Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios / Otac na sluzbenom putu

3.0 out of 5.0 stars

Ao ser lançado, em 1985, Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios foi um imenso sucesso de crítica, e transformou o sérvio Emir Kusturica em nome internacionalmente respeitado. Na revisão, agora, passados quase 30 anos, o filme não me pareceu mais tão excelente assim.

Não que seja um filme ruim, de forma alguma. Sem qualquer dúvida, é belo, forte, importante, de extrema coragem.

Mas tudo é relativo. Alguns filmes permanecem imunes ao passar do tempo, alguns melhoram a cada nova revisão. Para mim, não foi esse o caso do filme de Kusturica, que, na época, ganhou a Palma de Ouro em Cannes e teve indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro.
Creio (claro que posso estar errado; a gente sempre pode estar errado) que boa parte do impacto do filme deveu-se ao contexto, à época, às questões políticas. Era um filme feito na Iugoslávia comunista, denunciando o totalitarismo comunista, as prisões arbitrárias, a atmosfera de total falta de liberdade, em que familiares deduravam familiares que ousavam falar alguma frase contra o governo, o Partido, o todo-poderoso Marechal Tito, o todo-poderoso grão-imperador do Império Comunista Europeu Josef Stálin. (O filme narra fatos passados entre 1950 e 1952, quando Stálin imperava impávido colosso.)

Nisso, na coragem de fazer a denúncia do totalitarismo ainda sob o governo comunista, está, acho eu, a maior qualidade do filme.

Toda obra que expõe as mazelas dos totalitarismos é importante, e sempre bem-vinda. Após o desmoronamento do império soviético, fizeram-se, ainda bem, aleluia, diversos filmes denunciando os horrores daqueles tempos – na Romênia, na Geórgia, na Alemanha, na Hungria. Claro que é muito mais fácil fazer a denúncia depois da queda da ditadura – e, nesse sentido, Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios é um marco histórico.

Um leve comentário sobre uma charge – e o pai de família cai em desgraça

No entanto, talvez exatamente por não poder dizer tudo às claras, para escapar da censura ainda vigente, e também, em grande parte, por abordar uma realidade especificamente iugoslava que desconheço, a narrativa me pareceu um tanto difícil, obscura, às vezes até um pouco desconexa.

Pode ser simplesmente por causa da minha ignorância. Eu de fato desconheço como e por que se deu, no final dos anos 40 e início dos 50, o afastamento entre o Marechal Tito e Stálin– e esse é exatamente o pano de fundo da história da família protagonista do filme.

Pelo que leio agora, após ter revisto o filme, exatamente por essa época, entre 1948 e 1952, o governo do Marechal Tito se distanciou da batuta de Stálin, e foi acusado de anti-soviético. De uma forma grosseira, simplista, pode-se dizer que os membros do Partido Comunista iugoslavo se dividiram entre os titistas e os stalinistas. Os apoiadores de Stálin na Iugoslávia, naquele momento, se deram mal.

A desgraça cai sobre Mesa (Miki Manojlovic), o pai do título, por causa de seu leve comentário a respeito de uma charge publicada por um jornal: em uma sala, Marx senta-se à mesa de trabalho, sendo observado por Stálin, num retrato oficial – ou seja, o contrário do que deveria ser. A charge, portanto, acusava Stálin de se considerar mais importante que Marx.

Mesa comenta sobre a charge com sua amante, a bela Ankica (Mira Furlan), durante uma viagem de trem, em que ela cobra dele a cobrança que fazem quase todas as amantes: quando é que você vai se divorciar?

Ainda no trem, Mesa – que sempre viaja a negócios, embora sua atividade profissional não fique exatamente clara – aproveita para comprar, de um negociante do mercado negro, dois bastões de batom, um para a amante, um para a mulher, Sena (Mirjana Karanovic).

Pode parecer um detalhe menor, mas mostrar mercado negro, em um filme feito em país ainda comunista, era mais uma das muitas provas de coragem de Emir Kusturica.

Para se vingar do amante, a mulher dedura o comentário dele

O espectador conhece então a família de Mesa. Ele e Sena – que fica feliz da vida com o presente, o batom, objeto obviamente raro, já que dispensável, indício de preocupações fúteis, pequeno-burgesas, numa sociedade comunista – têm dois filhos. O mais velho, creio que Zijah (Mustafa Nadarevic), míope de usar óculos de fundo de garrafa, está aí com uns 10, talvez 12 anos. O mais novo, Malik (Moreno D’E Bartolli), de uns 7 anos, é a rigor o protagonista central da história – é através de seus olhos que boa parte da trama é vista, e contada ao espectador.

Nessa época, o irmão de Sena, portanto cunhado de Mesa, ocupava lugar de alguma importância dentro da estrutura do Partido.

Para se vingar de Mesa, que dava mostras de que não iria mesmo se divorciar, a bela amante conta para o cunhado a frase que ele havia dito no trem ao ver a charge – algo do tipo “eles estão indo longe demais”.

A frase – um leve tom pró-Stálin, e portanto anti-titista –, relatada pelo cunhado a outras autoridades, bastará para levar Mesa a um período de trabalhos forçados numa mina.

Para explicar a ausência do marido, Sena diz aos filhos que Mesa está em viagem de negócios.

Um detalhe: parece que a tal charge que criticava o poder de Stálin foi de fato publicada em 1950 por um jornal – o Politika – da Sérvia, então uma das várias nações que formavam a Iugoslávia

Um certo exagero nas cenas de brigas e de sexo – mas as interpretações são excelentes

Seguramente se deve mesmo à minha ignorância sobre essas questões específicas locais o fato de que me pareceu pouco compreensível o que acontece após o período de prisão de Mesa – de repente ele se tornará amigo de um chefe local do Partido, e terá, por causa dessa amizade, algumas regalias, como noitadas com prostitutas.

Há, no entanto, muita coisa no filme que independe dos conhecimentos do espectador sobre as minudências da briga titistas-stalinistas. Há sempre um rádio ligado na casa da família de Mesa e Sena, transmitindo jogos de futebol em que a Iugoslávia ousava derrotar a seleção da União Soviética: eta audácia danada dos bofes!

E os conflitos familiares após o irmão de Sena ter mandado o cunhado para os trabalhados forçados são muito bem mostrados. Assim como é muitíssimo bem mostrado todo o clima paranóico de tensão e medo das pessoas, que vivem como se estivessem sendo a todo momento observadas pelos agentes do poder, e, por qualquer passo em falso, poderiam ser presas, afastadas de sua família, submetidas a trabalhos forçados.

E se de um lado Kusturica exagera um tanto nas cenas das brigas familiares e das relações e insinuações sexuais, de outro a qualidade de todo o elenco é de deixar o espectador babando. Os atores principais eram todos experientes, e estão extraordinários – Miki Manojlovic como o pai, Mirjana Karanovic como a mãe, Mira Furlan como a amante. Mas é a atuação das crianças que mais surpreende. O garotinho Moreno D’E Bartolli tem uma interpretação inesquecível como Malik, o filho mais jovem.

“Kusturica nos leva para dentro da vida de seus personagens de maneira íntima e afetuosa”

“Um testemunho pleno de humor sobre a luta na Iugoslávia entre titistas e stalinistas”, diz o Guide des Films de Jean Tulard, que é extremamente rigoroso nas classificações, e dá ao filme 3 estrelas em 4. “Este filme intimista recebeu a Palma de Ouro em Cannes em 1985”.

Richard Skorman, o organizador do livro Off-Hollywood Movies, encantou-se com o filme ainda mais que o guia de Tulard. Eis o que ele diz, numa tradução não ipsis literis:

Feito com pequeno orçamento pelo desconhecido diretor iugoslavo Emir Kusturica, When Father Was Away on Business foi o surpreendente vencedor do Festival de Cannes de 1985. Passado em Sarajevo em 1950, o filme é narrado por Malik (Moreno D’E Bartolli), um garotinho sonâmbulo de nove anos que ama sua família em primeiro lugar e o futebol em segundo. O pai do garoto, Mesa (Miki Manojlovic), é um membro menor do Partido e devotado pai de família cujo gosto por aventuras extra-conjugais o coloca em perigo. Sua amante rejeitada conta ao cunhado de Mesa (um poderoso burocrata do Partido) uma observação daquele a respeito de uma charge política. Esse tropeço da língua, cometido na Iugoslávia nos tensos meses de rompimento de Tito com Stálin, custará caro. Seu cunhado o denuncia, e os membros proeminentes do Partido o mandam para um campo de trabalhos forçados para que tenha uma reeducação política. A explicação da mãe para Malik é de que “papai saiu em viagem de negócios’.

E continua o texto do livro Off-Hollywood Movies:

Até que papai é exilado, o filme é uma brincadeira leve sobre uma Iugoslávia levemente excêntrica. A família de Malik passa seus dias entre brigas e reconciliações, entre tapas e beijos, aparentemente alheios a qualquer possibilidade de um perigo maior. Mas quando papai vai para o campo de trabalho, uma nuvem negra desce sobre ela. Como no filme do diretor checo Jiri Menzel My Sweet Little Village, a magia do filme é que Kusturica nos leva para dentro da vida de seus personagens de maneira íntima e afetuosa. As atuações são excelentes, e os atores principais são bem desenvolvidos tanto do ponto de vista pessoal quanto político. Como nós os conhecemos tão bem, a história que afeta suas vidas nos parece particularmente brutal. O filme, com duas horas e meia de duração, contém algumas cenas que se alongam mais do que deveriam. Mas o filme é tão rico de personagens memoráveis e de anedotas culturais que seu comprimento não deve afastar você de vê-lo.

Kusturica estudou cinema em Praga e já no filme de estréia foi premiado em Veneza

Me parece uma bela apreciação do filme, a desse americano que gosta de filmes estrangeiros. É bem colocada, por exemplo, a questão da duração do filme: se fosse mais velho, mais experiente, muito provavelmente Kusturica teria enxugado um pouquinho, cortado um pouquinho em algumas seqüências que de fato se alongam demais, como a do casamento, quase ao final.

Em outro alfarrábio, o Baseline, um banco de dados americano, vejo que Kusturica – nascido em Sarajevo, em 1955 – estudou cinema em Praga. Praga e Lodz, na Polônia, eram, que eu saiba, as sedes das duas grandes escolas de cinema dos países então comunistas.

Kusturica já estreou fazendo sucesso nos decadentes países capitalistas. Seu primeiro longa-metragem, Você se lembra de Dolly Bell, de 1981, sobre o rito de passagem da infância para a adolescência, em Sarajevo no início dos anos 60, foi premiado no Festival de Veneza como melhor filme de estréia. Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, seu segundo filme, ganhou, como já foi dito, a Palma de Ouro em Cannes, mais uma indicação ao Oscar. Em 1992, filmaria nos Estados Unidos Arizona Dream, e em 1995 voltaria a ganhar a Palma de Ouro em Cannes por Underground.

Daquele tipo de diretor que às vezes gosta de se aventurar como ator – como John Huston ou Otto Preminger, só para lembrar dois exemplos finos -, em 2000 Kusturica teve uma interpretação extraordinária como um pescador pobre, iletrado, que, numa noite de bebedeira, assassina um homem e é condenado à morte na guilhotina, em A Viúva de Saint-Pierre, de Patrice Leconte.

Um filme importante, para ser visto e revisto

Um registro necessário. Não me lembro se isso foi falado na época, mas o diretor brasileiro Cao Hamburguer evidentemente se inspirou no filme de Kusturica quando fez o seu ótimo O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de 2006. Não anotei nada sobre o filme quando o vi, na época do lançamento; preciso revê-lo para comentar aqui. É um filme belíssimo; como o de Kusturica, mostra uma realidade política através dos olhos de um garoto. O garoto, o personagem central, é apaixonado por futebol, como este Malik de Kusturica. Como no filme iugoslavo, o título indica a mentira contada pelos mais velhos ao garoto – os pais do menino brasileiro se esconderam para não serem presos pela ditadura dos milicos, nos anos 60/70.

Então, para concluir: não gostei tanto de Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios quanto da primeira vez. Mas já disse, e repito, que em boa parte isso se deveu à minha ignorância sobre História. É um filme importante, corajoso, e com muitas qualidades. Deve ser visto e revisto.

Anotação em agosto de 2012

Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios/Otac na sluzbenom putu

De Emir Kusturica, Iugoslávia, 1985

Com Moreno D’E Bartolli (Malik), Miki Manojlovic (Mesa, o pai), Mirjana Karanovic (Sena, a mãe), Mustafa Nadarevic (Zijah Zijo), Mira Furlan (Ankica Vidmar), Predrag Lakovic (Franjo), Aleksandar Dorcev (Dr. Ljahaov)

Roteiro Abdulah Sidran

Fotografia Vilko Filac

Música Zoran Simjanovic

Produção Centar Film, Forum Sarajevo. DVD Lume Filmes.

Cor, 136 min

R, ***

Título em Portugual: O Pai Foi em Viagem de Negócios. Título nos EUA: When Father Was Away on Business.

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