O Homem Invisível, o livro, lançado em 1897, é uma das obras mais famosas de H. G. Wells, ao lado de Guerra dos Mundos e A Máquina do Tempo – livros que volta e meia são refilmados. O Homem Invisível, o filme, feito pelo respeitadíssimo James Whale para a Universal em 1933, é tido como uma beleza.
No entanto, me deixou bastante decepcionado.
Como é um filme de indiscutível importância histórica, e minhas opiniões, como gosto sempre de dizer, valem no máximo uns três guaranis furados, começo então com as opiniões dos outros.
Diz Pauline Kael, na tradução de Sérgio Augusto para a edição brasileira de 1001 Noites no Cinema:
“James Whale, o diretor de Frankenstein, fez esta versão elegantemente rebuscada da fantasia de H. G. Wells, com uma bem escrita adaptação de R. C. Sheriff (e Philip Wylie, embora não conste dos créditos); o diálogo é de suma importância, já que o astro (Claude Rains) permanece desencarnado durante a maior parte do filme, e toda a sua interpretação é feita pela voz. Rains interpreta um cientista que efetua experiências com uma droga que, tornando-o invisível, também o torna um assassino megalomaníaco. Meio pobre, mas impressionantemente bem-feito, com inteligentes efeitos especiais (de John P. Fulton) e traços daquele humor de Whale que deu vida a A Casa Sinistra e A Noiva de Frankenstein. Com a loura e peituda Gloria Stuart – uma heroína corpulenta para um herói sem corpo – e Dudley Digges, Una O’Connor, William Harrigan, Henry Travers e E. E. Clive.”
Um ator principal que não aparece – seu rosto é visto em uma única tomada!
Humm… O astro (Claude Rains) permanece desencarnado durante a maior parte do filme”. Na verdade, é mais que isso. Claude Rains permanece desencarnado o filme inteirinho. Há apenas uma tomada em que aparece seu rosto – uma única tomada.
Este é um a caso absolutamente sui generis de ator principal cujo rosto não aparece ao longo de praticamente todo o filme.
Sim, porque, quando a ação começa, o protagonista, Jack Griffin, o cientista, já tomou a droga que o deixou invisível. Deixou o laboratório em que trabalhava como um dos dois assistentes do dr. Cranley (Henry Travers), e foi se hospedar numa estalagem na cidadezinha de Iping.
Chega no bar da estalagem no meio de uma nevasca rigorosa; está todo encapotado, com luvas, chapéu, todo o rosto enfaixado com camadas de uma espécie de gaze, os olhos escondidos atrás de grandes óculos.
E é assim que o protagonista da história aparecerá ao longo de todo o filme (com exceção, repito, de apenas uma única tomada): ou inteiramente vestido e o rosto enfaixado, ou então invisível.
Desencarnado. Claude Rains, o ator que faz o protagonista da história, simples e literalmente não dá as caras no filme.
Não era um astro, ainda. Foi praticamente sua estréia; nascido em Londres em 1889 (oito anos, portanto, antes do lançamento do livro de Wells), Claude Rains havia trabalhado antes em um único filme, Build Thy House, em 1920. A partir de O Homem Invisível, porém, faria um filme atrás do outro. Já havia trabalhado com Frank Capra (A Mulher Faz o Homem, 1939) e com o próprio Michael Curtiz (As Aventuras de Robin Hood, 1938, e O Gavião do Mar, 1940), quando, em 1942, fez o capitão Louis Renault de Casablanca, um dos melhores papéis de sua longa carreira. Morreria aos 77 anos, em 1967.
Depois deste filme, houve uma enxurrada de homens invisíveis
Mais opiniões e fatos.
Leonard Maltin dá 3.5 estrelas em 4: “A fantasia de H. G. Wells se materializa brilhantemente na tela na história do cientista louco que se faz invisível, causando destruição em um vilarejo do interior da Inglaterra. A estréia de Rains como protagonista é datada mas ainda agradável.”
O Dicionário de Filmes de Georges Sadoul – uma obra que não pretende ser enciclopédica, e comenta um número bem menor de filmes que os demais guias – traz um texto longo sobre o filme. Cita um outro autor, Pail Gilson: “Os objetos parecem encantados. Vê-se um cigarro acender-se por si mesmo, um pijama enfiar-se magicamente entre os lençóis da cama. Tirando as bandagens que lhe servem de máscara trágica, ele se torna um decapitado falante.”
E o próprio Sadoul acrescenta: “Foi realmente maravilhosa esta obra-prima de trucagem e de terror do cinema americano, que, fiel ao belo romance que adaptava, teve merecido sucesso no mundo inteiro, principalmente na URSS. Seu personagem foi em seguida reprisado em diversas produções de televisão e do cinema.”
De fato: depois desta primeira em que a obra de H. G. Wells chegou às telas, houve uma inflação de homens invisíveis. Em 1940 surgiu The Invisible Man Returns, com Vincent Price em seu primeiro filme de terror. Em 1944 houve um The Invisible Man’s Revenge, e, em 1957, um The New Invisible Man, com Arturo de Cordova.
Houve até um Abbot and Costello Meet the Invisible Man, em 1951,
Em 2000, o diretor Paul Verhoeven, o de Robocop (1987), Vingador do Futuro (1990) e Instinto Selvagem (1992), veio com O Homem Sem Sombra/Hollow Man, com Kevin Bacon e Elisabeth Shue. Sem dar crédito a H. G. Wells, o filme se inspira bastante no livro do autor inglês: um grupo de cientistas, liderado pelo personagem de Kevin Bacon, a pedido das forças armadas americanas, desenvolve o projeto de conseguir tornar as pessoas invisíveis; o tal cientista chefe se submete à experiência, fica muito doidão e passa a agredir os colegas; a cada minuto que passa o filme fica mais violento e imbecil. A única coisa que presta é a beleza de Elisabeth Shue, que faz uma das cientistas da equipe.
“O filme não envelheceu e pode ser revisto sempre com prazer”
O Guide des Films de Jean Tulard se delicia com O Homem Invisível original. Diz que as trucagens de John Fulton são sensacionais para a época em que o filme foi feito. “Quando Griffin retira as bandagens que cobrem sua cabeça e não resta nada a não ser o vazio, tomamos consciência da invisibilidade do herói. Whale consegue, no geral, ser fiel à obra de Wells. O filme não envelheceu e pode ser revisto sempre com prazer, o que não se pode dizer das sequências que foram feitas depois.”
O livro Hollywood Picks the Classics põe O Homem Invisível entre os seis clássicos de ficção-científica e horror (ao lado de Forbidden Planet, O Dia em que a Terra Parou, Frankenstein – do mesmo James Whale – e o King Kong original, de 1933). Segundo o livro, foi o diretor James Whale que escolheu Claude Rains, seu amigo, para interpretar o protagonista. O todo-poderoso chefão da Universal, Carl Laemmle, não queria correr o risco de ter um ator desconhecido, iniciante, no papel. Mas Boris Karloff se recusou a fazer o papel, e outro ator indicado por Laemmle, Colin Clive, acabou sendo convencido pelo próprio Whale a não aceitar o papel – que acabou ficando com o preferido do diretor.
Hollywood Picks the Classics diz ainda que Gloria Stuart participou de diversos filmes importantes nos anos 30, como The Old Dark House (1932), do próprio James Whale, e Gold Diggers of 1935, de Busby Berkeley, mas seu melhor papel naquela década foi a da mulher do médico que cuidou de John Wilkes Booth, o assassino do presidente Abraham Lincoln, no filme The Prisioner of Shark Island (1936).
Gloria Stuart – lembra o livro – passaria depois diversas décadas esquecida pelos produtores e diretores, até que James Cameron a chamou para fazer o papel de Rose já velhinha em Titanic (1997). Pela sua interpretação como a Rose que participa da missão que tentará resgatar o Titanic, Gloria Stuart recebeu uma indicação ao Oscar.
A heroína aparece fortemente maquiada, e a maquiagem realça a força dos olhos claros
Gloria Stuart interpreta Flora Cranley, a filha do dr. Cranley, o dono do laboratório em que trabalham como auxiliares Jack Griffin, o protagonista da história, e também Kemp (William Harrigan). Kemp, assim como Griffin, é apaixonado por Flora – mas ela ama Griffin.
Dame Pauline Kael chamou a atenção para o fato de que Gloria Stuart-Flora Cranley é peituda, e de fato é. Peituda, grande. A diva da crítica americana foi extremamente feliz ao cunhar a frase “uma heroína corpulenta para um herói sem corpo” – Pauline Kael é uma expert em frases brilhantes.
Mas o que mais me impressionou na figura de Gloria Stuart no filme – mais ainda do que os peitos fartos, a estatura imponente e a cabeleira platinum blonde, à la Jean Harlow – foi seu rosto. O rosto de Gloria Stuart aparece sempre fortemente maquiado, com uma maquiagem pesada, que realça a força dos olhos claros. Os olhos de Gloria Stuart parecem coloridos neste filme de bela fotografia em preto-e-branco.
Mas – e aí começo a dar meus pitacos que não valem mais que três guaranis furados – a personagem que ela interpreta, a filha do cientista apaixonada por um dos auxiliares do pai, me pareceu uma das coisas fracas do roteiro, da trama. Flora é uma personagem inconsistente, vazia, que não se sustenta, não fica de pé.
Depois que vi o filme, fui atrás do livro, que de nunca havia lido. É de fato fascinante a novela de H. G. Wells – e, na história do escritor inglês, Flora simplesmente não existe. Foi invenção dos roteiristas Philip Wylie e R.C. Sherriff; é o tal do female interest, como se diz em inglês – os filmes têm que ter um personagem feminino para despertar o interesse dos espectadores.
Me pareceu também que o diretor James Whale errou a dose ao botar humor demais na história. Quase todas as seqüências passadas na estalagem do casal Hall (Una O’Connor faz Jenny e Forrester Harvey faz o marido dela, Herbert) me pareceram exageradamente humorísticas, muito próximas do pastelão escrachado.
O livro tem humor, sim – mas muito mais contido, mais sutil, mais britanicamente elegante.
E a voz de Claude Rains, seu único recurso interpretativo, como notou Pauline Kael, é monocordicamente imperial. Ele está o tempo todo dando ordens ao mundo. Isso tira qualquer possibilidade de o espectador ter simpatia por ele, mesmo antes que a loucura tome conta e ele saia matando e matando.
Não dá para sentir simpatia pelo homem que conseguiu se tornar invisível, mas angustia-se por não ter descoberto ainda um jeito de voltar ao que era antes.
E não há clima de horror em meio ao tom pastelão. É um filme de fantasia, mas não é, na minha opinião, um filme de horror.
Os efeitos especiais, quanto a isso não pode haver dúvida, são excelentes – mesmo se não levarmos em consideração que o filme foi realizado há quase 80 anos, apenas cinco anos após o cinema aprender a falar.
A seqüência do cigarro que se acende no meio do nada, a dos livros de anotações que voam como Peter Pan no quarto, a dos pés do homem que não se vê deixando marcas na neve – é tudo brilhante, impressionante.
Que se dane minha opinião pessoal. É um filme que todo mundo que gosta de cinema tem que ver.
Anotação em setembro de 2012
O Homem Invisível/The Invisible Man
De James Whale, EUA, 1933
Com Claude Rains (Jack Griffin),
Gloria Stuart (Flora Cranley), William Harrigan (Dr. Kemp), Henry Travers (Dr. Cranley), Una O’Connor (Jenny Hall), Forrester Harvey (Herbert Hall), Holmes Herbert (chefe de polícia), E.E. Clive (Jaffers)
Roteiro Philip Wylie e R.C. Sherriff
Baseado na novela H.G. Wells (não creditado)
Fotografia Arthur Edeson
Música W. Franke Harling
Direção de arte Charles D. Hall
Efeitos especiais John P. Fulton e John Mescall
Maquiagem Jack Pierce
Produção Carl Laemmle Jr., Universal.
P&B, 71 min
**
Claude Rains tá sempre de coadjuvante e quando vai ser ator principal, mal mostra a cara… rs
(Mas, poxa, eu tive a maior simpatia por ele!!!)
acho que uma correcaozinha: James Cameron, nao John Cameron.
beijos!
Cara Valeria, agradeço imensamente por você me ter alertado para o erro no nome de James Cameron. Graças a você, fiz a correção!
Sérgio
Vi essa versão recentemente. Adorei os efeitos especiais – impressionantes para a época – mas o livro deve ser melhor, porque a quadrinização (que eu li) é mais fiel, pelo jeito. Hollywood em geral faz acréscimos desnecessários ao adaptar. Mas os efeitos! Nossa!