Anotação em 2010: Este Enigmas de um Crime/The Oxford Murders é um show de talento, inteligência, erudição. Um filme descaradamente pretensioso, metido a besta – e tem motivos para ser, porque é bom mesmo.
O título que os distribuidores brasileiros escolheram tira fora o fundamental: Oxford, uma das universidades mais antigas, mais respeitadas do mundo. Quase toda a ação se passa em Oxford, na cidade e em especial no campus da universidade. A história é assim uma mistura de uma trama à la Sherlock Holmes com a boa série da TV americana Numbers – só que foi criada por um escritor espanhol, Guillermo Martinez. O livro se chama Los Crimines de Oxford.
(Por que diabos não chamaram o filme aqui de Os Crimes de Oxford? Até porque Enigmas de um Crime, além de vago, é errado, já que se trata de vários crimes, e não de um apenas.)
De maneira fascinante, o filme é uma co-produção Espanha-Inglaterra-França. O diretor, Álex de la Iglesia, é espanhol – mais especificamente, um basco, de Bilbao, e bem jovem, nascido em 1965, e a atriz que faz o principal papel feminino também é espanhola, a bela, gostosa e talentosa Leonor Watling, de Minha Mãe Gosta de Mulher, Minha Vida Sem Mim, Fale com Ela, A Vida Secreta das Palavras, Lope. São espanhóis também o diretor de fotografia, Kiko de la Rica, e o autor da trilha sonora, Roque Baños.
O protagonista, Elijah Wood, com aqueles gigantescos olhos azuis vistos na trilogia O Senhor dos Anéis, é americano. Mas o ambiente, o clima, a trama, tudo no filme é absolutamente inglês. Todos os personagens, inclusive o da espanhola Leonor Watling, são ingleses – com a única exceção de Martin, o papel de Elijah Wood, um estudante estrangeiro, ou, na língua da rainha, não a foreign student, como poderíamos pensar, mas a student from overseas.
Em sua palestra, o matemático e professor questiona o que é a verdade
A primeira seqüência é surpreendente, inesperada: uma cena de guerra – veremos em seguida que da Primeira Guerra Mundial. No meio do campo de batalha, um homem faz anotações em um caderno.
Corta, e estamos num daqueles grandes auditórios das universidades de primeiro mundo. Um letreiro informa: Oxford, 1993. Um grande matemático, professor famoso, respeitado, autor de vários livros, Arthur Seldom (o papel de John Hurt, na foto) está dando uma palestra. Fala de um filósofo, Ludwig Wittgenstein (1889-1951), que, durante uma batalha na Primeira Guerra, alheio ao tiroteio e às bombas, fazia anotações em seu caderno, que resultariam no livro Tractatus Logico-Philosophicus, que o professor Seldom chama de “o trabalho filosófico mais influente do século XX”.
O matemático e professor inglês usa o trabalho do filósofo austríaco para ilustrar o tema central de sua palestra, uma discussão sobre o conceito de verdade – o que é verdade? O que pode ser considerado como uma verdade indiscutível, aceita por toda a humanidade como tal, que não seja passível de discussão?
Vale a pena transcrever o que diz o professor Seldom para o venerável, imenso auditório, abarrotado de gente, em um dos colleges de Oxford – e o veterano John Hurt está ótimo, com aquele ar professoral, teatral, cheio de si, que seria de se esperar de um grande e conceituado e pavoníssimo intelectual:
“O soldado (o tal que, em plena batalha, fazia anotações em um caderninho) se chamava Ludwig Wittgenstein, o homem que pôs limites aos nossos pensamentos. O enigma que ele tentava decifrar era o seguinte: podemos conhecer a verdade? Os grandes pensadores, através da história, procuraram por uma única certeza, algo que não se pudesse refutar, como 2 e 2 são 4. Para achar essa verdade, Wittgenstein usou a lógica matemática. Que meio melhor de se obter uma certeza, a não ser essa linguagem imutável, livre das paixões do homem? Ele avançou lentamente, usando equação após equação, com um método impecável, até chegar a uma conclusão aterrorizante: não existe verdade fora da matemática. Não há modo de achar uma única verdade absoluta, um argumento irrefutável, que ajude a responder às questões da humanidade.”
Eis aí um tema delicioso, irresistível, seja para um curso de filosofia, lógica ou matemática, ou para um papo furado de amigos num belo final de tarde, a ser servido junto com a primeira dose.
Como abertura de um thriller, um filme de crime e suspense passado na e em torno da Universidade de Oxford, é a perfeição.
Um estudante americano aluga um quarto na casa de uma velha senhora
Corta, temos o nome do filme – The Oxford Crimes – e vemos Martin, o personagem de Elijah Wood, num moderno trem inglês rumo a Oxford. Ele lê um dos livros do professor Arthur Seldom. Enquanto vamos vendo os créditos iniciais, Martin chega à cidade da universidade, e vai até a casa da sra. Eagleton (Anna Massey), uma septuagenária que tem um quarto para alugar para students from overseas.
Martin e a sra. Eagleton começam a conversar, e depois de algum tempo irrompe na sala a filha da sra. Eagleton, Beth (o papel de Julie Cox), uma jovem mulher de uns 30 e poucos anos.
De maneira magistral, o diretor Álex de la Iglesia e seu co-roteirista Jorge Guerricaechevarría mostram ao espectador, nessa única sequência na sala de estar da sra. Eagleton, uma montanha de informações:
. o falecido professor Eagleton era um grande gênio da matemática; teve como seu assistente o agora respeitadíssimo Seldom;
. Martin, o americano de Iowa, é um geniozinho da matemática, e planejou cuidadosamente sua ida a Oxford para uma pós-graduação; conhece bem os trabalhos de Seldom, seu grande ídolo; escolheu alugar um quarto exatamente ali porque sabe muito bem da ligação de Seldom com os Eagleton; sua grande ambição é que Seldom seja o orientador de sua tese;
. a sra. Eagleton e sua filha Beth não se dão nada bem; as duas têm personalidades fortes, e uma não tem propriamente respeito pela outra;
. depois que o professor Eagleton morreu, a viúva, segundo Beth, teria demonstrado vontade de se casar com Seldom;
. Beth Seldom é uma jovem mulher que não se dá bem em seus relacionamentos afetivos.
O diretor grita Shazam! – e faz um plano-seqüência esplendoroso
Veremos em seguida, ainda nos primeiros momentos do filme, que Martin, o americano geniozinho da matemática, sempre informal na maneira de vestir, veia de aventureiro para sair do Iowa e ir a Oxford fazer uma pós, causa forte impressão sobre Beth, estudante de violoncelo erudito, inglesa filha de intelectuais, acadêmicos, muita rebeldia da boca para fora mas só da boca para fora.
Veremos também que Martin dividirá uma sala de estudos na universidade com outro gêniozinho, um russo, Podorov (Burn Gorman), que tem ódio de Seldom.
E, numa bela jogada com a cronologia, veremos que Martin assistiu àquela conferência dada por Seldom. Foi o único da audiência que ousou fazer perguntas, questionar o grande mestre – e, a essa insolência do estrangeiro que sequer fala a língua da rainha, Seldom respondeu esmagando os argumentos do garoto como um gigante pisando numa formiguinha.
Estamos aí com uns 15 minutos de filme. E é nesse momento que o jovem diretor espanhol, perdão, basco, grita Shazam!, e faz um dos mais esplendorosos planos-seqüência que vi nos últimos muitos anos.
Um plano-seqüência para entrar na galeria dos mais magistrais
Até aí, tínhamos um filme que prometia. Uma trama interessante, personagens idem, o ambiente mais propício possível a um thriller, um filme policial com suspense a ser desenvolvido com inteligência, argúcia – fora os aspectos técnicos todos perfeitos, fotografia, música, direção de arte.
Mas, quando estamos aí com uns 15 minutos de filme, Álex de la Iglesia grita Shazam!
O plano-seqüência começa no teatro em que Beth e a orquestra ensaiam. A câmara segue uma mulher que sai do teatro, avança pelas ruas…
Não vou nem tentar descrever todo o plano-seqüência em palavras, porque seria absurdo, sem sentido. Plano-seqüência é cinema na sua mais absoluta essência, algo de que nenhuma outra arte, nenhum outro engenho humano é capaz. Um bom plano-seqüência é uma das coisas mais belas, mais plenas que pode existir na vida – e esse absurdo plano-seqüência que o espa…, o basco Álex de la Iglesia criou é extraordinário, é de babar, é de se aplaudir de pé como na ópera.
Dá vontade de lembrar outros planos-seqüência antológicos, brilhantes, a grande abertura de Olhos de Serpente de Brian De Palma, o tomo inteiro da Segunda Guerra de Reparação de Ian McEwan resumido por Joe Wright em Desejo e Reparação, James Stewart seguindo Kim Novak em Um Corpo de Cai de Hitchcock, a mulher insatisfeita sendo seguida e seduzida em Vestida para Matar de Brian De Palma, de novo ele, ou, evidentemente, o pai de todos, o plano-seqüência que dura o filme inteiro em Festim Diabólico/Rope de Hitchcock, de novo ele, o mestre de todos.
O plano-seqüência que vem quando este filme aqui está aí com uns 15 minutos merece entrar nessa soberba galeria.
A câmara segue uma pessoa que não tem nada a ver com a história, até pegar um personagem, segue aquele, abandona-o, vai para outro que caminha, vai para outro, anda pelas ruas de Oxford, entra numa livraria, sai da livraria, sempre sem corte algum, a mesma tomada, a mesma cena, sem corte algum, e vai indo, e vai indo, e vai indo, e mostra Martin, e mostra Seldom, e a câmara entra na casa da sra. Eagleton no exato momento em que Martin e Seldom entram também, cada um vindo de um lado, e a música sobe de volume e a câmara finalmente pára no rosto de uma sra. Eagleton assassinada.
As Ilhas Inglesas, a Espanha, o melhor cinema do mundo hoje
Faz vários anos que penso que o melhor cinema do mundo, nos últimos muitos anos, é o feito nas Ilhas Britânicas. Evidentemente que isso não é uma verdade. É apenas a minha opinião. Existem no mundo alguns bons dois ou três bilhões de pessoas que podem ter opinião diferente da minha.
Se eu fizesse uma afirmação menos polêmica – digamos: Ingrid Bergman é uma das mulheres mais bonitas que já apareceram numa tela de cinema –, ainda assim não seria uma verdade. Como bem resume o professor Seldom, não existe verdade absoluta fora da matemática – embora 2 mais 2 possam ser cinco na belíssima canção de Caetano feita quando ele amargava o exílio em London London, ou 1 mais 1 possa resultar em 200 mil, como no caso de algumas parcerias, como Tom e Vinicius, Lennon e McCartney, goiabada e queijo, Scorsese e De Niro, Brecht e Weill, George e Ira Gershwin.
O texto está ficando papo-cabeça, mas o que eu pretendia dizer – embora não saiba como demonstrar a equação – é que o cinema espanhol tem sido, nas duas últimas décadas, fascinantemente, genialmente inventivo, criativo, inteligente, surpreendente.
Este filme que solta faíscas brilhantes de inteligência é, para mim, a prova de que, na verdade dos fatos, ingleses e espanhóis, gente de duas nações historicamente tão rivais, são os que fazem hoje o melhor cinema que existe. Mas, é claro, não existe verdade que valha para todos.
Enigmas de um Crime/The Oxford Murders
De Álex de la Iglesia, Espanha-Inglaterra-França, 2007
Com Elijah Wood (Martin), John Hurt (Arthur Seldom), Leonor Watling (Lorna), Julie Cox (Beth), Jim Carter (inspetor Petersen), Alex Cox (Kalman), Burn Gorman (Yuri Podorov), Dominique Pinon (Frank), Anna Massey (Mrs. Eagleton)
Roteiro Álex de la Iglesia e Jorge Guerricaechevarría
Baseado no romance Los Crimenes de Oxford, de Guillermo Martinez
Fotografia Kiko de la Rica
Música Roque Baños
Produção La Fabrique de Films, Telecinco Cinema, Tornasol Films, Eurimages. DVD Imagem Filmes.
Cor, 108 min
***1/2
Este comentário deixou-me mesmo impressionado!
Vou alugar logo que possa.
Um bom filme, Sergio. Mas o problema é um só: o estudante deveria ser um sedutor nato, disputado pelas mulheres, e um espião de primeira, características que não combinam com Elijah Wood.
Esse é fantástico, um dos melhores que já vi.
Está muito bom.
Gostei de tudo, em especial do tal plano-sequência, que acaba com a câmara dentro da casa, um espanto!
A história é boa, um tanto à moda antiga, a dos romances policiais.
A Leonor Watling lembro-me de a ver no “Fala com Ela” de Pedro Almodovar, um bom filme.
O peito dela parece que cresceu entretanto, ou haverá por ali algum silicone?
Esqueci-me de dizer que no filme aparece o Caetano Veloso a cantar um canção espanhola antiga e muito conhecida “Cucurrucucú Paloma”, numa versão fantástica.
Espero que este filme tenha chegado ao Brasil, ainda não vi por aqui nenhuma referência ao Pedro Almodovar.
Realmente, o filme é brilhante! Sobre o cinema espanhol, queria ressaltar um filme que eu vi recentemente que é “A Pele que Habito” que é incrível, super recomendo!
Uau. Mais um daqueles textos que comentando provocam a vontade de assistir o filme. Inglaterra, Oxford, ambiente acadêmico (um aparte: alguns dos melhores romances das últimas décadas passam-se nesse ambiente), John Hurt… realmente, não é pouca coisa.
Obs.: quando eu li Wittgenstein, lá pelos anos de 1800 e lá vai fumaça, não ‘peguei’ tudo. mas o pouco que peguei impressionou-me.
Experimentei rever o filme saltando todas as cenas com a Leonor Watling que passa o tempo todo a mostrar as suas carnes e verifiquei que ela realmente não faz falta nenhuma, está lá só para exibir as curvas.
Grande filme, é cinema de verdade.