Anotação em 2010 (postada em fevereiro de 2011): Quando Me Apaixono/Everybody’s All American, feito em 1988, parece uma cinebiografia, um filme que conta a história de um personagem real. Acompanha a vida de um jogador de futebol americano ao longo de um quarto de século. Mas – e isso é fascinante – o personagem mais interessante da história é sua mulher.
(Uma observação sobre o título em português do filme vai mais abaixo.)
Enquanto via o filme, tive quase certeza absoluta de que Gavin Grey, o Grey Ghost, como era chamado pelos comentaristas esportivos e pelos milhares de fãs, existiu de verdade. Que outra explicação haveria para ter sido feito este filme? Fiquei bastante surpreso por não ver, antes dos créditos finais, aquelas legendas que normalmente encerram as cinebiografias – Gavin Grey viveu até os tantos anos, fez isso e aquilo.
Engano total: Gavin Grey é uma figura fictícia, criação de Frank Deford – um sujeito que, fiquei sabendo, claro, depois de ver o filme, é um experiente jornalista esportivo, também autor de vários livros.
Coisa esquisita. Por que, raios, fazer um romance e um filme que descrevem em detalhes 25 anos da vida de um desportista fictício que não tem propriamente assim nada de extraordinário?
Bem. Acho que dá para compreender por que um experiente jornalista esportivo que é também autor de ficção quis escrever o livro. Frank Deford seguramente conheceu diversos jogadores de futebol ao longo da carreira, ouviu suas histórias. Quis compor um personagem que é típico, exemplar, que vive as experiências pelas quais passaram dezenas de colegas – uma espécie assim de máximo divisor comum da vida de centenas de outros atletas: a glória na juventude, a bajulação, a adoração dos fãs, o dinheiro que chega a rodo, depois o início do declínio, o dinheiro que vai embora a rodo, o susto de ver a glória ir embora, a incerteza sobre o que fazer depois que a carreira necessariamente curta de atleta termina.
Em suma: não um filme sobre Adriano, ou Robinho, especificamente – mas sobre todos os adrianos, robinhos, sobre o que eles todos têm em comum.
O foco é a vida pessoal do atleta – e é aí que o filme se salva
Gavin (interpretado por Dennis Quaid) passa por todas essas fases. É o grande ídolo da torcida dos Tigers, o time de futebol americano da Universidade Estadual de Louisiana, em Baton Rouge, em meados dos anos 50. Naturalmente, ele é o quarterback, um tanto equivalente ao que no nosso futebol é o centroavante, o sujeito que faz os gols, os pontos – embora seja danado de difícil entender como se contam os pontos naquele esporte para mim incompreensível. Sob sua liderança, o time chega ao SuperBowl, a grande final nacional, em 1956.
O filme do diretor Taylor Hackford, assim como certamente o romance escrito por Frank Deford, mostra a atuação de Gavin em campo, e acompanha sua carreira, do auge a um período sem tantas glórias e depois fatalmente o declínio. Mas, felizmente, não se concentra apenas no esporte – se fosse assim, seria um filme insuportável. O foco maior da história é a vida pessoal do protagonista, sua relação com Babs, a namoradinha da faculdade, depois sua mulher, mãe de seus filhos.
E aí é que o filme se salva, porque a personagem de Babs é muito interessante, muito bem construída – e é interpretada por Jessica Lange, essa atriz maravilhosa. Jessica Lange parece ter se entregue ao papel; é uma de suas grandes interpretações.
Manda o figurino que o ídolo do time de futebol seja adorado, cercado, bajulado por centenas de garotas – e que escolha para namorar a mais bela de todas. Babs é a mais bela de todas, e namora Gavin, e o adora, e sente grande prazer, como qualquer garota muito jovem, em sentir-se invejada por todas as outras porque foi a escolhida pelo grande ídolo.
Naqueles tempos em que as moças “direitas” não davam para o namorado
Eram os anos 50, e na Louisiana, assim como em Minas, São Paulo, qualquer lugar, as mocinhas “direitas” não davam para os namorados. Os namorados comiam as mocinhas que não eram muito “direitas”. Babs sabe que Gavin come mocinhas – depois de casada, continuará sabendo que o marido come outras mulheres, mas não esquenta muito a cabeça com isso: sua mãe ensinou que era assim mesmo, e ela aceita. Dado da realidade; é assim que é, não adianta lutar contra.
Babs vive em função de Gavin – era assim a vida, e Babs não pensa em dar murro em ponta de faca. Tem plena consciência disso. Quando um amigo pergunta a ela o que ela vai estudar, em que vai se especializar, ela responde, sorrindo: “Em Gavin e eu”.
O amigo que faz a pergunta chama-se Donnie, apelidado de Cake – o papel de Timothy Hutton. Donnie é sobrinho de Gavin – são quase da mesma idade, mas isso acontece –, estuda na mesma universidade. Gavin gosta de Donnie, e, sempre que não pode estar com a namorada – durante os jogos, por exemplo, ou quando está na farra após os jogos com os companheiros de time –, pede ao sobrinho e amigo que tome conta de Babs, que faça companhia a ela.
Donnie, naturalmente, apaixona-se por Babs.
Há uma bela seqüência para deixar a paixão de Donnie pela namorada do tio, amigo e ídolo bem explícita para o espectador mais desatento que ainda não tiver sacado. O time está jogando, o estádio está lotado; Babs e Donnie estão vendo o jogo. Quer dizer: Babs está vendo o jogo, torcendo, gritando; Donnie está vendo Babs.
O filme mostra bem as boas mudanças que houve dos 50 para cá
O roteirista Thomas Rickman e o diretor Taylor Hackford fazem questão de mostrar o que está acontecendo ao redor dos personagens. Ou, como se dizia antigamente, ele insiste em botar as vidas dos personagens no seu contexto. Há diversas referências a fatos políticos e sociais e músicas para mostrar a época em que a história se passa. Como não poderia deixar de ser, o filme trata, e muito, do racismo – quando o filme começa, em 1956, a segregação era completa absoluta, no Sul Profundo; depois se vê a luta pelos direitos civis, há referências a Martin Luther King, e, na década de 80, quando o filme foi feito, a segregação racial oficial já havia acabado.
Aliás, isso é uma coisa que o filme mostra bem. Por mais pessimistas que possamos ser, algumas coisas melhoraram, dos anos 50 para cá, na sociedade americana como no mundo todo. Acabou a segregação racial. Acabou a história de moça não dar pro namorado; acabou a história de mulher só viver em função do marido – tudo isso é bem mostrado.
Não é um grande filme. Mas é correto, muito bem feito. Valeria apenas pela interpretação de Jessica Lange – mas vale também pelo personagem que ela interpreta. É muito interessante acompanhar o amadurecimento da mocinha mais bela do pedaço à medida em que os anos vão passando, o mundo vai mudando em torno dela, e Babs vai à luta e passa a ter sua própria vida, seu trabalho, suas ambições. Depois da felicidade de ser invejada por todas as garotinhas por ser a namorada do ídolo, vem o peso de ser a mulher de um ídolo, depois ex-ídolo. Isso é muito bem mostrado no filme.
Tanto Jessica Lange quanto Dennis Quaid, Timothy Hutton e John Goodman (que faz o maior amigo de Gavin) enfrentam bem o teste de interpretar jovens ali na faixa dos 20 e poucos anos e depois pessoas maduras na faixa dos quase 50.
“O roteiro é tão sem foco que a gente nunca sabe se o filme é sobre Ghost ou Babs”
De vez em quando acontece de Leonard Maltin dizer exatamente o que achei. É o caso deste filme. Ele dá 3 estrelas em 4, e diz que a atuação doçamarga de Jessica Lange é verdadeira, autêntica, ao longo de todo o filme, e faz com que ele mereça ser visto.
Roger Ebert sempre escreve bem. Deu 2 estrelas em quatro para o filme, e fez este belo lead:
“F. Scott Fitzgerald dizia que as vidas americanas não têm segundos atos. O problema da vida de Gavin Grey é que ela tem quatro. Quando nós o conhecemos, no êxtase de um campeonato, é um garoto de ouro, ‘The Grey Ghost’, um dos melhores jogadores de futebol dos anos 50, ‘unanimemente escolhido como jogador do ano”. Vinte anos mais tarde, ele é um velho jogador profissional que já era, um garoto propaganda de grama artificial e sócio de um restaurante. Cinco anos mais tarde…”
Epa. Vou censurar um trecho do Ebert, porque ele revela fatos que acontecem depois da metade do filme. Depois do spoiler, ele diz:
“Everybody’s All-American representa as histórias de um monte de grandes atletas que declinam e viram apenas memórias.” Sim, exatamente isso: um típico representante dessa categoria, os atletas que tiveram grande sucesso e depois, inevitavelmene, declinam.
Ebert conclui seu longo texto com afirmações corretas e depois uma ironia, uma brincadeirinha: “Everybody’s All American é uma boa idéia, com boas atuações, mas o roteiro é tão sem foco que a gente nunca sabe se o filme é sobre Ghost ou sobre Babs”.
Claro: o filme é sobre os dois. Sobre o atleta e sua mulher, e mais o outro sujeito que ama a mulher do atleta ao longo de um quarto de século. Mas, claro, concordo que o roteiro não tem foco – foi exatamente por isso que fiquei achando que era uma história real.
Os títulos que se repetem
Encerro com algo que a rigor não tem nada a ver com nada. É sobre o título em português do filme, Quando Me Apaixono, mas é também sobre algo muito pessoal, meu. Uma historinha sem qualquer importância. Lá vai.
Não tenho nenhuma organização, nenhum método na escolha dos filmes que vejo ou revejo. Não faço uma escala de prioridades. Deveria fazer: este site tem um monte de filmes sem importância e ao mesmo tempo não tem uns cem filmes fundamentais. Tem pelo menos umas cem lacunas absurdas. Mas o fato é que não consigo ter método, e em vez de rever Amarcord ou O Leopardo ou A Era do Rádio, por exemplo, vou vendo filmes, novos ou velhos, sem qualquer critério, randomicamente, aleatoriamente. Shuffle. Passeio pela locadora e pego qualquer coisa que por algum motivo me chame a atenção.
Mas tenho uma listinha, que às vezes consulto. Anotei na listinha: Quando Me Apaixono. E, num dia em que filme nenhum piscou para mim na locadora, olhei a lista e perguntei se tinha Quando Me Apaixono. Ao ver o filme, fiquei pensando: raios, por que será que botei na listinha esse filme?
Semanas mais tarde, me deparei na locadora com Quando Me Apaixono, lançamento, filme novo, de e com Helen Hunt, e só aí caiu a ficha: ih, cacete, o Quando Me Apaixono que eu tinha anotado é o da Helen Hunt, o Then She Found Me!
Quando me Apaixono/Everybody’s All American
De Taylor Hackford, EUA, 1988.
Com Dennis Quaid (Gavin Grey), Jessica Lange (Babs Rogers Grey), Timothy Hutton (Donnie “Cake”), John Goodman (Ed Lawrence), Ray Baker (Bolling Kiely), Savannah Smith Boucher (Darlene Kiely), Patricia Clarkson (Leslie Stone)
Roteiro Thomas Rickman
Basedo no romance de Frank Deford
Fotografia Stephen Goldblatt
Música James Newton Howard
Montagem Don Zimmerman
Produção New Vision, Warner Bros. DVD Warner
Cor, 127 min
**1/2
Há muitos anos atrás comecei assistir esse filme,não dei o menor valor no começo, mas ainda bem que continuei a assistir pois foi um dos melhores filmes que vi na vida.