Anotação em 2011: Os filmes de Claude Lelouch não costumam se caracterizar por um tom de tristeza, melancolia, amargura. Nisso, este Robert e Robert, feito em 1978, se distancia bastante da maior parte da obra do cineasta. É, na maior parte de seus 105 minutos, um filme triste, melancólico, amargo.
Não sei se consigo me explicar direito. Em geral, as histórias que Lelouch conta, sejam as mais simples, como a de Um Homem, Uma Mulher, de 1966, sejam as mais elaboradas, complexas, com subtramas e mais subtramas, como Um Homem, Uma Mulher Vinte Anos Depois, ou Retratos da Vida, de 1986, ou Os Miseráveis, de 1995, envolvem pessoas dinâmicas, ativas, produtivas, que vivenciam encontros e desencontros e reencontros, que têm vidas cheias. O tédio, o fastio, l’ennuie, esse elemento tão fundamental em tantos filmes franceses, não é coisa muito presente na vida dos personagens de Lelouch.
No entanto, os dois personagens centrais deste filme, os dois Roberts, são diferentes de maioria dos demais dos filmes do cineasta. Um, o Robert Goldman interpretado por Charles Denner, é um tremendo chato, um chato de galocha, sujeito cheio de pequenas neuroses, irritadiço e irritante. O outro, o Robert Villiers feito por Jacques Villeret, é um sujeito extremamente, mas extremamente tímido, indeciso em tudo por tudo na vida, que tem grande dificuldade para qualquer pequena coisa; parece até burro, tadinho.
São, os dois Roberts, o primeiro aos 48 anos, o segundo aí na faixa dos quase 30, filhos únicos de mães dominadoras – e moram com as mães. Robert Goldman é motorista de táxi, e sua mãe, Madame Goldman (Germaine Montero), se queixa por ele ter desistido do curso de contabilidade, aparentemente para ser motorista de táxi para o resto da vida. E, quando Robert diz que não se dá bem com os números, com os negócios, sua mãe judia replica: “Meu filho é o único judeu do mundo que não dá para os negócios”.
Robert Villiers não é nada, ainda, coitado. Estuda para ser guarda de trânsito, mas não se dá bem; na primeira sequência em que aparece, consegue produzir uma batida entre dois carros. A mãe vigia cuidadosamente seus passos, e, ao ouvir dele a informação – falsa – de que ele havia conhecido uma enfermeira no Instituto Pasteur, fica preocupada: conversando assim com qualquer uma, ele poderá pegar uma doença, diz Madame Villiers (Régine).
Pessoas sem graça, tristes, solitárias
São pessoas muito sem graça, esses dois Roberts que Lelouch apresenta ao espectador. São pessoas que nenhum de nós, em sã consciência, convidaria, numa tarde especialmente agradável, para tomar um chopinho e bater papo furado ou para falar sério a respeito da vida do amor da morte.
São, sobretudo, pessoas solitárias, terrível, triste, melancolicamente solitárias.
Demora bastante para ficar claro quem são os protagonistas Lelouch – autor, sozinho, do argumento, do roteiro e dos diálogos, coisa rara, pois em geral ele divide essas funções com Pierre Uytterhoeven – engana um pouquinho o espectador no início de Robert e Robert. Demora um pouquinho para deixar claro quem serão os protagonistas desta história, que só bem no finalzinho deixará de ser triste, melancólica.
Na primeira seqüência, longa, em longos planos com a câmara de mão perseguindo os personagens através de diversos aposentos, antes mesmo dos créditos iniciais, vemos um casal (o marido, Francis Michaud, é interpretado por Francis Perrin; a mulher, por Josette Derenne) visitando um outro casal (o marido, Jacques Millet, é feito por Jean-Claude Brialy; a mulher, por Nelle Bielski). Leva-se algum tempo para perceber que o casal visitado é dono de uma agência de encontros, uma agência de casamentos, e que pretende vendê-la, se encontrar alguém disposto a pagar bem por ela. O casal visitante está interessado em conhecer a agência, para, talvez, quem sabe, fazer uma proposta de compra.
Millet, o dono da agência (à direita na foto), convida Michaud, o candidato a comprá-la, para irem juntos a um baile, no sábado, onde o primeiro tentará encontrar novos clientes. Será sobre imagens do salão de dança lotado, com aquela gigantesca bola de vidros no alto, como se usava nos anos 70, que virão os créditos iniciais.
Após os créditos, temos a sequência com o aprendiz de guarda de trânsito, cujo nome ainda não conhecemos – Robert Villiers.
E, em seguida, temos uma seqüência longa, bem longa, em que Millet, o dono da agência de matrimônios, recebe um cliente, sujeito danado de chato – Robert Goldman. Como o sujeito é danado de chato, a entrevista não termina nunca: o cliente sempre tem uma nova dúvida, uma nova questão. Finalmente, Millet consegue botá-lo para fora de seu escritório, e Robert Goldman vai para a sala de espera, onde já está o nosso aprendiz de guarda de trânsito.
Não sabemos ainda, mas aqueles dois, sim, é que serão os protagonistas da história. O casal de donos da agência é coadjuvante, e o casal que pretende comprar a agência, mais coadjuvante ainda.
Dois desconhecidos tentando evitar o olhar do outro
A seqüência em que ficam juntos pela primeira vez os dois Robert é longa também – e os dois grandes atores, Charles Denner e Jacques Villeret, dão um show.
Ficar numa sala de espera ao lado de quem você nunca viu na vida é uma coisa desagradável, incômoda, chata, às vezes insuportável. Ficar numa sala de espera numa agência de encontro de casais, demonstrando para o desconhecido ao lado que você é um solitário, um carente profissional, que precisa de ajuda dos outros para tentar encontrar uma namorada, isso deve ser uma das situações mais constrangedoras do mundo – e Lelouch, a câmara ora num, ora noutro, e aqueles dois atores esplêndidos, nos dão, ao longo de alguns minutos, uma seqüência absolutamente memorável.
Um tenta evitar o olhar do outro. Mas não há o que fazer: estão ali, sentados, frente a frente, um expondo ao outro sua pequena miséria, sua solidão, sua melancolia, sua frustração.
Um brilho, uma maravilha.
Pessoas solitárias à procura de um Alain Delon, uma Catherine Deneuve
Claude Lelouch, homem da imagem, pouco afeito, no início da carreira, ao contrário de todos os seus pares da época – Truffaut, Godard, Rohmer, Chabrol, Malle –, a conhecimentos de literatura, a estudos formais sobre os grandes clássicos, não é cineasta que goste lá de filosofar, mas este seu Robert e Robert nos diz uma enciclopédia a respeito da solidão das pessoas destas capitais, das dificuldades que as pessoas têm em se comunicar, em se aproximar dos outros, em encontrar um par, uma companhia, um amigo, uma companheira, uma namorada.
Algumas frases que Lelouch põem na boca desse Millet interpretado por Jean-Claude Brialy são antológicas – e duras, e tristíssimas, profundamente melancólicas. “As pessoas que vêm aqui – ele diz, logo na seqüência de abertura – esperam encontrar Alain Delon ou Catherine Deneuve. Só vêem os defeitos dos outros.”
Imagens de admirável beleza – e de uma melancolia profunda
Os dois Roberts irão, num sábado à noite, por sugestão do agente casamenteiro, a um baile no grande salão encimado pela bola de espelhos, à procura das moças que a agência indicou para cada um deles. A câmara de Lelouch passeia por entre os casais que dançam, e mostra que os dois Roberts volta e meia passam um pelo outro, um querendo não ver o outro.
É outra seqüência de grande, admirável beleza – e de uma tristeza, uma melancolia profunda.
Na falta de qualquer outra opção, vão se aproximar, os dois solitários, tristes, melancólicos Roberts. Vão ficar amigos.
Mais para o fim do filme, Lelouch dará ao espectador mais uma série de seqüências de imensa tristeza: uma viagem de ônibus de homens e mulheres solteiros de Paris até o local onde se deu a batalha de Waterloo, com direito a uma noite em um hotel, onde, espera-se, pelo menos algumas daquelas pobres pessoas solitárias encontrem companhia.
Com ironia, Lelouch ainda foge um pouquinho do tema principal para fazer uma piada. Enquanto um guia inglês fala sobre a glória de os ingleses haverem derrotado finalmente Napoleão ali, naquele exato local, o guia dos solitários franceses, Millet, encontra uma forma de dizer a eles que, ao contrário do que se diz, Waterloo foi uma grande vitória da França.
Aí, no final, o diretor dá adeus à melancolia e faz a festa
Mas Lelouch não é homem de prosseguir indefinidamente na tristeza, na melancolia, e, nos últimos 20 minutos de seu filme, mudará o destino daquelas pobres pessoas. Durante uma festa de casamento de dois clientes da agência matrimonial, o feliz Millet convidará a todos para dançar ao som da canção “Un Homme et une Femme”, sucesso mundial criado por Francis Lai para o filme que revelou ao mundo o jovem diretor.
Não seria um filme de Lelouch – comentou Mary, com a maior propriedade – se ele não se citasse a si mesmo, se não citasse Um Homem, Uma Mulher.
Em A Dama e o Gângster/La Bonne Année, por exemplo, de 1973, os detentos do presídio onde está o personagem principal, interpretado por Lino Ventura, assistem, num salão da penitenciária, a Um Homem, Uma Mulher. Lelouch é incorrigível.
Até no nome do personagem de Charles Denner Lelouch cita a si próprio. O personagem, como já foi dito, chama-se Goldman. Em Toda uma Vida, de 1974, o mesmo Charles Denner interpreta um outro judeu chamado Goldman.
Mas o diretor não cita apenas a si próprio. Neste Robert e Robert, dá um jeito de fazer uma homenagem a Michèle Morgan, belíssima atriz, um dos maiores nomes do cinema francês a partir de 1935, 75 títulos de filmes em seu currículo de lá até 1999. Lá pelas tantas, num programa de TV – que está sendo visto ao mesmo tempo pelos dois Roberts e suas mães, cada dupla em sua casa –, uma entrevistadora conversa com o mito. A entrevistadora é interpretada por Macha Méril, aquela atriz lindérrima que encantou gerações na década de 60.
Depois dessa brevíssima aparição, Macha Méril some, e fiquei me perguntando se Lelouch iria desperdiçar a chance de nos mostrar mais cenas com a maravilhosa atriz. Mas o bicho não é bobo. Macha Méril reaparecerá, estupenda, exuberante, nos 20 minutos finais, em que Lelouch segue o desejo da Grushenka de Os Irmãos Karamázovi, de Dostoiéviski – “Se eu fosse Deus”, dizia Grushenka, “faria todo mundo feliz”.
Robert e Robert/Robert et Robert
De Claude Lelouch, França, 1978
Com Charles Denner (L’homme d’affaires, Robert Goldman), Jacques Villeret (Le héros, Robert Villiers), Jean-Claude Brialy (Le marchand d’esclave, Jacques Millet), Francis Perrin (Le futur marchand d’esclave, Francis Michaud), Germaine Montero (La concierge de luxe, Mme Goldman), Régine (Le rêve de l’homme d’affaires, Mme Villiers), Macha Méril (Le rêve du héros, Agathe), Nella Bielski (Mme Millet), Josette Derenne (Josette Michaud)
Argumento, roteiro e diálogos Claude Lelouch
Fotografia Jacques Lefrançois
Música Francis Lai e Jean-Claude Nachon
Produção Les Films 13. DVD Cinemax.
Cor, 105 min.
***1/2
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