Anotação em 2011: Premiado, elogiado, grande sucesso de público, Matrimônio à Italiana – a segunda das três obras em que Vittorio De Sica dirigiu os monstros sagrados Sophia Loren e Marcello Mastroianni – me pareceu hoje perigosamente no fio da navalha entre um belo filme e um filme ridículo.
Opinião pessoal é opinião pessoal. Há sempre o risco de ter sido uma questão de momento – às vezes simplesmente a gente não entra no espírito do filme. Mas o fato é que achei exatamente isto: que o filme fica na tênue fronteira do ridículo. E não fui só eu: Mary sentiu a mesma coisa.
Tem a ver com a questão dos estereótipos. Os estereótipos são sempre perigosos: francês é isso, português é aquilo, italiano é aquilo outro. A sensação é de que De Sica e seus roteiristas exageraram no estereótipo de que os italianos, ou especificamente os italianos do Sul – a ação se passa toda em Nápoles – são passionais, exacerbados, gritam muito, exageram nos gestos; e são terrível, mas terrível, mas terrivelmente machistas.
Quando a ação começa, nos dias de hoje, ou seja, nos dias em que o filme foi feito – 1964 –, Filumena Marturano (o papel de Sophia Loren) está sendo carregada em uma grande cadeira por uma multidão álacre, ruidosa, escada acima num prédio de apartamentos. Está doente, muito doente. Mandam chamar Don Domenico, e o encarregado de chamá-lo é um empregado, Alfredo (Aldo Puglisi) – e Alfredo é exageradíssimamente serviçal, exageradissimamente desajeitado, exageradissimamente exagerado em tudo, dá ao filme um tom de farsa aberta.
Don Domenico (o papel de Marcello Mastroianni) é alcançado em uma de suas propriedades, um ateliê de costura localizado nos fundos de um bar; está a uma semana do seu casamento com a muito jovem moça do caixa. Alfredo diz que o estado de Filumena é gravíssimo, e, embora a contragosto, Don Domenico vai até o grande apartamento em que está a quase moribunda. Demoram a deixar Don Domenico entrar no quarto para vê-la; quando ele entra, ela pede um padre – quer a extrema-unção.
Tudo muito exagerado, muito caricato, o grande Mastroianni inclusive
Todas essas sequências iniciais têm um tom desagradável de farsa – é tudo muito escandaloso, todos os atores estão exagerados, caricatos, o grande Mastroianni inclusive.
Ele senta-se a uma cadeira num corredor do grande apartamento, próximo ao quarto em que está definhando Filumena; a câmara aproxima-se dele, temos um grande close-up de seu rostos, seus olhos – e, cacildabecker, já estávamos em 1964, não precisava desse exagero todo para demonstrar ao respeitável público que vamos ter um flashback.
Temos o flashback em que veremos a história de Don Domenico e Filumena, de acordo com as recordações dele.
Era ainda durante a guerra, ali possivelmente por 1943; Domenico estava num puteiro, soa o alarme, vem aí um bombardeio, clientes e profissionais vão descendo as escadas, indo para a rua, em direção ao abrigo anti-aéreo, italianamente falando alto, gritando, gritando – ah, que dureza, os estereótipos.
Antes de descer ele também, Domenico encontra uma assustada Filumena, prostituta aos 16 anos de idade.
Reencontram-se anos depois, a guerra recém-terminada. Reencontram-se outra, outra, outra vez. Aos poucos, Filumena vai se instalando como a amante de Domenico, primeiro num pequeno apartamento, depois no próprio grande apartamento onde ele vive com mãe bem velhinha e doente. Viverá lá não com o status de mulher dele, mas como uma mistura de governanta, cuidadora da velha mamma e abridora de pernas para o patrão.
Termina o flashback com, de novo, o close-up desnecessário dos olhos de Domenico. O padre vai pedir a ele que faça um gesto generoso pela moribunda, para que ela não se vá desta vida em estado de pecado: que se casem, ali mesmo, naquele momento.
Estamos aí com uns 20 minutos de filme.
Um cineasta da maior importância – que deu alguns tropeços
O tom de comédia escrachada, exagerada, vai depois se misturar a um tom de profundo melodrama. Num terceiro ato, retornará a comédia escrachada.
Sim, há a denúncia das mazelas sociais, das diferenças de classe, do machismo absurdo, chocante. Mas tudo tão próximo, tão pertinho do ridículo, que até assusta.
Porque De Sica é um cineasta da maior importância. Tem grandes filmes, obras-primas – desde Vítimas da Tormenta (1946), Ladrões de Bicicleta (1948), Milagre em Milão (1951), Umberto D (1952), O Teto (1956), Duas Mulheres (1960), marcos do neo-realismo italiano, um movimento que influenciou profundamente a cinematografia de diversos países, a nouvelle-vague francesa, o cinema novo inglês, o cinema novo brasileiro, até o cinema iraniano dos anos 90. O Jardim dos Finzi-Contini (1970), que revimos há pouco, é de um brilho extraordinário. Mas De Sica teve uma trajetória irregular, nos anos 60 e 70; tropeçou em alguns filmes mais, digamos, popularescos. Este aqui é um deles, me parece.
O filme é a adaptação de peça que foi imenso sucesso de público
É a adaptação de uma peça teatral de Eduardo De Filippo, que tem como título o nome da personagem feminina, Filumena Marturano. Parece que foi uma peça de extraordinário sucesso popular.
Uma olhada na internet confirma: de fato, a peça teve imenso sucesso. O papel de Filumena foi primeiramente interpretado no teatro em Nápoles, em 1946, logo após o fim da Segunda Guerra, por Tinita De Filippo, irmã do autor – a quem o filme de De Sica é dedicado.
A peça seria apresentada em Londres em 1977, sob a direção de Franco Zeffirelli, com a grande Joan Plowright no papel central. A produção foi premiada no ano seguinte, e em 1980 levada para a Broadway. Houve nova temporada em Londres em 1998 e 1999, com Judi Dench no papel de Filumena Marturano. Cacete: Joan Plowright e Judi Dench, duas imensas damas do teatro e do cinema ingleses.
Antes da versão cinematográfica de De Sica, de 1964, a peça virou filme em 1950 sob a direção do próprio autor Eduardo De Filippo; ele mesmo fazia o papel de Domenico e sua irmã Tinita, o de Filumena. O próprio autor faria também uma outra versão da peça para a TV italiana. E agora em 2010 a RAI Uno transformou a história em uma minissérie.
Eduardo De Filippo (1900-1984) começou a trabalhar como ator aos cinco anos de idade, e em 1932 fundou uma companhia teatral com seus irmãos Peppino e Tinita. Como ator, trabalhou em O Ouro de Nápoles, dirigido por De Sica em 1954 – a jovem Sophia Loren também estava no elenco.
O filme flerta com o ridículo, mas, claro, tem qualidades
Apesar do perigoso flerte com o ridículo, com o abuso do estereótipo, o filme tem, é claro, qualidades. Um De Sica, ainda que menor, sempre tem qualidades. A direção de arte é soberba, e as tomadas de Nápoles, espetaculares.
E Mastroianni e Sophia, mesmo se exageram, ficam over em algumas seqüências, são sempre maravilhosos de se ver.
E, a rigor, bastaria a beleza majestosa de Sophia para justificar o filme. Ela está demais, e De Sica, é claro, usa e abusa daquelo rosto absurdo, pleonástico, e do corpo sensacional, aquela coisa que excede. É uma bênção para os olhos.
Indicações ao Oscar, e o Globo de Ouro como melhor filme estrangeiro
Matrimônio à Italiana teve duas indicações ao Oscar – como candidato a melhor filme estrangeiro e melhor atriz para Sophia Loren, que já havia ganho o prêmio da Academia dois anos antes, por Duas Mulheres. O filme ganhou o Globo de Ouro como melhor filme estrangeiro; havia sido indicado também para os prêmios de melhor atriz e melhor ator. Ao todo, o filme ganhou oito prêmios e teve cinco outras indicações.
Sophia Loren, a maior atriz italiana dos anos 60 e 70, e Marcello Mastroianni, o maior ator italiano daquele período, trabalharam juntos em sete filmes. Além deste aqui, e dos outros dois dirigidos por De Sica – Ontem, Hoje, Amanhã (1963) e Os Girassóis da Rússia (1970) –, fizeram juntos La Moglie del Prete, de Dino Risi (1971), La Pupa del gangster, de Giorgio Capitani (1975), Um Dia Muito Especial, de Ettore Scola (1977), e Prêt-à-Porter, de Robert Altman (1994).
O Guide des Films de Jean Tulard é bem sucinto na apreciação do filme: “É às vezes bem fácil, e Sophia Loren não é um modelo de sobriedade. Para aqueles que amam as comédias italianas”.
Leonard Maltin dá 3 estrelas em 4, qualifica o filme de spicy – temperado, apimentado – e revela em uma única linha, o que acontece depois dos 20 primeiros minutos do filme, coisa que eu não vou fazer.
Matrimônio à Italiana/Matrimonio all’italiana
De Vittorio De Sica, Itália-França, 1964
Com Sophia Loren (Filumena Marturano), Marcello Mastroianni (Domenico Soriano), Aldo Puglisi (Alfredo), Tecla Scarano (Rosalia), Marilù Tolo (Diana), Gianni Ridolfi (Umberto), Generoso Cortini (Michele), Vito Moricone (Riccardo)
Roteiro Renato Castellani, Tonino Guerra, Leonardo Benvenuti e Piero De Bernardi
Baseado na peça Filumena Marturano, de Eduardo De Filippo
Fotografia Roberto Gerardi
Música Armando Trovajoli
Produção Carlo di Ponti, Compagnia Cinematografica Champion, Les Films Concordia. DVD Versátil
Cor, 102 min
**1/2
Título em inglês: Marriage Italian-Style. Título em Portugal: Casamento à Italiana.
Eu só este filme há pouco tempo, não o vi quando passou pela minha cidade, o que não me admira; só com 2 salas e com apenas, muitas vezes, uma sessão por filme, era fácil escapar-nos.
Vi-o em DVD que me emprestaram e gostei muito! Que saudades eu tinha daqueles actores!
Mas creio que a sua opinião está correcta.
Eita, hoje estou do contra \o/ Porque eu gosto tanto, tanto desse filme! Ok, sou parcial nas minhas análises quando Sophia Loren ou Marcello Mastroianni estão presentes, imagine juntos! Eu gosto do tom farsesco. Pra mim, ele convida à empatia crítica. Além disso, aprecio muito a trilha sonora.
PS. Todo close-up no Marcello ou na Sophia é pouco 😉
Revi o filme recentemente e continuo a achá-lo exageradamente… delicioso! Que pena não se fazerem mais comédias assim…
Ótima análise. Gosto do filme mas não me
empolgo. Esse trio – de Sica, Mastroianni e
Sophia – fez, junto ou separado, coisas melhores. Permita-me um reparo em sua relação de filmes da dupla Marcello e Sophia, pois a parceria começou muito antes:
PECCATO CHE SIA UNA CANAGLIA (1954), do ótimo diretor de comédias Alessandro Blasetti, e ainda tendo de Sica como ator;
LA FORTUNA DI ESSERE DONNA (1955) também de Blasetti; e LA BELLA MUGNAIA (1955), de Mario Camerini, também com o grande de Sica
atuando.
P.S. É possível que os títulos em italiano não estejam grafados corretamente.