Anotação em 2011: Quando vi pela primeira vez, este filme de Ivan Reitman, feito em 1993, fiz uma anotação sumária, junto com 3 estrelas: “Fascinantemente à la Capra. Delicioso, pra frente”. Ao revê-lo agora, num fim de madrugada, pensei num lead assim: Um filme mais ingênuo que a mais naïf das pinturas naïf.
Mudou o mundo, mudei eu – ou apenas foi o fato de ter revisto agora num fim de madrugada? Coisa de momento – e a gente sabe que isso importa mesmo na avaliação de um filme, uma música, qualquer coisa.
Muito provavelmente a alternativa certa, como nos vestibulares de antigamente, é a e), todas as alternativas anteriores.
Lembrando: um fictício presidente americano, Bill Mitchell, sujeito ruim, como normalmente se entende que são todos os políticos, tem um derrame durante uma trepada com uma de suas muitas amantes ocasionais. Para evitar um gigantesco escândalo, dois de seus assessores diretos, Bob Alexander (Frank Langella), o correspondente ao nosso ministro-chefe da Casa Civil, e o chefe da assessoria de imprensa, Kevin Dunn (Alan Reed), decidem substituir o presidente por um sósia dele, um sujeito inteiramente comum, homem do povo – o papel de Kevin Kline, esse excelente ator -, enquanto escondem o presidente de verdade, mantido vivo artificialmente, num porão da Casa Branca.
O falso presidente, o presidente fajuto, um títere dos dois velhacos assessores, vai, com suas aparições, em que parece humano, sensível, gente como a gente, conquistando as simpatias de todos – dos grandes comentaristas de política às pessoas comuns, os eleitores.
Na TV, os comentaristas se perguntam o que teria acontecido para que o presidente mudassse tanto. Antes um sujeito de maus bofes, mal-humorado, agora transpira alegria, energia, sorrisos; num jogo de beisebol transmitido ao vivo para todo o país, por exemplo, em que é convidado para dar o arremesso inicial, consegue enganar o catcher, o jogador incumbido de receber a bola. O estádio vem abaixo.
O falso presidente se apaixona pelo mulherão do presidente verdadeiro
E tem a primeira-dama, Ellen, que vem na pele, no corpo alto que não acaba nunca e no rosto forte e lindo de Sigourney Weaver, mulher que extermina alien gosmento num piscar de olhos. Ellen mal via seu marido, Bill, garanhão safado, notório pulador de cerca. Odeia, despreza o safado. Mantém o casamento só nas aparências externas, em respeito ao cargo do cara. Lá pelas tantas, é convencida pelos assessores do presidente a fazer uma aparição na Casa Branca ao lado dele, ou seja, ao lado de Dave, o falso presidente. Na intimidade, dirige-lhe algumas palavras ásperas – em público, sorri.
Dave, o falso presidente, por sua vez, faz o que qualquer homem normal faria: baba, cai de quatro diante daquele mulherão, aquela deusa. Apaixona-se, coitado, pela primeira-dama.
Mais adiante, novo compromisso externo em que presidente e primeira-dama devem aparecer juntos. Visitam um centro social para menores carentes – é um protótipo de lugar que, segundo projeto em tramitação, e que tem o apoio entusiástico da bela Ellen, se espalharia pelo país, mediante investimento de alguns milhões de dólares. Na visita, o falso presidente mostra-se uma pessoa sensível, de fato preocupado com as crianças ali atendidas.
Mas o tal projeto de espalhar centros sociais país afora é vetado pelos assessores malvados, que na prática são os que tomam todas as decisões.
Diante da notícia do veto, Ellen confronta o falso marido, dá-lhe uma dura.
E então Dave, o sósia do presidente, o sujeito comum, normal, legalzinho, que era pra ser apenas um fantoche dos assessores malvados, resolve tomar para si a tarefa de fazer cortes em outros itens do orçamento nacional, para poder aprovar o projeto social caro à primeira-dama, e que beneficiaria milhões de pessoas desamparadas país afora.
O cineasta que destilou o veneno do otimismo nos anos negros da Depressão
Então: um filme fascinantemente à la Capra, delicioso, pra frente? Ou um filme mais ingênuo que a mais naïf das pinturas naïf?
Frank Capra (1897-1991), um dos cineastas mais fascinantes da História, um humanista renitente, persistente, incansável, destilou, durante os anos negros da Grande Depressão, o veneno do otimismo e da solidariedade para centenas de milhares de pessoas desencorajadas, sem emprego, sem comida, sem teto. Num milagre muito maior do que seria capaz o anjo Clarence de A Felicidade Não Se Compra/It’s a Wonderful Life, os filmes de Capra, ao distribuir esperança em um país assolado pela mais grave crise econômica que já houve no mundo, renderam tanto dinheiro que transformaram a Columbia de um pequeno estúdio em um dos maiores de Hollywood.
No evangelho segundo Frank Capra, estar desencorajado, desanimado, desesperançado, é pior do que estar doente; precisar da ajuda dos outros é um dom, uma dádiva. É uma visão de mundo de um idealismo absoluto, uma crença em princípios básicos, uma fé profunda na bondade do homem comum e na sua capacidade de suplantar os problemas e enfrentar as instituições corrompidas. De acordo com Capra, a felicidade destrói as barreiras entre as pessoas de classes antagônicas. Um idealista pode vencer as instituições corruptas. A crença tranqüila nos valores corretos consegue transformar cínicos em believers. Mesmo quem aderiu ao mal é capaz de se arrepender.
“Por que as coisas não são simples assim?”
Tá, mas e aí? Dave é uma oração ao Evangelho segundo Capra, uma gostosa brincadeira com aqueles sólidos princípios de crença no homem comum – ou uma grande bobagem, ingênua, tola?
Muito provavelmente, acho eu, este filme aqui é as duas coisas ao mesmo tempo.
Leonard Maltin, o autor do guia de filmes mais vendido no mundo, deu 3 estrelas em 4: “Presidente dos Estados Unidos, incapacitado por um derrame, é substituído por sósia (um homem comum) Kline, que consegue conquistar a imprensa, o público e até a afastada esposa (Weaver) nesta divertida comédia política. A premissa forçada se torna crível pelo ótimo elenco e pelas participações especiais de celebridades, repórteres de verdade e senadores de fato!”
A opinião de Roger Ebert, um crítico que ama os filmes que vê: “O subtexto de Dave se parece com as mensagens de muitos dos filmes de Capra: se as pessoas no poder se comportassem de maneira sensível e com boa vontade, muitos de nossos problemas seriam resolvidos. Naturalmente, não é tão simples. Mas, ao assistir a Dave, houve momentos em que me peguei me perguntando – por que não é?”
O garoto Jason Reitman, hoje bom diretor, faz pequeno papel
Vejo no IMDb diversas informações saborosas sobre o filme. Aí vão elas, com algumas pitacadas minhas:
. Para os papéis (brevíssimos, de apenas umas poucas tomadas) da mulher e do filho do vice-presidente Nance (interpretado pelo grande Ben Kingsley), o diretor Ivan Reitman fez economia: botou sua mulher, Genevieve Robert, e seu filho, Jason Reitman, então com 16 anos. O garoto Jason Reitman já mostrou que seu talento é maior que o do pai, com três belos filmes – Obrigado por Fumar, Juno e Amor sem Escalas.
. Ivan Reitman pode ser menos talentoso que o filho, e está mais distante de Frank Capra que o Corinthians de um título na Libertadores, mas bobo não é: este aqui foi seu terceiro filme com Sigourney Weaver, depois dos dois Os Caça-Fantasmas/Ghostbusters. E naquela época, anos 80, início dos 90, fazia belos gols, como o delicioso Perigosamente Juntos/Legal Eagles.
. Consta que o papel de Dave foi recusado por Warren Beatty e Kevin Costner. Beatty, sujeito de idéias políticas firmes, da ala mais à esquerda do Partido Democrata, pode ter achado a história naïf demais. Costner perdeu uma boa oportunidade – e boas oportunidades foram coisas que faltaram bastante a ele, nos anos 90 e na primeira década de 2000. E o filme não saiu perdendo com a escolha de Kevin Kline – é um grande ator, com um bom timing cômico. Está ótimo, aqui. A forma com que demonstra paixão à primeira vista ao ver a mulher que teoricamente é sua esposa traída é uma delícia.
. O presidente americano na época do lançamento do filme era Bill Clinton. Consta que Clinton, tão safado quanto o presidente fictício, gostou muito do filme.
. O nome completo do presidente fictício do filme é William Harrison Mitchell; não é mera coincidência, e sim uma brincadeira do roteirista. William Henry Harrison foi eleito presidente dos Estados Unidos em 1840, o primeiro a morrer durante o mandato. E nome do vice é Nance – John Nance Garner foi vice de Franklin D. Roosevelt em dois de seus quatro mandatos.
. Pelo menos dois senadores de verdade aparecem no filme fazendo papel de si mesmos – Christopher Dodd e Tom Harkin. O compositor e cantor Paul Simon, gênio da raça, tem uma participação especial como senador Paul Simon.
. Os apresentadores de TV Larry King e Jay Leno são alguns dos nomes da imprensa americana a fazerem papel de si mesmos no filme. Arnold Schwarzenegger e Oliver Stone também têm participações especiais.
Capra e o anjo Clarence devem ter se divertido
Então, para encerrar: é um filminho bem naïf – e ao mesmo tempo gostosamente capriano. Sentado ao lado do anjo Clarence em alguma nuvem, Frank Capra deve ter se divertido com ele.
E, como diz Roger Ebert, por que as coisas na verdade não são simples como poderiam, ou deveriam ser?
Dave – Presidente por um Dia/Dave
De Ivan Reitman, EUA, 1993
Com Kevin Kline (Dave Kovic / Bill Mitchell), Sigourney Weaver (Ellen Mitchell), Frank Langella (Bob Alexander), Kevin Dunn (Alan Reed), Ving Rhames (Duane Stevenson), Ben Kingsley (vice-presidente Nance), Charles Grodin (Murray Blum), Faith Prince (Alice), Laura Linney (Randi)
Roteiro Gary Ross
Fotografia Adam Greenberg
Música James Newton Howard
Produção Warner Bros., Northern Lights Entertainment
Donner/Shuler-Donner Productions
Cor, 110 min
R, **1/2
Eu sou da turma do Capra. Com uma variação delicada, tenho um fé profunda não na bondade do homem comum, mas na possibilidade de. Enfim, isto deve me predispor a sempre ver este filme com tolerância e ternura. Gosto. Gosto do Kevin Kline, gosto de Sigourney Weaver (e quem não gosta?)e gosto de poder me perguntar: e se?
Que beleza seu texto, Luciana.
Obrigado!
Sérgio
O comentário de Luciana está muito apropriado.
Eu confesso que gosto deste filme e que já o vi mais do que uma vez.
Só de ver a Sigourney Weaver até me babo!