Miragem, que Edward Dmytryk dirigiu em 1965, é um ótimo suspense-mistério durante boa parte de seus 109 minutos. No final ele cai um pouco, talvez até bastante, na minha opinião. Apesar disso, é um filme muito bom.
Começa bem demais; nos primeiros 15, 20 minutos, o espectador fica absolutamente atordoado, sem entender nada do que está acontecendo – exatamente como seu personagem central, David Stillwell, interpretado por Gregory Peck.
Enquanto rolam os créditos iniciais, vemos, ao fundo – diacho, não há palavra exata em português para isso – o skyline de Manhattan à noite, os gigantescos arranha-céus com as luzes ligadas. Assim que terminam os créditos iniciais, um dos prédios fica totalmente às escuras. Um blecaute, um apagão – só naquele prédio.
E em seguida a câmara está dentro do prédio às escuras, num corredor de um dos andares – o 27º. Diversas pessoas andam pelo corredor, várias com lanternas ou velas. Um vozerio danado; duas mulheres falam de uma festa que vai haver em uma das salas. As duas reparam num homem bonitão – David, o personagem interpretado por Gregory Peck – e o convidam para a festa; explicitam: vai ser uma festa em braile – sistema de toque.
Um sujeito, Josephson (Kevin McCarthy), aparece nesse exato momento e diz que foi chamado à sala de Charles Calvin (Walter Abel); pede que David fique por ali, para depois tomarem umas.
David se encaminha para as escadas; tem uma lanterna na mão. Uma voz de mulher, que estava em um andar acima do 27º, pede ajuda a ele: – “Foi tolice minha começar a descer sozinha no escuro”. A lanterna dele a ilumina; é uma mulher jovem, bela, bem vestida, com um colar de pérolas que os créditos iniciais haviam avisado que é da Tiffany – a personagem de Diane Baker. Bem mais tarde, saberemos que seu nome é Shela (ou Sheila; há as duas grafias nos guias). Sheila, ou Shela, não pode ver o rosto dele, no escuro – ele vê o dela, iluminado pela lanterna.
Quando ele responde, e ela ouve sua voz, diz: – “Como o mundo é pequeno. Soube que você tinha voltado. Estou muito contente em vê-lo. Isto é, se eu pudesse vê-lo”. A lanterna dele continua iluminando o rosto da jovem mulher, mas ela não consegue ver o rosto dele.
E ela prossegue: – “Você sabe por que ele faria uma coisa dessas? Eu falo de ele desligar a eletricidade. Quero dizer… Se fosse qualquer outra pessoa, eu diria que foi uma brincadeira, mas não o Major. Ele jamais teria feito isso.”
E então David diz: – “Olha, me desculpe, mas eu não estive fora. Não conheço nenhum Major, e creio que nunca vi você também.”
A luz da lanterna de David continua iluminando o rosto dela (e, meu Deus do céu e também da terra, como é linda Diane Baker!). Ela faz uma expressão de absoluta surpresa ao ouvir o que ele diz.
– “Mas é a sua voz. Eu…
E ele: – “Tudo bem. Depois de descer tantas escadas, acabaremos sendo velhos amigos. É melhor descermos logo; não confio muito nessa lanterna.”
Quando finalmente chegam ao térreo, e David abre a porta, seu rosto se ilumina com a luz da rua, e a jovem diz:
– “Eu tinha certeza de que era você.”
E ele: – “Eu não sei do que você está falando. Meu nome é David Stillwell. Qual é o seu?”
A bela mulher faz uma expressão de surpresa, perplexidade – e começa a descer a escada para o subterrâneo. David a segue, até o quarto andar abaixo do nível do solo – mas não a encontra.
Quando sai à rua, há uma comoção diante do prédio. O corpo de homem está sendo recolhido do chão da rua. No ajuntamento que se forma, as pessoas comentam que deve ter sido suicídio.
David se afasta da multidão, atravessa a rua, entra no bar em frente ao prédio do qual acabava de sair. As pessoas comentam sobre a morte que acaba de acontecer, falam de suicídios.
O barman aparece, e David diz: – “Olá, Eddie. O de sempre, por favor.”
O barman faz cara de surpresa, como se não estivesse reconhecendo o freguês e não tivesse a menor idéia do que é o de sempre.
Ao sair do bar, David vê que a luz voltou ao prédio. Vai até lá, procura o lugar das escadas, desce para o subsolo – e não há escadas para o segundo subsolo, só até o primeiro!
No hall do térreo, avista um velho porteiro, Joe Turtle (Neil Fitzgerald, na foto acima) e o cumprimenta. O porteiro o reconhece, mas como se não o visse fazia tempo:
– “O senhor é o sr. Stillwell.”
E David: – “Ainda bem que me reconheceu. Do jeito que as coisas estão, nem eu mesmo estou muito certo.”
David pega o metrô. O jornal que um passageiro lê já traz a notícia do suicídio de Charles Calvin. Vemos imagens do que passa pela cabeça de David: um homem caindo do alto de um prédio, as escadas com os letreiros de Sub 2, Sub 3, Sub 4.
Ele está cansado, sentindo-se confuso.
As coisas vão piorar – e muito.
Ele entra no prédio em que mora. O porteiro o saúda com um “Olá, sr. Stillwell! Há quanto tempo.”
Ao chegar a seu andar, um sujeito que havia subido no mesmo elevador tira um revólver para ele:
– “O Major quer ver você”, diz o sujeito armado.
Um roteiro extremamente bem escrito, fascinante
Estamos, nesse momento, com 14 minutos de filme.
Me deparei com o DVD de Miragem na estante de clássicos da locadora, como lançamento recente. Foi editado no Brasil pela Classic Line, mas tem o selo da Universal, o estúdio que produziu o filme.
Vejo agora nas minhas anotações que assisti ao filme duas vezes: uma no final de 1965, o próprio ano do lançamento, quando tinha 15 anos, e depois de novo em 1999, quando ele esteve em cartaz no antigo Telecine. Não me lembrava de ter revisto o filme depois de adulto, mas me lembrava bem dessa situação inicial, o blecaute no prédio, o protagonista com amnésia – e da beleza absurda de Diane Baker.
A capa do DVD diz: “Do mesmo roteirista de Arabesque e Charada”.
Peter Stone, chama-se ele. Peter Stone (1930-2003). Não me lembrava desse nome – mas o sujeito que escreveu o roteiros de Charada (1963), sobre uma história dele mesmo, e co-escreveu o de Arabesque (1966), merece todo o respeito.
De fato, o roteiro deste Miragem é extremamente bem feito; é inteligente, tem um ritmo ágil, fantástico. Em diversos momentos, no meio da tensão que vive o personagem – e que passa perfeitamente para o espectador -, há toques de bom humor, falas espertas, interessantes.
Nesta revisão, achei que no final, quando a trama vai esclarecendo os pontos nebulosos, quando o espectador, junto com David Stillwell, vai entendendo o que aconteceu, as coisas ficam um tanto exageradas. A história fica ambiciosa demais, grandiosa demais, jamesbondesca demais. Mas isso não tira, de forma alguma, as qualidades todas do filme. Os dois terços iniciais são sensacionais – a trama envolve o espectador. É impossível que o espectador não se sinta angustiado com o que vai acontecendo com aquele sujeito que subitamente é vítima de amnésia.
A fotografia, em glorioso preto-e-branco, assinada por Joseph MacDonald, é deslumbrante, valorizada por imensa quantidade de sequências filmadas de fato nas ruas de Nova York, nas bocas do metrô, no Central Park, junto ao Hudson (ou seria o East River?), longe da comodidade dos estúdios.
Gregory Peck está muito bem, e Walter Matthau dá um show
Todos os atores estão muito bem. Gregory Peck é sempre ótimo, e aqui não falha; o espectador simpatiza com o personagem dele, torce por ele, angustia-se com ele. Diane Baker tem um desempenho mais que correto – e é impressionante a beleza dela.
Walter Matthau dá um show como Ted Caselle, o detetive particular iniciante, que sequer arma tem. É um personagem delicioso, e os diálogos entre ele e David Stillwell são de um humor inteligentíssimo.
Quando David chega ao escritório de Caselle, este mente:
– “Minha secretária saiu para almoçar, e meu sócio está cuidando de um caso. (Pouco depois, ele confessará que não tem secretária nem sócio.) Meu nome é Caselle. Quem me recomendou, senhor…?
– “Stillwell. David Stillwell. Eu vi o cartaz (no prédio).
Aí Caselle pergunta: – “O que eu posso fazer por você?
– “Para começar, você poderia descobrir quem eu sou.”
– “Claro. Você é David Stillwell. Isso vai custar… hum, dez pratas!”
O roteiro se baseia em um romance de Howard Fast, que esteve na lista negra
Nos créditos iniciais aparece o seguinte: Screenplay by Peter Stone (o nome dele em letras bem grandes) Based on a story by Walter Ericson (este nome bem menor).
Estranho, muito estranho isso. O roteiro não se baseia simplesmente em uma história – é um romance, Fallen Angel, publicado em 1952. O romance de fato foi assinado por Walter Ericson – mas em 1965, ano do lançamento do filme, já era de conhecimento amplo, geral e irrestrito que Walter Ericson havia sido um dos pseudônimos usados, no período das trevas do macarthismo, pelo grande escritor Howard Fast (1914-2003), impedido de trabalhar com seu próprio nome porque estava na lista negra dos autores proibidos pela paranóica caça às bruxas que turvou a vida nos Estados Unidos.
Howard Fast talvez seja pouco conhecido hoje no Brasil, mas foi um autor de grande importância, tendo publicado mais de duas dezenas de romances entre 1933 e 2001; nos anos 60, teve obras traduzidas para o português e lançadas no Brasil pela gloriosa Editora Civilização Brasileira, como, por exemplo, Poder/Power, de 1962, e que saiu aqui em 1964, o ano do golpe militar. É da autoria de Howard Fast, por exemplo, o romance Spartacus, de 1951, um ano antes de Fallen Angel; o romance Spartacus serviria de base para o roteiro do extraordinário filme que Stanley Kubrick lançaria em 1960 – roteiro este de autoria de Dalton Trumbo, outro dos escritores que entraram para a lista negra do macarthismo sob a acusação de comunismo ou filo-comunismo.
Dmytrik queria Tippi Hedren para o papel de Shela, mas Hitchcock não permitiu
Edward Dmytrik (1908-1999), o realizador de Miragem, nascido no Canadá filho de imigrantes ucranianos, começou de baixo: foi office-boy e projecionista da Paramount, depois montador, chegando à direção em 1935. No final dos anos 40, foi acusado de comunista e despedido do estúdio em que trabalhava, o RKO, sendo forçado a passar uma temporada fora dos Estados Unidos, na Inglaterra. Na volta, chegou a ser condenado e preso por desacato ao Congresso, durante as audiências da comissão de investigação das “atividades anti-americanas”, mas acabaria passando à história – assim como Elia Kazan – como um dos que teriam denunciado colegas.
Jean Tulard escreveu no seu Dicionário de Cinema: “Em 1951, retornou aos Estados Unidos e, em troca de um depoimento que acabou provocando a acusação de alguns de seus amigos, reencontrou o seu lugar nos estúdios. Assinou então obras notáveis” – e então Tulard cita Volúpia de Matar, A Nave da Revolta, Lança Partida, para dizer que, com exceção de Minha Vontade é Lei, seus filmes seguintes “são medíocres”.
Jean Tulard é Jean Tulard, mas eu jamais chamaria Miragem de medíocre.
Leonard Maltin dá ao filme 3 estrelas em 4: “Ótimo thriller no estilo de Hitchcock, com Peck como vítima de amnésia, e todos os demais à caça dele. Matthau rouba o filme como um descontraído detetive particular; interessantes sequências filmadas em locação em Nova York”.
No IMDb, encontro uma informação deliciosa: Dmytryk originalmente queria escalar Tippi Hedren para o papel de Shela, “mas Hedren estava sob contrato com Alfred Hitchcock, que disse a Dmytryk que ela não estava disponível”.
E então foi escolhida para o papel de Shela exatamente Diane Baker – que faz o segundo papel feminino em Marnie – Confissões de uma Ladra, de 1964, o segundo e último filme de Hitchcock com Tippi Hedren.
É fascinante rever o filme agora, e saber dessa incrível coincidência, poucos dias após ver A Garota/The Girl, o impressionante filme sobre a relação doentia entre Alfred Hitchcock e Tippi Hedren.
E é de fato uma fantástica coincidência, essa: quem não teve Tippi Hedren se viu obrigado a caçar com Diane Baker. Não saberia dizer se a loura Tippi Hedren teria feito uma Shela melhor que a morena Diane Baker – mas sei sem dúvida que Diane Baker é uma das muitas coisas boas de Miragem. Um filme que, repito, pode ser acusado de muita coisa, mas jamais de medíocre.
Anotação em fevereiro de 2013
Miragem/Mirage
De Edward Dmytryk, EUA, 1965
Com Gregory Peck (David Stillwell), Diane Baker (Shela), Walter Matthau (Ted Caselle)
e Kevin McCarthy (Josephson), Jack Weston (Lester), Leif Erickson (Major Crawford), Walter Abel (Charles Calvin), George Kennedy (Willard), Robert H. Harris (Dr. Broden), Anne Seymour (Frances Calvin)
Roteiro Peter Stone
Baseado no livro Fallen Angel, de Walter Ericson (pseudônimo de Howard Fast)
Fotografia Joseph MacDonald
Música Quincy Jones
Montagem Ted J. Kent
Figurinos Jean Louis
Produção Universal. DVD Classic Line e Universal.
P&B, 109 min
***
Gregory Peck = Deus.
Eu ví recentemente pra vender esse dvd no site da classicline, mas reparei que na capa o formato de tela está como 4×3 tela cheia.
Deve estar cortado então, pois o filme é 1965. Nessa época todo mundo ja tava filmando em Cinemascope, Panavision….ou estou enganado ??
Caro Otávio,
Você está enganado, sim. Nem todos os filmes passaram a ser em CinemaScope nos anos 60. De forma alguma.
Não entendo muito bem essa coisa dos números que indicam formato da tela, mas o IMDb informa que o formato de “Miragem” é 1.85 : 1.
Se você quiser checar, esta é a página do IMDb que fala das especificações técnicas do filme: http://www.imdb.com/title/tt0059448/technical?ref_=tt_dt_spec.
Um abraço.
Sérgio
A meu juizo, Mirage é um excelente filme, com um elenco formidável, encabeçado pelo se.pte excelente Gregory Peck e com um Walter Matthau hilariante, como um detetive particular.
A história é tensa bem orquestrada por Edward Dmitrik, A fotografia, em preto e branco, é da melhor qualidade e a trilha sonora é muito bonita. Eu tenho o filme e dvd.