Anotação em 2011: Começa como um western, depois vira um conto de Natal, com uma dose de fantasia e muita reverência ao Deus cristão e à Bíblia. E termina como fordianíssima elegia à fraternidade entre os homens de boa vontade nesta terra que às vezes parece esquecida por Deus.
Nas mãos de outro diretor qualquer, correria seriíssimo risco de parecer bobo, bocó, babaca. Como é John Ford, é um belo filme, este O Céu Mandou Alguém/3 Godfathers, que o mestre fez em 1948.
O filme demora um pouco até chegar ao cerne de sua história, revelado no título, tanto no original, três padrinhos, quanto no escolhido pelos distribuidores brasileiros, O Céu Mandou Alguém. Na verdade, demora até bastante. É como se fosse uma peça em três atos. A parte da história envolvendo padrinhos, gente que o céu mandou, só vai aparecer lá pela metade do segundo ato.
O primeiro ato é um western puro, tradicional – só que com uma boa dose de humor, algum sarcasmo, alguma ironia, tudo típico do diretor. Ao longo dos créditos iniciais, vemos a odisséia de três homens cavalgando, cavalgado, cavalgando. Como em todos os filmes de John Ford, os cenários são estupendos, as tomadas idem – grandes planos gerais daquela terra vasta, quase infinita, imensas planícies, gigantescas montanhas ao fundo, regiões desérticas, saaras no meio da Terra Prometida aos colonizadores vindos de vários cantos do mundo.
No meio dessa seqüência dos três homens cavalgando, bem no início dos créditos iniciais, há uma rápida tomada simbólica: diante de um céu avermelhado, um único cavaleiro daquele grupo de três pára por um momento entre dois gigantescos cactos. Uma pintura, uma autêntica obra de arte. Se todo o western, o gênero cinematográfico americano por excelência, pudesse ser retratado numa única tomada, seria nesta aqui.
Os cactos, veremos depois, farão parte integrante da história.
The Duke no papel dele mesmo, com suas paradinhas como um samba de breque
Os três homens que cavalgam juntos são Bob, o líder, um veterano, experiente; Pedro, ou Pepe, seu lugar-tenente, um mexicano; e William, o mais jovem dos três, conhecido como Kid, garoto, embora tenha 26 anos.
O primeiro é interpretado por John Wayne, claro; The Duke estava então com 41 anos de idade, nem muito jovem como quando fez o clássico dos clássicos No Tempo das Diligências/Stagecoach, em 1939, nem muito velho como quando fez o outonal O Último Pistoleiro/The Shootist, em 1976. Já tinha para trás várias dezenas de filmes, era um grande astro; seria um astro cada vez maior, até seu derradeiro filme. Tinha todas as características de sua persona – o típico andar de cowboy, as paradinhas entre um gesto e outro, como se fosse um breque no samba, o vozeirão macho, tonitroante, personalíssimo, que tanta gente gostava de imitar (como fez, por exemplo, Robin Williams em Sociedade dos Poetas Mortos).
O mexicano é o mexicano mais tradicional de todos os mexicanos do western, Pedro Armendáriz – a barba sempre por fazer, o aspecto geral dando uma impressão de sujeira, de desleixo, frases em espanhol (ou “mexicano”, como diz Bob por diversas vezes) se intrometendo sempre no inglês cheio de sotaque, os olhos capazes de se esbugalharem, ou de brilharem com forte luminosidade nas horas de emoção.
Assim como John Wayne, Pedro Armendáriz trabalhou diversas vezes sob a batuta do mestre Ford.
Já The Kid é interpretado por um ator cujo nome figura nos créditos iniciais abaixo de um “introducing”. Chama-se Harry Carey Jr., e é a seu pai, Harry Carey, que Ford dedica seu filme.
O trio – Bob, Pedro, The Kid – vem do Texas, saberemos em breve, e está chegando ao Território do Arizona. O Arizona ainda é um território, como será mencionado várias vezes ao longo da narrativa, mas os cavalos e o gado já não estão sozinhos, nas vastas paisagens do Oeste: logo na primeira tomada, vemos um trem de ferro – o sinal dos novos tempos – atravessando a tela.
O personagem de John Wayne ri das placas que vê
Os três cavaleiros param diante uma placa onde está escrito “Welcome Arizona”. Bob ri da placa. Mas a placa, como diriam os críticos de cinema, permite duas leituras diferentes. Bem-vindo ao Arizona, é claro – mas também Welcome, Arizona. A cidade à qual os três cavaleiros estão chegando se chama Welcome.
Adentram a cidade, e param diante de uma casinha bem cuidada, com flores no jardim. No jardim, entre as flores, há outra placa que faz Bob soltar uma gargalhada: “B. Sweet”. B. Sweet – seja doce, e Bob gargalha. Mas a placa, como a anterior, permite duas leituras – significa também Buck Sweet, o dono da casinha florida. Buck aparece logo, entabula conversação com os forasteiros. O chefe do grupo faz troça com a placa, mas Buck Sweet (interpretado por Ward Bond, uns 20 filmes dirigidos por John Ford no currículo), grandalhão assim como Bob, finge que não liga para a brincadeira, puxa papo, numa boa.
Logo aparece sua mulher, vinda de dentro do lar pacífico, ordeiro. Mrs. Sweet chama o marido de Perley, o que faz o forasteiro grandalhão gargalhar mais ainda, como se o nome fosse ridículo, talvez pouco másculo, pouco guerreiro. Lembra, talvez, pearl, pérola, e então pearly seria emperolado, algo assim. Perley Sweet não dá mostras de que se ofende com as risadas do forasteiro. Sugere que a mulher traga café para os moços, e, enquanto Mrs. Perley entra de novo no sacrossanto lar, Bob ainda faz um elogio a ela, ao que o pacato B. Sweet, flores no jardim, replica que ela foi uma grande dançarina quando jovem.
Diálogo afiadíssimo – o roteiro é de Frank S. Nugent, autor de primeira linha
Todo o diálogo entre Bob e o casal Perley (depois o Kid vai entrar também no papo) é afiadíssimo, cheio de ironia e humor – e assim não é à toa que o espectador mais atento tivesse reparado, nos créditos iniciais, no nome de Frank S. Nugent como autor do roteiro, ao lado de Laurence Stallings. Frank S. Nugent é roteirista de primeiríssima.
Mrs. Perley serve café aos visitantes, diz achar que pelos chapéus eles são do Texas. Ela e o marido perguntam aos homens se por acaso eles não teriam visto, no caminho até Welcome, uma carroça com um casal – a sobrinha deles, mais o seu marido, sujeito burro, imprestável, segundo entrega de cara Buck Sweet, estavam vindo de Nova Jerusalém para Welcome, onde iriam passar com os tios o Natal que se aproximava.
Não, eles não tinham visto ninguém com essa descrição, não.
A esta altura – uns dez minutos de filme, se tanto –, o espectador já está cansado de saber que os três cavaleiros estão em Welcome, Arizona, para assaltar o banco local.
Estão se despedindo do simpático, pacato, ordeiro, tranqüilo casal, quando, como quem não quer nada, Buck Sweet afivela o cinturão com a arma e coloca o colete no qual brilha uma estrela de lata. Bob leva um susto, com aquela cara de John Wayne dele, Pedro arregala os olhos de Pedro Armendáriz dele.
Boa parte da trama gira em torno da secura, da falta de água
O assalto ao banco não vai demorar nada. Inicia-se então a perseguição aos três assaltantes, comandada pelo xerife Buck Sweet. O veterano, experiente Bob riu muito, no encontro com aquele senhor de aparência tão sossegada, e não percebeu aquela obviedade, a de que as aparências enganam.
Terá passado seguramente um terço de filme quando enfim veremos a tal carroça de que falavam os Sweet. É quando o western vai virar um conto de Natal. Mas a partir daí ainda haverá muita água para rolar debaixo da ponte.
A imagem tão desgastada – embora se transforme em algo extremamente digno quando um Bob Dylan já veteraníssimo a usa, “a lot of water under the bridge”, na canção que compôs especialmente para o filme Garotos Incríveis/Wonder Boys, de Curtis Hanson, de 2000 – é pouco apropriada, aqui. Porque um dos temas constantes deste O Céu Mandou Alguém/3 Godfathers é a falta de água, a secura daquele pedaço de terra.
A trama do filme – seja no primeiro ato, o western, seja no segundo, que se transforma em conto de Natal – gira, em boa parte, em torno da falta de água. Os ladrões de banco fugitivos chefiados por Bob e os seus perseguidores chefiados por Buck Sweet farão um jogo de xadrez, uma guerra de estratégia, em torno da questão da água, dos locais onde pode se encontrar água, no meio daquele território desértico.
E aí algum idiota da objetividade poderia questionar como é que aquele texano conhecia tão profundamente bem a geografia daquela região do Território do Arizona, para saber exatamente, como se tivesse em mãos um iPad com o Googlemaps, mais GPS, a localização de cada um dos três poços de água potável da região.
Porque Bob chega a desenhar na areia a localização das fontes de água – assim como o xerife Buck o fará para seus auxiliares numa espécie de quadro-negro.
Mas se algum idiota da objetividade quiser questionar os conhecimentos de Bob acerca da geografia e da hidrografia do Arizona, então ele não deveria ver este filme, assim como não deveria ver western algum, ora bolas.
Nos westerns, os grandes cavaleiros – sejam mocinhos ou bandidos – conhecem cada palmo daquela terra infinita, assim como são dotados da capacidade de sacar a arma num átimo, numa fração de segundo. Exatamente da mesma maneira que, nos filmes de ação, os bandidos ou os agentes da CIA são capazes de absolutamente qualquer façanha inimaginável por qualquer mortal, como matar uns 36 caras numa fração de segundo, como faz Tom Cruise nas diversas Missões Impossíveis ou em Encontro Explosivo/Knight and Day.
Faz parte do gênero, seja isso lógico ou não, racional ou não. De qualquer forma, não é para ser analisado por idiotas da objetividade.
Imagens belíssimas, pequenos detalhes deliciosos
Até porque profundos conhecimentos geográficos por parte de Bob, o ladrão de bancos, são fichinha diante de tudo o que se verá a partir do momento em que ele e seus comparsas avistam a carroça no meio do deserto.
Falei dos filmes de ação à lá Missão Impossível, Encontro Explosivo. Maravilhas da época das CGI, as computer generated images.
Neste aqui, que não é dos filmes maiores de John Ford, são de babar as cenas no deserto, das tempestades de areia. Tudo bem, em 1948 o cinema já era uma arte experiente, com algumas décadas de desenvolvimento, embora, é claro, ainda estivesse muito longe das CGI. Mas que maravilhosas são aquelas imagens, que coisa plasticamente impressionante, bela, que coisa tecnicamente bem feita.
E que maravilha os pequenos detalhes que os roteiristas Laurence Stallings e Frank S. Nugent e o diretor Ford nos apresentam, permeando sua narrativa. Ao final da pior tempestade de areia, Pedro-Pedro Armendáriz dana a praguejar em espanhol, para irritação de Bob. Bob, deliciosamente, irrita-se com Pedro sempre que este dana a falar em “mexicano”.
A senhora solitária do Poço Apache, uma senhora já bem entrada na meia-idade, fogosa como uma égua brava, feliz da vida quando vê homens – que delícia.
O cavalo que, qual uma mula, se recusa a andar, provocando a irritação de Buck Sweet – maravilha de pequeno detalhe do dia-a-dia para enfeitar a história.
Um John Ford menor é maior que a imensa maioria dos filmes que se fazem ao redor do mundo – nos anos 30, nos anos 2000, nos anos 2010.
Tudo para evitar os spoilers
Vejo agora nos alfarrábios que a mesma história já havia sido filmada em 1916, em The Three Godfathers, um filme dirigido por Edward LeSaint, no qual Harry Carrey faz o papel de Bob – o papel interpretado no filme de Ford por John Wayne. Ford, como já mencionei, dedicou este filme a Harry Carrey, e botou para trabalhar nele, no papel do Kid seu filho Harry Carrey Jr.
Harry Carrey, o pai, foi, segundo Leonard Maltin, o primeiro astro dos filmes de Ford.
Maltin dá 3 estrelas em quatro para o filme, que classifica como “sturdy, sentimental, sometimes beautiful” versão da saga de Peter B. Kynes tantas vezes filmada. Sturdy, diz um antigo dicionário supervisionado por Antônio Houaiss, é firme, resoluto, inflexível, forte, resistente – e, engraçado, nenhum desses cinco adjetivos me parece qualificar bem esta história. Em sua pequena resenha, de cinco linhas, Maltin antecipa o óbvio, o que acontece depois que os três ladrões fugitivos encontram no deserto a tal carroça, o que está implícito no título do filme, mas que eu, ranheta como o cavalo-mula que se recusa a obedecer às ordens do ajudante do xerife Buck, não confesso aqui.
Agora que minhas anotações sobre os filmes, antes feitas só para mim mesmo, ficam aí expostas ao público, como se fossem umbigos de gatinhas em Ipanema, morro de medo de revelar o que não deve ser revelado, o que acontece depois de uns 20 minutos de ação – embora neste caso específico até o título indique do que se trata.
Na verdade, atualmente, faço estas anotações sobre os filmes que vejo imaginando que elas talvez venham a ser lidas por quem já viu os filmes – não por quem ainda não os viu. Seguramente estou tirando os outros por mim – eu só leio sobre filmes depois de vê-los, e então imagino que os eventuais dois ou três leitores que me honram com visitas a este site cheguem aqui através dos buscadores logo após terem visto uma obra determinada, naquela curiosidade natural – o que será que disseram sobre ela?
Mas, pelo sim, pelo não, tento não dar spoilers.
Algumas das outras opiniões
“John Wayne como o chefe dos bandidos (a expressão é badmen) e (pequeno spoiler que pulo) está maravilhosamente cru e briguento. Há humor e honesto fazedor de lágrimas nesse filme visualmente belo”, definiu Bosley Crowther no New York Times da época, segundo cita o livro The Films of John Wayne.
O que prova que procurar a opinião dos outros é, sem dúvida, cultura, porque o ilustre crítico do jornalão usou as palavras raw e ructious para definir como está o Duke no filme. Recorri a três dos meus dicionários para achar o que é ructious, inclusive o Longmans, e a palavra não consta de nenhum deles. Tive que recorrer ao mamutiano Webster em três volumes para encontrá-la, e lá ela está como sinônima de quarrelsome, contentious, unruly, vexed. Vivendo e aprendendo – pena que, se amanhã eu me deparasse com a palavra ructious de novo, juraria jamais tê-la visto na vida.
O New York Herald Tribune diz, ainda segundo The Films of John Wayne: “Wayne está melhor que nunca como o líder dos bandidos”.
O guia de Jean Tulard realça o aspecto religioso do filme
Antes de encerrar esta anotação, quis ver o que diz o admirável Guide des Films de Jean Tulard. Ainda bem. Numa sinopse longa, maior do que o normal na grande obra (2.400 páginas em três volumes, abordando mais de 15 mil títulos), indício claro de respeito pelo filme, o guia francês chama a atenção para o aspecto religioso do filme, o aspecto seriamente religioso, na abordagem de um autor que tinha imenso respeito pela religião. (Os tais 6 mil anos de civilização a mais fazem mesmo uma diferença brava.)
Claro que eu tinha prestado atenção ao aspecto religioso do filme, mas acabei falando pouco dele. Fiz referência à coisa do conto de Natal, uma tradição arraigada entre os anglo-saxões – Ford, como se sabe, é descendente de irlandeses católicos –, mas tratei disso como coisa menor.
Não é.
São muitas, muitíssimas as referências à Bíblia na história contada por Ford. Três pessoas, três reis magos. A estrela guia. A Bíblia indicando o caminho. Os dois crentes sacrificados no caminho, o único incréu chegando ao final da jornada. O significado cristão (não o comercial) do Natal. O congraçamento entre os homens de boa vontade.
John Ford se mostra um crente, um believer. A palavra crente adquiriu conotação pejorativa, a palavra believer indica o anti-cínico, o lutador, o perseguidor de alguma esperança. “And now you see believers turn to cynics”, diz a canção dos anos 70, quando boa parte da minha geração era cínica em relação à religião.
Eu, pessoalmente, cada vez mais respeito as crenças, ao mesmo tempo em que abomino os fanatismos, sejam de que lado vierem.
John Ford é grande até mesmo por ser crente. É de tirar o chapéu, mesmo quando faz um filme que dentro de sua obra é menor.
O Céu Mandou Alguém/3 Godfathers
De John Ford, EUA, 1948
John Wayne (Robert Marmaduke Hightower), Pedro Armendáriz (Pedro ‘Pete’ Roca Fuerte), Harry Carey Jr. (William Kearney), Ward Bond (Perley ‘Buck’ Sweet), Mae Marsh (sra. Perley Sweet), Mildred Natwick (a mãe), Jane Darwell (Miss Florie), Guy Kibbee (o juiz)
Roteiro Laurence Stallings e Frank S. Nugent
Baseado em história de Peter B. Kyne
Fotografia Winton C. Hoch
Música Richard Hageman
Produção Argosy Pictures, MGM. DVD Warner Bros.
Cor, 106 min
19/2/2011
***
Título em Portugal: Os Três Padrinhos.
Ai, são tantas coisas pra dizer…
1. Eu venho sempre aqui. E leio sobre os filmes que vi e sobre os que não vi. E sinto falta dos spoilers. Você não pode (porfavorzinho – com olhos do Gato de Botas do Shreck)anunciar Spoiler! em um dos tópicos que você costuma usar pra dividir seu texto e comentar estas coisas incríveis que você não comenta?
2. Ford é incrível. Wayne é incrível. E este mesmo sendo um Ford menor (mas é um grande Wayne pra contrabalançar) é um filme incrível. Tenho o DVD 🙂
3. “Eu, pessoalmente, cada vez mais respeito as crenças, ao mesmo tempo em que abomino os fanatismos, sejam de que lado vierem.” Obrigada por escrever coisas assim, que fazem meu dia ficar mais luminoso.
Belíssima Obra, Texto Magnífico e Perfeitamente em equilíbrio com A Realidade!