As Neves do Kilimanjaro, de Robert Guédiguian, é um filmaço, uma coisa muito séria, uma obra maior.
O filme trata de diversas das questões mais importantes que há na vida: a crise econômica mundial, o desemprego, a vida em família – nas famílias harmoniosas e nas desestruturadas –, o amor, a amizade, a solidariedade, a violência urbana, o desejo de vingança, a capacidade de perdoar.
Eterno comunista, mas, sobretudo, pelo que mostra em seus filmes, um humanista, um artista apaixonado pelas pessoas, até mesmo por seus erros, seus percalços, o cineasta francês de origem armênia que faz de Marselha o microcosmo que espelha o planeta todo trata desses temas de uma forma adulta, sem sentimentalismo ou pieguice, com uma visão de mundo de imensa generosidade, crença.
Me peguei pensando, enquanto via os 107 curtíssimos minutos de cinema magistral de As Neves do Kilimajaro, que a visão de mundo desse comunista irredutível é incrivelmente próxima da de Frank Capra, o imigrante italiano que mais do qualquer outro soube glorificar o “sonho americano” ao longo do período mais negro da história dos Estados Unidos, a Grande Depressão dos anos 1930.
Para falar de Capra, já usei nas minhas anotações diversas vezes a expressão “o mais sonhador e idealista dos realizadores”.
A mesma expressão poderia ser usada para Robert Guédiguian.
O cineasta armênio-francês, assim como o ítalo-americano, acredita nas pessoas. Na capacidade que elas têm de ser solidárias, mesmo num mundo que privilegia a competição; generosas, mesmo numa sociedade que exalta o egoísmo e acumulação de bens materiais; e mansas, mesmo quando tudo ao redor nos parece empurrar para a violência.
Personagens em que a gente deveria se espelhar
Por essas características todas, As Neves do Kilimanjaro também me fez lembrar outro filme europeu recente, Em Um Mundo Melhor/ Hævnen, de Susanne Bier. Sobre o filme da cineasta dinamarquesa, anotei: “no meio da insanidade, da absoluta loucura, Em um Mundo Melhor mostra réstias de esperança. Há pessoas que resistem, que se recusam a compactuar com o descalabro, a espiral de violência e falta de sentido. Não é absolutamente nada fácil a vida dessas pessoas. De forma alguma. Mas, enquanto elas existirem, não dá para a gente aceitar aquela triste noção de que a humanidade é uma invenção que não deu certo.”
Michel Marteron e sua mulher Marie-Claire, os protagonistas de As Neves do Kilimanjaro, são duas pessoas assim.
Michel e Marie-Claire merecem figurar ao lado do Anton de Em Um Mundo Melhor, do Atticus Finch de O Sol é para Todos/To Kill a Mockinbird, do Philip Schuyler Green de A Luz é para Todos/Gentleman’s Agreement, no panteão dos personagens de grande caráter da história do cinema.
Gente em que a gente deveria se espelhar. Gente que deveríamos dar como exemplo para nossos filhos.
Sorteiam-se os nomes dos trabalhadores que serão demitidos
Robert Guédiguian parece seguir aquela lição de que, se um artista falar de sua aldeia, se falar daquilo que conhece bem, poderá se tornar universal. Seus filmes sempre se passam em Marselha, a cidade em que vive. Como é um eterno comunista, um eterno militante, mostra em suas histórias as vidas de trabalhadores, operários, gente simples, de origem humilde, em geral de pouco estudo e muita altivez. Como alguns outros grandes realizadores – Ingmar Bergman, por exemplo –, trabalha sempre, basicamente, com a mesma equipe, os mesmos atores. Em diversos de seus filmes o trio Jean-Pierre Darroussin, Ariane Ascaride e Gérard Meylan estão entre os protagonistas.
Ariane, não por coincidência, é a mulher do realizador.
As Neves do Kilimanjaro abre – após mini-créditos iniciais, em que vemos apenas os nomes das companhias produtoras e o título do filme – em uma área ao ar livre, junto do mar. Estão ali reunidos os trabalhadores de um estaleiro, e vinte nomes estão sendo sorteados. Michel (o papel de Jean-Pierre Darroussin) vai tirando um papelzinho por vez de dentro de uma caixa, e vai lendo os nomes dos colegas – os que forem sorteados, veremos em seguida, serão demitidos. As 20 demissões foram negociadas pelo sindicato com os patrões, em troca da manutenção dos demais empregos, da manutenção da própria empresa.
Ao tirar o décimo-nono papelzinho, Michel anuncia: Michel Marteron – ele mesmo.
O vigésimo sorteado é um garoto bem jovem, Christophe (Grégoire Leprince-Ringuet).
A câmara vai mostrando os rostos dos homens que estão naquele momento perdendo seus empregos.
Na hora em que Michel anuncia seu próprio nome, o homem ao lado dele, diretor sindical como ele – veremos que é Raoul, interpretado por Gérard Meylan – não consegue conter a exclamação: – “Você está louco!”.
Dois amigos de infância, casados com duas irmãs
Na seqüência seguinte, Michel está retirando seus poucos pertences no local do estaleiro reservado aos trabalhadores – uma foto de uma manifestação popular, uma capa de uma revista de super-heróis, com o Homem-Aranha. Enquanto junta suas coisas e as coloca numa caixa, ele recita o texto de um doutrinador que seguramente sabe de cor desde que era bem jovem:
– “Coragem é vigiar justamente essa máquina que tece, para que nenhum fio se rompa, preparando assim uma ordem social mais vasta e fraterna, em que a máquina será a empregada de trabalhadores tornados livres.”
Atrás dele, Raoul reclama do absurdo que foi Michel ter se incluído na lista para o sorteio:
– “Como representante sindical, você sabe que poderia ter tirado seu nome da lista.”
E Michel: – “Seria um privilégio. Eu não queria isso.”
Veremos que Michel e Raoul são amigos desde sempre, desde que eram garotos começando a trabalhar duro – e já se envolvendo nas lutas sindicais. Casaram-se com duas irmãs, Michel com Marie-Claire (o papel de Ariane Ascaride), a mais velha, mais estudada, e Raoul com Denise (Marilyne Canto), a mais nova, mais bela e mais frágil.
Grandes filmes são feitos também de pequenos detalhes
Ao final da sua primeira tarde de desempregado, Michel vai até a casa em que Marie-Claire trabalha como cuidadora de uma senhora idosa. Quando jovem, Marie-Claire queria ser enfermeira; veremos mais tarde que ela chegou a iniciar o curso, mas largou quando se casou e teve os dois filhos. Agora, quando ela e o marido estão aí na faixa dos 50 e tantos anos, prestes a comemorar 30 anos de casamento, Marie-Claire trabalha como cuidadora em casas de idosos, uma casa a cada dia da semana. Faz companhia, mas também executa outras tarefas nas casas – às vezes cozinha, limpa, arruma.
E então Michel vai se encontrar com a mulher.
No caminho, numa rua um tanto íngreme, um filete de água escorre junto ao meio-fio. Descendo na correnteza vem um barquinho de papel, desses que as crianças gostam de fazer.
O homem que passou a vida trabalhando em estaleiro, construindo navios, e agora não tem mais emprego, se abaixa e pega nas mãos o barquinho de papel.
Grandes filmes são feitos também de pequenos detalhes.
Na festa dos 30 anos de casamento, o casal ganha uma viagem à África
No fim de semana, vão todos para a praia: Michel, Marie-Claire, os dois filhos, Flo (Anaïs Demoustier) e Gilles (Adrien Jolivet), a mulher deste, Maryse (Emilie Piponnier), o marido de Flo, Jeannot (Raphaël Hidrot), os três netinhos – dois são filhos de Flo, uma é filha de Gilles.
Enquanto Michel brinca na areia com os netinhos, os dois filhos conversam com Marie-Claire. Estão preocupados com o pai, querem saber como ele está enfrentando o desemprego. Sabem que vai ser difícil, quase impossível, ele encontrar novo emprego, com a situação atual da economia, empregos sempre sendo cortados, nunca vagas sendo abertas.
Michel tem dias em que está bem, tem dias em que não consegue evitar a tristeza, uma pequena depressão.
Procura coisas para fazer. Passa a cuidar da cozinha da casa. Às vezes vai à casa do filho Gilles, construir no quintal o que eles chamam de pérgola.
O casal visita a casa de Raoul e Denise, estes visitam a casa de Michel e Marie-Claire.
Filhos e amigos preparam uma grande festa para comemorar os 30 anos de casamento de Michel e Marie-Claire. A festa se realiza na área do próprio estaleiro reservada ao lazer dos funcionários. Michel comenta com Raoul que foi gentileza permitirem fazer a festa lá – afinal, ele já não é mais funcionário. Raoul brinca: “Queria ver eles se negarem. Eu lideraria uma greve”.
Há dezenas de pessoas na festa. Foram convidados todos os 19 que perderam o emprego juntamente com Michel.
O casal ganha de presente uma caixinha de madeira. É um presente dos filhos e de todos os amigos. Dentro da caixinha há um monte de notas, dos valores mais variados – e duas passagens e vouchers para um cruzeiro até a Tanzânia, junto do Kilimanjaro.
O grupo canta para Michel e Marie-Claire uma canção que fala das neves do Kilimanjaro. (Gosto muito de música francesa, mas não conhecia a canção, nem o autor, nem o cantor.)
Do amigo Raoul, Michel ganha de presente uma antiquíssima edição de uma revista em quadrinhos do Homem-Aranha. Raoul conta que encontrou a revista num sebo – na segunda página, há a assinatura de Michel quando muito jovem. A revista, e a assinatura de Michel nela, serão muito importantes na trama que virá a seguir.
Um fato chocante, aos 30 minutos de filme, muda tudo
Quando estamos com exatos 30 minutos de filme, há um fato extraordinário, chocante, absurdo.
Esse fato vai determinar tudo o que acontecerá a partir daí na história.
Exatamente por isso, porque acontece após meia hora de filme, porque muda tudo – e apesar de as sinopses, inclusive a da capinha do DVD, revelarem o que é esse fato –, eu não vou falar dele. Considero que seria um spoiler. Tenho tentado, cada vez mais, evitar spoilers nos meus comentários sobre os filmes.
O mundo seria melhor se houvesse mais gente como Michel e Marie-Claire
Lady Jane, o filme de 2008 de Guédiguian – com os mesmos atores de As Neves do Kilimanjaro, Jean-Pierre Darroussin, Ariane Ascaride e Gérard Meylan –, é uma parábola sobre vingança, usando como cenário o submundo criminoso de Marselha e região, e, como pano de fundo, a eterna guerra árabes-judeus.
Ao final de Lady Jane, vemos na tela um provérbio da terra de seus antepassados armênios, que vem do século XI, mil anos atrás: “Aquele que busca se vingar é como a mosca que bate contra o vidro sem ver que a porta está escancarada”.
A sede de vingança e a capacidade de perdoar – essas duas posições contrárias, opostas, antípodas – são o cerne de As Neves do Kilimanjaro.
Depois que têm suas vidas dramaticamente alteradas pelo fato extraordinário, Michel e Marie-Claire conversam sobre seu passado, o caminho das pessoas. Michel pergunta à mulher o que será que pensaria do casal um jovem que os visse como estão hoje: vivendo numa casa confortável – sem qualquer luxo, mas com todas as necessidades básicas satisfeitas. “Pequenos burgueses. Diriam que somos pequenos burgueses”.
Os personagens de Guédiguian – gente humilde, trabalhadora, que deu duro durante mais de três décadas para conseguir ter uma existência digna, em que não há falta de nada básico – parecem ter uma certa vergonha de sua situação. Mesmo que ela seja resultado de muito trabalho árduo, honesto. Mesmo que eles não tenham prejudicado ninguém para conseguir o que agora têm.
Michel e Marie-Claire não conseguem conceber a idéia de que haja gente que não tem as coisas mais básicas da vida.
São pessoas generosas. Não são seguidoras da Lei do Talião, aquela do olho por olho, dente por dente, se você me atacar com uma faca eu te ataco com um facão, se você me atacar com um facão eu te ataco com um revólver, se você me atacar com uma espingarda eu te ataco com uma bomba.
Fiquei pensando que, se houvesse no mundo alguns milhares de comunistas como Robert Guédiguian, talvez o comunismo desse certo.
Mas de uma coisa não há qualquer dúvida: se existissem muito mais pessoas como Michel e Marie-Claire, o mundo seguramente seria muito melhor.
Anotação em dezembro de 2012
As Neves do Kilimanjaro/Les Neiges du Kilimandjaro
De Robert Guédiguian, França, 2011
Com Jean-Pierre Darroussin (Michel), Ariane Ascaride (Marie-Claire), e Gérard Meylan (Raoul),
e Marilyne Canto (Denise), Grégoire Leprince-Ringuet (Christophe), Anaïs Demoustier (Flo), Adrien Jolivet (Gilles), Emilie Piponnier (Maryse), Raphaël Hidrot (Jeannot), Robinson Stévenin (o comissário), Karole Rocher (a mãe de Christophe), Julie-Marie Parmentier (Agnès), Yann Loubatière (Jules), Jean-Baptiste Fonck (Martin),
Roteiro Robert Guédiguian e Jean-Louis Milesi
Inspirado no poema “Les pauvres gens”, de Victor Hugo
Fotografia Pierre Milon
Montagem Bernard Sasia
Produção Agat Films & Cie, France 3 Cinéma, Canal+, Les Films de la Belle de Mai, CinéCinéma, France Télévision. DVD Imovision.
Cor, 107 min
****
Vi este filme no dia 7 deste mes. Um domingo.
Deixei anotado e dou minha opinião agora.
Muito bonita a amizade entre aqueles dois homens, assim como a união dos dois casais.
Michel tinha seu modo de pensar, não quería privilégios, por isso juntou seu nome aos demais que foram sorteados. Justo por isso achei muito certa sua decisão, uma vez que, lá na frente ele mesmo ficou em dúvida se tería agido certo.
Concordo contigo, Sergio, que se houvesse mais gente como o Michel e a Marie-Claire o mundo seria melhor mas,ainda assim uma coisa eu não faría : retirar a queixa.
Uma mulher ficou traumatizada com aquele ato de violência.
Até a vida do casal mudou.
Ser demitido não era motivo para um idiota fazer o que fez. Já pensou se os outros fizessem o mesmo?
PODE SER SPOILER QUEM NÃO VIU, NÃO LEIA.
Quando o Christophe joga na cara do Michel sôbre sua aposentadoria, a pré aposentadoria sua casa, cartão de crédito, etc …
Ora bolas !! o cara lutou a vida tôda para ter ao menos isso. Depois, quando Michel conversa com ele quando foi preso, o cara ainda usa de tôda aquela arrogância, aquela altivez. Quem ele pensa que era ? Mereceu e merecia coisa pior.
Uma coisa que achei um pouco contraditória é que o Michel se dizia antiamericano, dizia que o ingles era a lingua dos colonizadores e no entanto tinha no Homem-Aranha seu ídolo.
Honestamente,a decisão que o Michel tomou,eu já tinha decidido fazer aquilo antes mesmo dele. Ainda que ao desagrado de seus filhos era o mais sensato fazer naquela situação.
A música que encerra o filme é muito bonita.
Muito lindo !! Um filmaço !!
Um abraço !!
Esse filme rolou muito na NET sem que eu me interessasse, pensando tratar-se de algo repetitivo com o antigo As neves… Finalmente, resolvi ler o resumo e constatei que estava enganada. Gostei muito do filme, uma estória de esforço, trabalho e…muita solidariedade. Injustiçados estariam perdendo o prêmio, não fosse o destino que lhe deram,muito nobre,definitivamente solidários com o infortúnio dos menores.
olá, Sérgio! Fico pensando se ainda há pessoas como esse casal… só vivendo mesmo pra podermos responder sobre nós mesmos, não é? O caráter de Michel já fica claro no momento do sorteio em que ele prefere não ser favorecido e por aí vai, a cada momento um e outro mostrando o quão generosos podem ser (podemos ser?).
abraço
É isso mesmo, Patrícia.
As pessoas são capazes das coisas mais vis – e também das melhores, das mais sublimes.
É como eu disse no intertítulo: o mundo seria melhor se houvesse mais gente como Michel e Marie-Claire.
Um abraço.
Sérgio