Desconcertante. Acho que o adjetivo que mais define o filme E Estrelando Pancho Villa é este. Desconcertante.
Parece uma gozação, uma brincadeira, uma criação doidona de um roteirista que tomou um ácido danado de bom, e criou uma ficção histórica, uma história fictícia maluca a partir de alguns dados da realidade. Temos, misturados, numa salada russa bem ruça, um bando de personalidades reais – Pancho Villa, D. W. Griffith, John Reed, William Randolph Hearst, Raoul Walsh, mais citações Mary Pickford, Charles Chaplin.
Enquanto via o filme, fiquei pensando nisso: inventaram uma história maluca a partir de fatos reais. Algo do tipo Um Conto Chinês.
Mas não. Trata-se de uma história real.
Nos créditos finais, está lá, com todas as letras: o filme se baseia em fatos reais; algumas passagens e personagens foram adaptados para a dramatização, mas a história é real.
E o filme avisa isso de cara – de uma forma desconcertante. Um letreiro, no início da narrativa, diz: “A improbabilidade dos eventos mostrados neste filme é a indicação mais segura de que eles realmente ocorreram”.
Pancho Villa, um dos líderes da Revolução Mexicana do início do século XX, de fato assinou um contrato com um estúdio de cinema americano para permitir que sua vida fosse mostrada em um filme – e ele mesmo aparece no filme! Cinegrafistas filmaram batalhas reais, que estavam ocorrendo, entre os homens de Pancho Villa e o Exército federal!
Por mais que a gente ache que sabe alguma coisa, a gente não sabe nada de História
Mary costuma dizer sempre que a gente não conhece nada de História.
É a mais pura verdade dos fatos. Concordo – mas talvez não plenamente. Eu até acho que sei um pouquinhozinho de História. Não porque eu seja de qualquer forma especial, mas porque tive a imensa sorte de ter muitos excelentes professores de História, na vida, da Dona Beatriz do Colégio de Aplicação até o Jobson, o Bantin no Objetivo. E, por causa deles, e da minha curiosidade, li bastante – ou, no mínimo, alguma coisa.
Mas é a Mary que tem razão: a gente não conhece nada de História.
Eu jamais tinha ouvido falar nessa coisa de Pancho Villa ter assinado contrato com um estúdio americano.
Jamais tinha ouvido falar no filme The Life of General Pancho Villa, de 1914. E também nunca tinha ouvido falar no filme E Estrelando Pancho Villa/And Starring Pancho Villa as Himself, até outro dia, quando, zapeando, dei com ele no Max Prime, e ele me atraiu por citar D. W. Griffith, e então programamos para gravar.
É a reconstituição de como foi feito o filme de 1914 sobre Pancho Villa
E Estrelando Pancho Villa/And Starring Pancho Villa as Himself é um filme de 2003, uma produção cara feita para a HBO, dirigida pelo veterano e oscarizado diretor australiano Bruce Beresford. O filme reconstitui como foi a filmagem de The Life of General Pancho Villa, de 1914.
É tudo verdade – eu é que não sabia de nada. Tem informação demais neste mundão véio de Deus e o Diabo.
O roteirista Larry Gelbart escolheu mostrar a história através dos olhos de um personagem quase secundário, Frank Thayer, interpretado por Eion Bailey. Esse Frank Thayer era o sobrinho do dono de um dos estúdios de cinema em 1914, a Mutual Film Corporation. O dono da Mutual era Harry Aitken (interpretado pelo sempre ótimo ator inglês Jim Broadbent).
O grande gênio da Mutual Film Corporation em 1914, segundo nos mostra o filme, era David Wark Griffith, D. W. Griffith (1875-1948) – ele mesmo, um dos grandes, dos gigantes, um dos caras que escreveram a gramática do cinema.
(O cinema é uma arte tão recente que dá para saber quem escreveu sua gramática. Os irmãos Lumière inventaram, Georges Meliès percebeu que dava para criar sonhos, D. W. Griffith, Vsevolod Illarionovich Pudovkin e Serguei Mikhailovitch Eisentein criariam tudo, absolutamente tudo o que viria depois. Três franceses, dois russos, um americano, e pronto, eis aí o cinema e sua gramática. Sorry, amantes de Orson Welles e Quentin Tarantino, mas a verdade dos fatos é esta.)
Fort Lee, New Jersey – “a capital mundial do cinema”
Logo no início, E Estrelando Pancho Villa faz uma brincadeira.
Na primeira seqüência, vemos um sujeito em seu grande escritório abrindo a correspondência. De uma carta, cai uma correntinha com uma imagem de uma Nossa Senhora. Veremos depois que é Nossa Senhora de Guadalupe, a padroeira do México, a Aparecida deles.
Corta, e aparece um letreiro: “Nove anos antes”.
E aí vem uma sequência em que D. W. Griffith está dirigindo um filme. E surge a brincadeira: um outro letreiro anuncia que estamos em janeiro de 1914, em Fort Lee, New Jersey – “a capital mundial do cinema”.
É uma piada para apaixonados, aficionados. Uma inside joke, uma piada interna, do tipo que se conta na festa de fim de ano da firma e que só quem é funcionário da firma entende.
Em 1914, Hollywood ainda não era a capital do cinema. Já havia algumas companhias instaladas lá, mas seria nos seguintes que surgiriam lá os que viriam a ser os grandes estúdios. A Paramount nasceu em 1916; a United Artists – criada por Griffith, Charlie Chaplin, Mary Pickford e Douglas Fairbanks –, em 1919.
Do alto do prédio do hotel, os gringos assistem às batalhas no México
Pois bem. Harry Aitken, o dono da Mutual Film Corporation, havia recebido a dica de que Pancho Villa topava fazer um contrato para ser filmado em suas batalhas contra o governo mexicano. E queria que Griffith fizesse o filme. Mas Griffith (mostrado aqui como um ser que adora o próprio umbigo acima de tudo e de todos) não queria saber de sair da Costa Leste e ir se embrenhar naquele fim de mundo, e sugeriu que Aitken enviasse o jovem Frank Thayer, o sobrinho do patrão.
E então lá vai Frank Thayer para a fronteira do Texas com o México, levando os US$ 25 mil em ouro que Pancho Villa pedia, e mais um punhado de cinegrafistas e câmaras.
Frank e equipe chegam à cidadezinha texana de Presidio, onde se hospedam no melhor hotel. Do terraço do hotel, um terceiro ou quarto andar, pode-se ver o Rio Grande, que faz a fronteira entre o Império-em-Ascenção e o Terceiro Mundo, e, do lado de lá do Rio Grande, os guerreiros de Pancho Villa enfrentando as tropas do governo.
Bem perto de Frank, ali, naquela espécie de camarote improvisado de onde se vê a batalha renhida, um rapaz fala uma frase emproada a respeito da coragem daqueles bravos guerreiros do povo que lutam para derrubar o tirânico governo do presidente Huerta. É John Reed, o jornalista comunista, que cobriu diversos fatos da Revolução Mexicana e estava na Rússia em outubro de 1917 quando irrompeu a Revolução Comunista; ele mesmo, John Reed, o autor do livro Dez Dias Que Abalaram o Mundo, relato do que ele viu em São Petersburgo e Moscou nos dias da chegada dos sovietes ao poder, e cuja vida foi retratada em Reds, de Warren Beatty, de 1981.
Aqui, John Reed, que em Reds foi vivido pelo próprio Warren Beatty, é interpretado por Matt Day.
Pancho Villa é mostrado no filme como um sujeito que alterna euforia e depressão
Essa sequência em que os americanos assistem de camarote à luta sangrenta do outro lado da fronteira me pareceu tão absolutamente surrealista, tão doida, tão produto de uma mente sob efeito de ácido brabo, que comecei a achar que o filme era uma insana ficção histórica.
Mas é tudo verdade – salvo, é claro, uma ou outra simplificação com propósitos dramáticos, como avisarão os créditos finais.
E o filme está apenas começando.
Ao chegar a seu quarto no hotel, Frank é subjugado por homens fortemente armados, que vendam seus olhos, o botam em cima de um cavalo, enquanto ele protesta que jamais tinha subido num animal como aquele antes, atravessam o Rio Grande e só tiram a venda dos olhos do gringo quando ele está já na presença do general leia-se rrreneral Pancho Villa, o próprio.
Pancho Villa vem na pele de Antonio Banderas. Numa produção americana, mesmo que bem cuidada, cara (foi, até então, o filme mais caro produzido para a TV, com um orçamento de US$ 30 milhões), um espanhol pode perfeitamente se passar por um mexicano.
E Pancho Villa-Antonio Banderas mostra-se muito puto da vida por estar diante de um sub do sub do sub. Queria que estivesse ali o próprio D. W. Griffith, ou então Charlie Chaplin.
O Pancho Villa que o diretor Bruce Beresford e Antonio Banderas mostram é um sujeito PMD, como se dizia antigamente, termo hoje adocicado para distúrbio bipolar. Ele alterna seus estados de espírito rapidamente, de um momento para outro. Está bravíssimo – e no momento seguinte está cheio de amor pra dar, meigo, gentil como uma gueixa.
Logo se afeiçoa àquele Frank que lhe traz US$ 25 mil em ouro para comprar munição para sua luta. Observa que Frank quer dizer Francisco, e Francisco é seu nome de batismo, logo ali estão dois Franciscos.
Estamos aí com uns 20 minutos do filme que dura 112. A partir daí, E Estrelando Pancho Villa vai contar como foram as filmagens de The Life of General Pancho Villa. Uma história louquíssima. Tão absolutamente improvável que, como muito bem diz o próprio filme, indica que aquilo tudo aconteceu de verdade.
Uma mistura de realismo com farsa que me pareceu indigesta
Segundo a Wikipédia, o contrato assinado por Pancho Villa e Frank N. Thayer, representando a Mutual Film Company, dando a esta os direitos de filmar a Batalha de Ojinaga, ainda existe, e pode ser visto num museu da Cidade do México.
O filme original, dirigido em 1914 por William Christy Cabanne (interpretado aqui por Michael McKean), com Raoul Walsh (que viria a ser depois um grande diretor, e aqui é feito por Kyle Chandfler) no papel de Pancho Villa, se perdeu. Mas ainda existem diversas sequências das batalhas, não editadas, e fotos de publicidade feitas na época.
Tudo isso dito, falta opinião. E aí, presta, este E Estrelando Pancho Villa?
Pois é. Aí que está.
É um filme desconcertante.
Por um lado, é tudo fascinante, nessa história maluca – e real. A produção é bem cuidadíssima, todos os aspectos técnicos são primorosos. As cenas de batalhas são estarrecedoras; fazem lembrar o misto de crueldade e prazer com que Sam Peckinpah filmava cenas de exagerada violência.
Antonio Banderas está bem como Pancho Villa. Não gosto de Banderas, não gosto do jeito dele de atuar; me parece sempre muito exagerado, muito over, beirando a canastrice pura e simples. Mas o Pancho Villa que ele retrata é um sujeito muito exagerado, muito over, beirando a canastrice, e então fica perfeito.
Os demais atores estão todos bem – os menos conhecidos, como esse Eion Bailey que faz Frank Thayer, e os veteranos, como Jim Broadbent e Alan Arkin.
O sempre ótimo Alan Arkin está excepcional como Sam Drebben, um judeu do Bronx revolucionário mezzo por crença, mezzo por dinheiro, que se tornou um homem de confiança de Pancho Villa e está sempre perto dele para fazer a tradução do que ele diz quando desembesta a falar em espanhol – embora o líder revolucionário saiba se virar bem em inglês.
Bem, então é um bom filme?
Hum… Na verdade, não. É um filme desconcertante.
Na minha opinião, nem o roteirista Larry Gelbart nem o diretor Bruce Beresford, apesar de toda a experiência dele, conseguiram encontrar um tom para contar essa história maluca.
Às vezes o filme parece estar se divertindo com toda aquela mortandade de uma revolução sanguinolenta. Às vezes parece que aqueles gringos estão mostrando os mexicanos como um bando de loucos, lunáticos, debilóides.
Não é sempre, de forma alguma. Mas há momentos em que o filme parece estar fazendo troça, piada – e não me parece bom fazer piada com algo tão sério.
Só para dar um exemplo: lá pelas tantas, o roteirista enfia na história uma piada sobre a mãe judia do guerrilheiro Sam Drebben. Ora, diabos, para que, àquela altura dos acontecimentos, uma piada sobre mãe judia?
Nada contra o politicamente incorreto. Não é isso. É uma questão de tom – ou, no caso, de falta de tom.
Achei E Estrelando Pancho Villa um filme interessante, fascinante mesmo, por contar uma história pouco conhecida, e também porque tem mesmo muitas qualidades. Mas, na minha opinião, Beresford não encontrou o tom. O resultado é uma estranha mistura de realismo e quase sátira, farsa, uma mistura que ao fim e ao cabo me parece indigesta.
Anotação em outubro de 2012
E Estrelando Pancho Villa/And Starring Pancho Villa as Himself
De Bruce Beresford, EUA, 2003
Com Eion Bailey (Frank Thayer), Antonio Banderas (Pancho Villa), Alan Arkin (Sam Drebben), Jim Broadbent (Harry Aitken), Matt Day (John Reed), Michael McKean (William Christy Cabanne), Colm Feore (D.W. Griffith), Alexa Davalos (Teddy Sampson), Kyle Chandler (Raoul Walsh),
Roteiro Larry Gelbart
Fotografia Peter James
Música Stephen Endelman e Joseph Vitarelli
Produção City Entertainment, Green Moon Productions, The Mark Gordon Company
Cor, 112 min
**1/2
Sérgio,
No “Afinal, quem faz os filmes”, o Raoul Walsh fala sobre suas experiências filmando o original.
Abraço!