Uma boa comédia romântica do cinemão comercial francês, com uma trama interessante, inteligente, o charme de Audrey Tautou e o talento de Nathalie Baye. E, de quebra, uma saudável, gostosa, bem-vinda repulsa ao racismo e à xenofobia.
Émilie (o papel de Audrey Tautou) é dona de um salão de beleza numa bela pequena cidade, com a sócia Sylvia (Stéphanie Lagarde). Não percebe, não tem a mínima idéia, mas ela é o objeto de adoração de Jean (Sami Bouajila), um de seus empregados, o faz-tudo do salão.
Quando a narrativa começa, Jean está consertando alguns vidros quebrados de uma janela interna do salão, em que cada pedaço de vidro, do tamanho de um azulejo, tem uma cor – e a câmara do diretor Pierre Salvadori, como se fosse os olhos de Jean, observa Émilie do outro lado, ora azulada, ora vermelha.
Nesse início, Uma Doce Mentira/Des Vrais Mensonges tem quase tanta cor quanto os filmes dos magos Jacques Demy e Agnès Varda, que também focalizavam, como este aqui, pessoas simples, normais, gente do povo, gente como a gente.
Em seu apartamento, Jean, o faz-tudo, o empregado para serviços braçais, escreve cartas de amor a Émilie. É exigente: escreve uma e joga fora, começa outra e joga fora. Quando finalmente faz uma carta que considera digna de Émilie, a coloca no correio. É uma carta anônima, é claro – e é uma maravilha de texto, escrita por quem conhece a língua, quem teve muito estudo, e o tom é suavemente poético, encantadoramente apaixonado.
As pequenas trapaças do destino fazem com que Émilie receba a carta – no meio daquela porção de cartas comerciais inúteis, folhetos, propagandas – num momento em que o próprio Jean está no escritório dela, consertando alguma coisa. O amante anônimo, o apaixonado envergonhado observa pelo canto dos olhos a patroa, a amada, abrir a carta, passar os olhos rapidamente pelas duas, três folhas de papel escritas à mão, amassá-las, e jogá-las em direção à cesta de lixo. Ela erra a pontaria, e a carta declaração de amor cai no chão bem perto de onde Jean está – e Émilie pede a ele que a jogue no lixo.
Nathalie Baye faz uma mulher ainda jovem que foi abandonada pelo marido e feneceu
E então vamos conhecer o terceiro personagem central da história – a qual é de autoria do diretor Pierre Salvadori e de Benoît Graffin, que assinam juntos o roteiro. É Maddy (o papel de Nathalie Baye), a mãe de Émilie.
Maddy não está nada bem. Quatro anos antes, havia sido abandonada pelo marido, um artista, escultor – mas ainda não se recuperara da perda. Na verdade, ainda esperava que o ex-marido voltasse para ela. Esperança absolutamente vã, até porque o sujeito a havia trocado por uma garota mais nova que a filha, Émilie, e a nova mulher estava agora grávida. Veremos depois que o pai de Émilie não tem coragem de dar a notícia da gravidez para a ex-mulher, e quer que a filha faça isso.
E então Maddy é aquele pobre tipo de mulher que feneceu, depois de ter sido abandonada pelo marido. Ainda bela, ainda com muito da vida pela frente, entregou-se à tristeza, ao desânimo. Feneceu.
E Émilie tenta de todas as maneiras fazer com que a mãe recupere o gosto pela vida – mas suas tentativas sempre são infrutíferas.
Aí Émilie tem a idéia. Cata na lata de lixo de seu escritório a carta do apaixonado anônimo – para a qual não tinha dado a menor importância -, e a transcreve no notebook…
(Um notebook da Apple. Acho isso fantástico. Segundo qualquer estatística, de cada dez computadores pessoais que há no mundo, apenas é um é Macintosh. Mas em todos os filmes, americanos, franceses, o que for, os personagens só usam Mac. Fantástico.)
… transcreve a carta no notebook, imprime e põe no correio, endereçada a Maddy.
Ao ler uma declaração de amor que não era para ela, Maddy desabrocha, rejuvenesce
Émilie não tinha dado a mínima para a carta, repito. Leu às pressas e jogou no lixo. Não parou um segundo para pensar que tinha um admirador, um sujeito apaixonado por ela – e quem poderia ser, afinal?
Com sua mãe ocorre o contrário. Ao ler a bela carta, bem escrita, e escrita com paixão, Maddy desabrocha, rejuvenesce, passa a saltitar feliz – e vai fazer tudo para descobrir quem é o apaixonado anônimo.
Comédia romântica pode ser inteligente, não precisa necessariamente ser feita de clichês
Uma bela sacada dos autores, uma trama gostosa, inteligente. Olha aí: comédia romântica em geral é feita de clichês, mas não necessariamente. Cabem inteligência, belas sacadas, novidades, nessa coisa tão boba e tão absolutamente indispensável como o ar que respiramos treze vezes por minuto que é a comédia romântica.
E o pulo do gato é o personagem interpretado por Sami Bouajila, o Jean da história. Crioulo, descendente de árabes, imigrante ou filho de imigrantes, contratado como faz-tudo no salão de beleza, Jean era, para Émilie, um personagem cinzento, quase invisível. Boa mão de obra barata, e só. E no entanto – Émilie, suas colegas no salão de beleza e o espectador descobrirão quando estamos aí com uns 20, talvez 30 minutos de filme – Jean é muito diferente daquilo que parece ser. Tem uma formação impecável, cursou boas escolas, boa faculdade no exterior – tem qualificação profissional 200 vezes maior que a da própria Émilie, o que a fará ter vergonha dele, a partir da descoberta de seu currículo.
É uma absoluta delícia ver a francesa “pura”, branca, filha, neta e bisneta de franceses, se atrapalhar com os tempos verbais diante daquele crioulo, filho de imigrantes, que escondia uma formação cultural absolutamente sólida.
Dois detalhes: o lugar da ação, e o título brasileiro
A cidadezinha provinciana onde se passa a ação é um absoluto encanto. Tem aqueles belos prédios quase centenários de cinco andares, amplas praças, um rio, braços de mar. Mas não se diz, em momento algum, o nome da cidade. O que me pareceu bastante estranho.
Como todos, ou no mínimo quase todos os filmes franceses, Uma Doce Mentira tem o apoio, o suporte da região administrativa em que foi feito – e consta, nos créditos iniciais e nos finais, o apoio da Région Languedoc-Roussillon. É a região do extremo Sudeste do Hexágono, o Hexagone, como os franceses gostam de chamar o país – fica no cantinho sul da costa do Mediterrâneo, colado à Espanha.
E é um lugar belo, encantador. Por que raios a região deu apoio ao filme, sem que sequer uma vez fosse dito o nome daquela cidade? Mistério neste mundo de mistérios.
Um segundo detalhinho: por que raios os distribuidores brasileiros insistem, tantas vezes, em fugir dos títulos originais dos filmes? Tudo bem: Uma Doce Mentira não é um título absurdo; está próximo do que diz o filme. Mas por que não Mentiras Verdadeiras, ou Mentiras de Verdade, como o original Des Vrais Mensonges?
Os distribuidores americanos também criaram um pouquinho: no mercado americano, o filme se chamou Beautiful Lies. Talvez porque True Lies tenha sido o título daquele filme em que a ótima Jamie Lee Curtis contracena com Arnold Schwarzenegger. Sei lá – problema delas. Mas por que não Mentiras Verdadeiras?
Os Cahiers muito certamente não vão admirar Pierre Salvadori. Mais uma razão para respeitá-lo
O autor e diretor Pierre Salvadori é um francês nascido na Tunísia, em 1964. Este aqui é seu décimo filme como diretor. Em 2006, havia feito Amar… Não Tem Preço/Hors de Prix, outra comedinha romântica estrelada por Audrey Tautou, ao lado de Gad Elmaleh, ator extremamente popular, nascido no Marrocos.
Sami Bouajila nasceu na França, filho de imigrantes tunisianos.
Um diretor tunisiano, que gosta de trabalhar com atores também de origem africana, das ex-colônias francesas na África.
Não é à toa que tenha escolhido um tema que é uma repulsa ao racismo, à xenofobia, como pano de fundo para essa comedinha romântica.
Não terá adoradores nos Cahiers du Cinéma, muito provavelmente, esse Pierre Salvadori. Tem a minha admiração. Tiro meu chapéu para Pierre Salvadori. Esta aqui é uma delícia de comédia romântica, dessas que provam – os frescos que acham que cinema bom é só frescura pseudo-intelectual que me perdõem – que dá para fazer comédia romântica inteligente, sensível.
Anotação em janeiro de 2012
Uma Doce Mentira/Des Vrais Mensonges
De Pierre Salvadori, França, 2010
Audrey Tautou (Émilie Dandrieux), Nathalie Baye (Maddy Dandrieux), Sami Bouajila (Jean), Stéphanie Lagarde (Sylvia), Judith Chemla (Paulette), Daniel Duval (o pai de Émilie)
Argumento e roteiro Pierre Salvadori e Benoît Graffin
Diálogos Pierre Salvadori
Fotografia Gilles Henry
Música Philippe Eidel
Produção Les Films Pelléas, TF1 Films Production, Tovo Films
Canal+, com apoi da Région Languedoc-Roussillon. DVD Vinny Filmes.
Cor, 105 min.
***
Título em inglês: Beautiful Lies
Um bom filme, acima da média das comédias românticas, mas achei um pouco cansativa a história envolvendo a mãe da Émilie. O filme também é um pouco longo demais para uma comédia romântica, isso meio que tem virado moda e deixa as tramas arrastadas quando chegam a um certo ponto, pois não há tanto assim a se dizer num enredo desse tipo.
Acho que podiam ter desenvolvido melhor o personagem do Jean, que aliás é bem bonitão. A Audrey Tautou achei magra demais, não sei se o cabelo curtíssimo ressaltou a magreza exagerada ou se a anorexia pegou também as atrizes francesas.
Faltou um pouco mais de leveza ao filme, um pouco mais de agilidade. Mas alguns pontos foram engraçados: como o fato de ela achar que o velhinho da esquina é quem tinha escrito a carta; devido ao seu pouco estudo, acredito eu, achou-a rebuscada demais pra ter sido escrita por alguém mais jovem.
Outro ponto foi ela ter ficado com vergonha do Jean a partir do momento em que descobre que ele é super estudado e fala várias línguas. Ficou com medo até de errar os tempos verbais, como você falou. Aliás, dizem que os franceses são muito chatos com a língua, e há preconceito mesmo entre eles com quem fala errado ou conjuga mal os verbos.
Adorei sua observação sobre os computadores da Apple usados em todos os filmes. Também acho isso fantástico, e confesso que tenho birra da marca.