não é à toa, não é apenas por generosidade: na casa de Laurent, Patrick encontra o que não tem na sua – um lar organizado, uma mãe. A mãe de Laurent, Nadine (Tania Torrens), é uma mulher calma, tranquila, atenciosa – e bela.
Mas não vou falar mais sobre Patrick e Nadine. Seria spoiler. É uma trama especialmente bela, a que envolve os dois. É preciso apreciá-la vendo o filme.
Uma escolha clara, maturada, de não focalizar apenas a capital do país
Há aquela máxima: se você quer ser universal, fale de sua aldeia, sua paróquia, seu bairro, fale daquilo que conhece bem.
Ao rever depois de velho os filmes de Truffaut, tenho me espantado com a quantidade deles que não se passam em Paris.
Ainda vou tentar fazer um levantamento criterioso, correto, mas me parece, assim, grosso modo, que metade dos filmes de Truffaut se passa na capital, e metade em cidades menores, do interior.
É evidente que isso não é gratuito, fortuito.
Parece muito evidente que o realizador quis insistir no fato de que seus filmes falavam de seu país como um todo – e não apenas da capital, uma das mais belas cidades do mundo, um dos principais destinos turísticos da humanidade.
Neste L’Argent de Poche, ele maximiza isso, ao citar o centro exato da França. E ao escolher a pequenina Thiers como o local em que se passa a ação.
Parisiense, Truffaut não queria falar apenas de seu lugar de nascimento. Queria falar do país inteiro.
Paul Simon, por exemplo, um artista praticamente da mesma geração dele, escolheu falar de sua paróquia, do lugar em que nasceu e em que foi criado, Nova York. Martin Scorsese também fala de sua cidade, a mesma Nova York, na maioria de seus filmes.
Me parece que Truffaut fez uma escolha pensada, maturada, de falar não de seu bairro, mas de seu país inteiro.
Na minha opinião, Truffaut derruba no filme um dogma inventado pelo marxismo
Não são de um bairro, nem de uma nação, mas do mundo inteiro as questões da miséria, material e moral, e da violência.
Truffaut e sua colaborada Suzanne Schiffman fizeram uma beleza de trabalho ao criar o personagem de Julien Leclou (Philippe Goldmann).
Todos os demais personagens do filme são de classe média, dos vários extratos da classe média. Não há nenhum miserável, nem nenhum milionário – a não ser Julien Leclou. Julien Leclou é despossuído de tudo.
Todo tipo de estudioso de ciências humanas – antropologia, sociologia, o escambau – formado nos séculos XIX e XX entendeu o mundo de uma forma marxista, ou pseudo-marxista. Tudo se resume à luta de classes, a quem detém e não detém a propriedade dos meios de produção. O pobre é pobre porque alguém que o explora é rico, filho da puta.
É uma forma fácil de entender a complexidade toda.
É uma religião. Ah, você sofre muito aqui, mas no paraíso será feliz. E o paraíso pode ser o de Alá que oferece sete virgens para quem se matar na Jihad, ou o dos cristãos que se negarem muitos prazeres terrenos em nome da felicidade eterna.
O fato é que se tornou um axioma, um dogma, o fato de que as pessoas são produtos do meio. A partir daí, foi-se para o exagero de que as pessoas são apenas e tão somente o produto do meio. Como se nenhuma outra variável entrasse na composição da personalidade, o caráter das pessoas – nem a genética, nem nada.
L’Argent de Poche, me parece, vai contra esse axioma, esse dogma, ao mostrar que tanto Julien Leclou (garoto miserável, despossuído de tudo) quanto os irmãos Deluca (classe média, que não passam por necessidades básicas) são dados a uma forma de delinquência, o roubo.
Claro: as condições todas da vida miserável de Julien o empurram para a prática sistemática de roubos, e o risco de que ele se transforme de fato num delinquente é imensa. Mas estão aí os irmãos Deluca para demonstrar que não é apenas a vida miserável que leva garotos a roubar. Como também está aí para dizer a mesma coisa o mais recente filme de Sofia Coppola, Bling Ring: A Gangue de Hollywood (2013), inspirado em fatos reais, sobre o grupo de garotinhos ricos que assaltou diversas mansões de Los Angeles.
L’Argent de Poche levanta a discussão sobre temas importantes, fundamentais.
O discurso final do professor Richet (Jean-François Stévenin) aos alunos das duas classes, reunidas após a revelação sobre a família de Julien Leclou, é emocionante. É um absoluto brilho. Tem a estatura da Declaração Internacional dos Direitos do Homem, do Discurso de Gettysburg.
François Truffaut é gênio.
“A nossa idéia é na realidade retratar do primeiro biberão ao primeiro beijo”
Acho que exagerei na opiniática. Falta informação, objetiviática.
Transcrevo trechos do livro François Truffaut – A Filmografia Completa, de Robert Ingram e Paul Duncan, editado pela Taschen, em português de Portugal:
“O desejo de realizar um filme inteiramente dedicado às crianças está na sua mente desde o início da sua carreira. Ele mantinha um dossier com incidentes, recortes de jornais e episódios dos dias de Les Mistons e de Os 400 Golpes (*). Com a ajuda de Suzanne Schiffman, foi escrito um curto argumento em 1972 e posteriormente concluído em 1974. Os custos de produção foram reduzidos ao mínimo usando apenas um local de filmagens na pequena vila de Thiers; muitos dos actores eram habitantes da vila, os restantes, pouco conhecidos. As filmagens foram efectuadas na sua grande maioria numa escola em Thiers, nas férias de Verão de 1975. (…)
“Truffaut afirmou que era sua intenção retratar a infância desde o nascimento até ao limiar da adolescência, ou como ele disse numa entrevista concedida ao jovem Philippe Goldman (Julien no filme), ‘A nossa idéia é na realidade do primeiro biberão (**) ao primeiro beijo’. Truffaut falou frequentemente dos seus motivos para realizar o filme, referindo-se ao ‘seu (das crianças) desejo de autonomia mas ao mesmo tempo a sua necessidade de afecto, algo em relação ao qual não estão não estão conscientes’ e o seu desejo de representar ‘a grande capacidade que as crianças têm de enfrentar a vida e de sobreviver’. (…)
“Algo invulgar é o facto de a sala de aulas ser um dos três locais que é apresentado de forma positiva. Aqui, o ambiente escolar é incrivelmente diferente do de Os 400 Golpes. Aqui não há uma aprendizagem rotineira, não há sarcasmo, não há humilhação constante dos mais fracos. Os alunos das altas do M. Richet participam, têm voz, são articulados e confiantes. Da mesma forma, a infeliz casa de Antoine Doinel dá lugar a um ambiente caloroso proporcionado pela família Riffle. O terceiro local é, no entanto, um que está presente em praticamente todos os filmes de Truffaut: o cinema. Em Na Idade da Inocência, o cinema desempenha um papel central como ponto de concentração de toda a comunidade, que aí se encontra todas as semanas, independentemente de que filme esteja a ser exibido. O cinema é o paraíso, mas também um local de excitação, encanto e escape. (…)
“O filme, que estreou em março de 1976, foi um sucesso inesperado. Mas Truffaut estava mais uma vez exausto e o seu médico mandou-o descansar.”
Em vez de descansar, Truffaut começou a preparar O Homem Que Amava as Mulheres – e aí veio o convite de Spielberg para que ele viajasse para os Estados Unidos para trabalhar em Contatos Imediatos do Terceiro Grau.
Um detalhinho sobre a língua portuguesa. E sobre as filhas de Truffaut
Entra em cena o tradutor português-português. (*) Os 400 Golpes, obviamente, é o título de Les Quatre Cents Coups em Portugal – a tradução literal do original do filme que no Brasil se chamou Os Incompreendidos. O (**) também é bastante óbvio, mas aproveito para transcrever o verbete “biberão’ do Dicionário da Língua Portuguesa da Editora Porto: “Frasco ao qual está adaptada uma tetina de borracha e que se emprega na lactação artificial (do francês biberon, do latim bibere, beber).”
Eu mesmo, velhinho, não me lembrava da palavra biberão. Minha filha, por ter lido muito na internet sobre essas questões, sabia!
E mais um detalhinho para fechar a anotação. François Truffaut teve três filhas. Três mulheres: Laura, nascida em 1959, Eva, de 1961, e Josephine, de 1982. Uma sorte, para um homem que amava tanto as mulheres. As duas primeiras são filhas de Madeleine Morgenstern; a terceira, de Fanny Ardant.
Eva, o do meio, tem um papel em L’Argent de Poche. Ela é a mais nova e mais tímida das duas garotinhas que acompanham Patrick e seu amigo ao cinema. Ela teve também pequenos papéis em O Garoto Selvagem, As Duas Inglesas e o Amor e De Repente Num Domingo.
Laura também tem uma participação – bem pequena – no filme, como a mãe do garotinho Oscar, e apareceu ainda em pontas em O Garoto Selvagem e As Duas Inglesas e o Amor.
Uma vez escrevi que, a partir de Os Imperdoáveis, de 1992, Clint Eastwood passou a ser para mim um realizador tão fascinante, tão apaixonante, tão admirado, tão amado quanto François Truffaut. Como Truffaut, Clint tem um tema que está sempre presente em todos os seus filmes – no caso dele, a relação pai-filhos.
Espero que, em sua vida curtíssima, Truffaut tenha dedicado a suas filhas o carinho e a atenção que os personagens de Clint não dedicaram aos seus – e que os faz se arrependerem da omissão pelo resto da existência.
Anotação em outubro de 2013
Na Idade da Inocência/L’Argent de Poche
De François Truffaut, França, 1976
Com os garotos Georges Desmouceaux (Patrick Desmouceaux), Philippe Goldmann (Julien Leclou), Claudio De Luca (Mathieu Deluca), Franck De Luca (Franck Deluca), Laurent Devlæminck (Laurent Riffle), Bruno Staab (Bruno Rouillard), Sylvie Grezel (Sylvie), Richard Golfier (Richard Golfier), Corinne Boucart (Corinne), Eva Truffaut (Patricia), Sebastien Marc (Oscar), Pascale Bruchon (Martine),
e os adultos Jean-François Stévenin (Jean-François Richet, o professor), Virginie Thévenet (Lydie Richet, a mulher do professor), Tania Torrens (Nadine Riffle, a cabelereira), Francis Devlaeminck (Monsieur Riffle, o cabeleireiro, pai de Laurent), Nicole Félix (a mãe de Grégory),
Chantal Mercier (Chantal Petit, a professora), René Barnerias (Monsieur Desmouceaux, o pai de Patrick), Katy Carayon (a mãe de Sylvie), Jean-Marie Carayon (o pai de Sylvie, inspetor de polícia), Annie Chevaldonne (enfermeira), Michele Heyraud (Madame Deluca), Paul Heyraud (Monsieur Deluca), Jeanne Lobre (a avó de Julien)
Argumento e roteiro François Truffaut e Suzanne Schiffman
Fotografia Pierre-William Glenn
Música Maurice Jaubert
Montagem Yann Dedet
Produção Les Films du Carrosse, Les Productions Artistes Associés. DVD Silver Screen Collection.
Cor, 104 min
R, ****
Boa noite
Estou fazendo um trabalho na universidade e estou utilizando o filme Na Idade da Inocência, poderia utilizar esse texto como referência? Preciso saber alguns dados para citação correta no trabalho: NOME AUTOR, ANO PUBLICAÇÃO, LOCAL de PUBLICAÇÃO, TIPO DE PRODUÇÃO, PAGINAÇÃO etc.
Olá, Lívia!
Sim, eu autorizo que você use o meu texto no seu trabalho escolar.
Autor: Sérgio Vaz.
Ano da publicação: 2013.
Local de publicação: site 50 Anos de Filmes (www.50anosdefilmes.com.br).
Tipo de produção: Texto jornalístico sobre filme.
Agora, Lívia, não tenho a menor idéia do que seja paginação.
Nem do que seja, no seu caso, o etc.
Como sou curioso, gostaria de saber que curso você está fazendo, e quem
escolheu como tema do trabalho exatamente esse filme “Na idade da
Inocência”. Você poderia me dizer?
Um abraço.
Sérgio