Mediterrâneo / Mediterraneo

4.0 out of 5.0 stars

Mediterrâneo, de Gabriele Salvatores, de 1991, é uma obra-prima. Belíssimo cinema, maravilhosa ode à paz e à alegria de viver, suave – porém firme – panfleto em defesa da tese de que as pessoas são melhores e mais importantes do que as ideologias, os países, os nacionalismos.

Ao revermos o filme agora, 20 anos depois que ele foi feito, 19 anos depois da primeira e até então única vez, no Belas Artes, ficamos, Mary e eu, boquiabertos, impressionados com sua beleza – mais ainda do que na época do lançamento.

Em 1992, anotei apenas uma frase: “Belo filme sobre a possibilidade da utopia”. É isso, sim – mas isso é pouco. É isso, e muito mais.

Mary, que saiu da sala depois de rever o filme falando as definições “necessário”, “importante”, “essencial”, achou muito normal quando disse a ela que não estava sabendo como começar minha anotação sobre o filme. Disse uma coisa assim: “É claro, porque o filme é maior, é muito mais do que simplesmente um manifesto pacifista, uma homenagem à vida”.

Um filme simples, que evita cuidadosamente a tentação da grandiloqüência

Fiquei pensando que talvez uma das chaves da grandeza de Mediterrâneo é que ele é simples. Quase singelo. Evita, cuidadosamente, a tentação da grandiosidade, da grandiloquência. Vai dando seus recados como quem não quer nada, como se fosse uma comedinha suave, terna.

De fato, é um filme suave, terno. Os recados que ele vai dando são sérios, duros, pesados. Ou, para usar os adjetivos que Mary escolheu, importantes, necessários, essenciais.

Mas a maravilha é que o diretor Giuseppe Salvatores e o roteirista Enzo Monteleone, este também o autor do argumento original, conseguiram a proeza de encontrar o tom perfeito para equilibrar a seriedade do que se diz com a forma amena, delicada, bem humorada de mostrar sua história.

“Sobreviventes de batalhas perdidas, desajustados que se salvaram por acaso”

O filme abre com esta citação, num letreiro: “Em tempos como este, a fuga é o único meio de manter-se vivo e continuar sonhando”. A frase é de Henri Laborit, o neurocirurgião, escritor e filósofo francês, estudioso do comportamento, homenageado pelo mestre Alain Resnais em Meu Tio da América.

E aí temos uma tomada em plano geral de uma imensidão azul: na parte debaixo da tela, ocupando assim menos de um quarto do quadro, o azul profundo do Mar Egeu, e, acima dele, o azul mais claro de um céu sem nuvens. Após alguns segundos daqueles azuis infinitos, sobre os quais vemos os nomes dos atores, entram, ao mesmo tempo, sincronizadamente, uma música forte, poderosa, e, avançando da esquerda para a direita, um navio, um navio de guerra.

Enquanto prosseguem os créditos iniciais, os acordes pesados da trilha sonora criada por Giancarlo Bigazzi e Marco Falagiani realçam a visão das armas do barco de guerra.

Assim que terminam os créditos, a belíssima música vai ficando mais baixa até sumir, e ouvimos a voz em off que nos apresenta a situação:

“Fomos mandados em missão a Mighisti, uma ilha perdida no Mar Egeu, pequena e longínqua. Importância estratégica: zero. Era uma missão de observação e ligação. Cabia-nos tomar posse e informar eventuais avistamentos. Meu grupo era formado por sobreviventes de batalhas perdidas e batalhões desfeitos. Desajustados que, como eu, se salvaram por acaso.”

Beleza de sacada, essa, do roteirista Enzo Monteleone, que Salvatores executa com perfeição: enquanto ouvimos as apresentações do narrador, vamos vendo as pessoas que ele introduz, se movimentando no navio:

“Eliseo Strazzabosco (Luigi Alberti), condutor de mulas, era um sujeito estranho. Esteve toda a guerra com a sua Silvana (vemos Strazzabosco com uma mula a seu lado, dentro do navio), trazida de sua terra. Gostava dela como se fosse uma pessoa.”

“Havia os irmãos Munaron, Libero (Memo Dini) e Felice (Vasco Mirandola). Rapazes decentes, das montanhas. Nunca haviam visto o oceano.” (Os irmãos Munaron têm enjôos com o balançar do navio.)

“E havia Lorusso (Diego Abatantuono) e Colasanti (Ugo Conti). Loruso esteve na África; era sargento. Que faria ele quando a guerra acabasse? Colasanti cuidava do rádio e vivia na sombra do sargento, como simbiose. Tinha o Corrado Noventa (Claudio Bisio), o desertor. Já havia fugido muitas vezes; queria voltar para casa porque sua mulher estava grávida. Na última vez, tinha sido preso entre a Albânia e a Iugoslávia; tentava voltar para a Itália a pé. Meu ordenança, Antonio Farina (Giuseppe Cederna), era apegado a mim. Sempre pronto a obedecer. Adivinhava até meus pensamentos.”

O batalhão – veremos rapidamente – é um autêntico exército de Brancaleone

Logo veremos que aquele que nos apresenta o batalhão é o seu comandante, o tenente Raffaele Montini (Claudio Bigagli).

E logo veremos que aquele batalhão de oito italianos que desce do navio para conquistar a ilha grega de Mighisti, em missão de observação e ligação, em 1941, é na verdade um exército de Brancaleone, tão trapalhão, tão desastrado quanto a armata criada por Mario Monicelli em seu delicioso filme de 1966.

Chegam armados, os fuzis e revólveres apontados para a frente, como se estivessem prontos para enfrentar todo um exército de partisans gregos com o apoio de uma divisão inglesa. Caminham pela minúscula aldeia da ilha à espera de feroz resistência, mas não encontram uma alma viva. A ilha parece inteiramente deserta.

Com 15 minutos de filmes, o incrível exército Brancaleone do tenente Montini já havia disparado – fatalmente – contra uma galinha e contra Silvana, a amada mula de Eliseo Strazzabosco.

Chegam finalmente ao topo de uma montanha, o ponto mais alto da ilha. Naquele lugar, com o mar lá bem abaixo – com aquele azul tão belo como poucas coisas no planeta –, os irmãos Munaron, criados nas montanhas, se sentem perfeitamente à vontade. Dizem ao tenente que, por eles, não precisam ser substituídos de tempos em tempos: podem ficar lá direto e reto, na importante, fundamental missão de perscrutar os horizontes à procura de algum navio, aliado ou inimigo, e manter informado o resto do pelotão.

Estamos com exatos 18 minutos de filme quando um movimento de câmara de Gabriele Salvatores, mostrando os dois irmãos sozinhos em seu posto avançado de observação, indica para o espectador, pela primeira vez, que há, sim, outras pessoas na ilha.

Mediterrâneo é assim uma espécie de “Imagine”, sem aquele nariz arrebitado de John Lennon

O que virá a seguir é uma beleza de cinema. Uma narrativa que mistura humor, poesia, uma imensa paixão pelas pessoas simples, humildes, um intenso humanismo, um olhar doce, suave, terno, sobre esta espécie animal capaz das maiores atrocidades e das mais incríveis maravilhas.

Mediterrâneo é assim, me ocorreu, uma espécie de “Imagine”, de John Lennon, sem aquele tom superior de quem está ensinando o caminho das pedras, sem aquele tom de aula, de lição.

Mediterrâneo é, me permito repetir, uma maravilhosa ode à paz e à alegria de viver, um suave – porém firme – panfleto em defesa da tese de que as pessoas são melhores e mais importantes que as ideologias, os países, os nacionalismos.

Uma pequena e preciosa pérola que faz lembrar outro filme que é grande sem parecer sê-lo, sem qualquer aparência de pretensão: Este Mundo é dos Loucos/Le Roi de Coeur, que Philippe de Broca, aquele poeta da simplicidade, realizou em 1966. Naquele filme, um soldado escocês (um dos melhores papéis do grande Alan Bates) se vê sozinho, durante a Primeira Guerra Mundial, numa aldeia francesa que foi abandonada por quase todos os seus habitantes, que fugiram temendo a iminente chegada das tropas alemãs – e deixaram para trás apenas os loucos do hospício local.

É isso: Mediterrâneo é uma pequena pepita preciosa que tem o mesmo tom suave, bem humorado com um travo feio de amargura por trás, de Este Mundo é dos Loucos.

Um sucesso extraordinário, Oscar de melhor filme estrangeiro

Foi o quinto filme dirigido por Gabriele Salvatores, um napolitano nascido em 1950. Parece que foi seu filme de maior sucesso. E um sucesso extraordinário. Ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro; teve indicação para a mesma categoria no Globo de Ouro, e levou esse troféu pela trilha sonora. Para o David di Donatello, o Oscar italiano, teve 12 indicações, e levou os prêmios de melhor filme, melhor som e melhor montagem.

O elenco tem ótimos, prestigiados atores do cinema italiano. Diego Abatantuono, que faz o sargento Lorusso, trabalhou em vários outros filmes do diretor, inclusive em Eu Não Tenho Medo, de 2003, uma obra interessantíssima, que me fez querer rever Mediterrâneo. Claudio Bigagli, que faz o tenente, já trabalhou com os irmãos Taviani (em Kaos, A Noite de São Lourenço, Aconteceu na Primavera) e Ettore Scola (Concorrência Desleal) e participou de diversos outros filmes importantes, como Pasolini, um Delito Italiano.

Há duas belas atrizes no elenco, tão belas quanto o azul do Egeu. Irene Grazioli está ótima como a pastorinha que sorri um sorriso imenso para a vida. E Vanna Barba não precisa fazer esforço algum para seduzir, de uma vez só, toda a soldadesca italiana. Vanna, uma ateniense nascida em 1966, foi parar no cinema, assim como tantas outras atrizes – como a deusa Silvana Mangano, por exemplo – depois de vencer um concurso de beleza; teve uma carreira de sucesso como modelo, e sua filmografia inclui 43 títulos, quase todos no cinema grego, muito pouco conhecido entre nós. Aparentemente, pelo que dá para ver na internet, tesão, em grego, se diz vannabarba.

Mary observa que Irene Grazioli faz a pura e Vanna Barba a puta, e que as duas trepam com a mesma e imensa alegria. Poderia causar um certo estranhamento, mas seria perfeitamente lógico, digo eu, se, em algumas tomadas em que vemos a alegria da pura e da puta, ouvíssemos o verso “ai que vida boa, oleré, ai que vida boa, olará”.

Como os bons vinhos, Mediterrâneo fica ainda melhor com a passagem do tempo

O Guide des Films do mestre Jean Tulard diz:

“Sob o sol radiante, uma paisagem de beleza selvagem e resplandescente sublinha o absurdo de uma guerra distante e abstrata. Nessa ilha, tudo convida ao hedonismo, à harmonia, à simples alegria de viver. Essa saborosa comédia com numerosos traços humorísticos exala um prazer indolente e precioso que amaríamos ver se prolongar; ela obteve o Oscar de melhor filme estrangeiro de 1992.”

Tá certo, como na imensa maioria das vezes, o mestre Tulard.

Mediterrâneo é uma maravilha. Como os bons vinhos, fica ainda melhor com a passagem dos anos.

Anotação em novembro de 2011

Mediterrâneo/Mediterraneo

De Gabriele Salvatores, Itália, 1991

Com Diego Abatantuono (Nicola Lorusso), Claudio Bigagli (Raffaele Montini), Giuseppe Cederna (Antonio Farina), Claudio Bisio (Corrado Noventa), Luigi Alberti (Eliseo Strazzabosco), Ugo Conti (Luciano Colasanti), Memo Dini (Libero Munaron), Vasco Mirandola (Felice Munaron), Vanna Barba (Vassilissa), Luigi Montini (o padre), Irene Grazioli (a pastora)

Argumento e roteiro Enzo Monteleone

Fotografia Italo Petriccione

Música Giancarlo Bigazzi e Marco Falagiani

Produção A.M.A. Film, Cecchi Gori Pictures, Penta Film, Silvio Berlusconi Communications. DVD FlashStar

Cor, 96 min

R, ****

8 Comentários para “Mediterrâneo / Mediterraneo”

  1. Sergio, tenho visitado com frequencia este site ( teu site ). Procuro teus comentários sobre muitos filmes e aqueles que quero assistir. Ao contrário do que disseste,que não gostas de ler as sinopses dos filmes, eu faço isso com muitos. Tenho descoberto filmes maravilhosos, que não conhecia aqui no teu site, como é o caso de Mediterrâneo,Eu não tenho medo,A noite de São Lourenço, Retratos da Vida,Terror a Bordo, e muitos outros…
    Pena que estes que citei e, outros mais, eu não encontro nas duas locadoras aqui do Bairro, por causa do ano de produçao. Quero te perguntar se conheces aqui no Rio de Janeiro, alguma locadora onde eu pudesse encontrar filmes anteriores a 1995.
    Sabes muito mais do que eu, quanta jóia rara existe nesse espaço. Sem querer puxar teu saco ( desculpe ) jóia rara igual ao teu site, que tive o prazer de descobrir. Achei legal quando disseste que “toda discordância é sempre bem vinda”. Embora muita gente não ache. Me fez lembrar Nelson Rodrigues,quando disse que “toda unanimidade é burra”. Embora muita gente também não ache. Tens toda razão.
    Vou procurar em outros bairros, locadoras onde possa encontar esses filmesmais antigos mas, se puderes me orientar nesse sentido, te agradeço. Parabéns pelo site, Sérgio.

  2. Sergio,tenho estado por aqui todos os dias. Absorvo cada elogio e cada critica que vc faz. Parabéns pelo belo Trabalho.

  3. Vai ser difícil encontrar em locadoras, mas entre no site das Lojas Americanas e compre. Eu fiz isso recentemente e paguei R$-15,00. Baratíssimo para uma verdadeira obra-prima.

  4. Tenho o DVD, mas tenho também uma queixa: A dublagem não é a mesma da que saiu em VHS, um pecado. Não entendi porque fizeram isso, um crime.

  5. Boa noite! Eu assisti Mediterrâneo no ano de lançamento no Brasil, lá no longíquo 1992, num cinema do Leblon, RJ. Belíssimo filme, um dos meus preferidos, tanto que indiquei pra várias pessoas, e tenho certeza que a maioria gostou. Pretendo revê-lo em breve, pois como o Sérgio disse, é como o vinho, melhora com o tempo!

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