Foi uma absoluta delícia rever agora, mais de 20 anos depois, A Marvada Carne, de André Klotzel. O filme é uma pequena maravilha, uma pepita preciosa. Não envelheceu nadica. Permanece hoje com o mesmo frescor, aquela inocência, aquela aparente ingenuidade caipira.
É fantástico como aquela garotada saída da ECA-USP, urbanóides legítimos da maior metrópole brasileira, conseguiu penetrar no universo caipira – um caipira meio atemporal, parado no tempo. Igualzinho ao observado por Monteiro Lobato, em seu livro Urupês, de 1918, e levado ao cinema em mais de uma dezena de filmes nos anos 50 e 60 por Mazzaropi.
A Marvada Carne fala de pobreza – mas é um filme alegre, de bem com a vida. Livre, leve, solto.
Talvez seja um reflexo da época em que foi feito – o filme é de 1985. As diretas-já haviam sido derrotadas, mas o país ainda vivia a alegria provocada pelas multidões de novo nas ruas; o regime militar estrebuchava, e no ano seguinte assumiria o primeiro presidente civil após duas décadas de ditadura.
O bom humor começa já no título – A Marvada Carne, vindo logo após a época de ouro das pornochanchadas, poderia indicar os pecados da carne, os prazeres do sexo. E Marvada com r é um achado, o símbolo perfeito da caipirice – só no interior de São Paulo, pegando um pouco o Sul de Minas, se fala marvada, e se usa aquele r típico que tem mais a ver com o r do inglês que o do português – porta, em caipirês, se pronuncia bem próximo de door.
Quim, o protagonista (interpretado com absoluto brilho por Adilson Barros) rapidamente explica para o espectador que a marvada carne não se refere a sexo, mas a carne mesmo, de vaca, de boi. Quim, tadinho, nunca tinha comido um único naco de carne na vida.
Caipira, como mocinho nos bangue-bangues, fala pouco, só o essencial
O filme abre com Quim acordando, no seu casebre miserável de adobe (ou seria pau-a-pique?). Enquanto vemos tomadas que mostram seu dia-a-dia entre galinhas e uma rocinha, sempre acompanhado de seu fiel cachorro vira-lata, ouvimos a voz em off, falando muito pausadamente, devagar, com um perfeito ritmo e sotaque caipiras:
– “Parece inté que tô vendo, sô. Eu vivendo a minha vida lá nos ermo. Era eu ali sozinho, sozinho, sozinho e Deus. Naqueles tempo, eu tava fora de si de vontade de uma coisa: comer carne de gado. Carne de boi, memo.”
Uma pausa. Vemos novas tomadas do dia-a-dia de Quim lá nos ermos dele, mas ele faz uma pausa. Caipira, como mocinho nos bangue-bangues, fala pouco, muito pouco, só o essencial.
Depois de algum tempo, ele prossegue:
– “Era aquela mesmice de fazer dó. Farinha, feijão com arroz. Arroz, farinha, feijão. Era isso, a sol por sol, todo santo dia que Deus dava. E foi por esse tempo que arresorvi ir embora daqueles ermo. Na batida certa de duas coisa. Uma muié que cuidasse de mim, e cumê carne de boi.”
Uma garotinha louca para casar e suas duras lutas com Santo Antônio
Logo depois dessas últimas palavras, começam os créditos iniciais, ao som da bela viola de Passoca na sua canção “Sonora Garoa”. (A canção voltará nos créditos finais, cantada com a elegância, a voz perfeita de Eliete Negreiros.) Os créditos rolam enquanto Quim, com seu cachorro e carregando algumas galinhas, anda pelo mato, de mudança para algum outro lugar na esperança de encontrar uma muié e carne de boi.
No lugar onde ele vai acabar parando, onde há uns três ou quatro casebres, um deles de uma conhecida de Quim, Nhá Tomasa (Lucélia Maquiavelli), vive uma garotinha de uns 17 anos que tudo que quer na vida é encontrar um marido. A garotinha, Carula, que vem na pele de Fernandinha Torres, trava longos diálogos – bem, monólogos, vai – com uma estatuinha de Santo Antônio, o santo casamenteiro. Ela reza, pede a ajuda do santo – mas, como o marido está demorando a chegar, Carula discute com a estatuinha, briga com ela, quase a afoga no riacho em que lava roupa. Mais tarde, num acesso de fúria, vai jogar o santo pela janela – e o santo, é claro, cai bem na cabeça de Quim.
A Marvada Carne acerta em todos os pontos em que tantos outros tropeçam
A frase pode parecer um truísmo, e é, mas vou dizê-la: os diálogos, as falas são elemento fundamental dos filmes. E escrever diálogos e falas não é coisa fácil. Muito ao contrário: é uma arte, uma arte extremamente difícil de se atingir. Os franceses, por exemplo, dão imensa importância à autoria dos diálogos; a maior parte dos filmes franceses diz expressamente, nos créditos, quem é o autor dos diálogos.
Muitos filmes brasileiros dos últimos anos (e também dos mais antigos, é verdade) pecam por ter diálogos mal construídos, falsos, artificiais. É um dos pontos fracos, me parece, de muitos filmes brasileiros – assim como o roteiro, o som e, em especial, a direção de atores.
A Marvada Carne tem diálogos bem construídos. O roteiro é inteligente, corretíssimo. O som é perfeito – ao contrário do que acontece em muitas outras produções nacionais, entende-se perfeitamente cada fonema pronunciado pelos atores.
E os atores estão ótimos. Volto ao tema atores em seguida, mas gostaria de registrar que nos créditos iniciais de A Marvada Carne está dito que o roteiro é do André Klotzel e C.A. Sofredini – C.A. sendo de Carlos Alberto. Nos créditos finais, está especificado que o argumento é de Klotzel, com a colaboração de José Roberto Eliezer, e os diálogos são de Carlos Alberto Sofredini – sujeito de talento.
(Os créditos finais também informam, bem humoradamente, que do elenco participam a cabra Bé e o cachorro Figueiroa.)
E o trabalho de todos eles é muito bom.
O curupíra, o próprio Dito Cujo – e uma estatuinha que muda de cara
O argumento, a trama, a história bolada por Klotzel com Eliezer é simples, pequenina, delicada, saborosa. O roteiro de Klotzel e Sofredini é um primor. Tem algo do minimalismo dos primeiros filmes de Jim Jarmusch – Estranhos no Paraíso, de 1984, Daunbailó/Down by Law, de 1986 –, com algumas pitadas, na dose certa, de algo como o realismo mágico da literatura latino-americana dos anos 1970, um realismo mágico que inclui a presença de algumas lendas fundamentais do folclore brasileiro, como o curupira e, bem mais tarde, o próprio Dito Cujo, o príncipe das trevas, o rabudo com cheiro de enxofre, aquele cujo nome mesmo não se deve pronunciar, porque atrai maldição.
A Marvada Carne, assim, tem algo das Histórias de Tia Anastácia, o livro de Monteiro Lobato em que a boa senhora conta para os habitantes do Sítio do Picapau Amarelo as lendas básicas do folclore brasileiro.
E a sacada de fazer a estátua de Santo Antônio mudar de cara, como reação à falação e aos modos de Carula, é uma maravilha.
A carioquíssima Fernandinha e o paulista de Sorocaba Adilson, maravilhosos
Fernandinha Torres está uma absoluta gracinha, uma total delícia no papel de Carula.
Fernandinha é uma daquelas pessoas abençoadas com doses imensas de talento e sorte. Uma grave e injusta concentração de talento e sorte – porque, concentradas dessa maneira, as mercadorias ficam faltando para distribuição entre outras milhares de pessoas. Estava com 22 aninhos quando fez A Marvada Carne, e já era quase uma veterana, depois de Inocência, beleza de filme de Walter Lima Jr. baseado no romance do Visconde de Taunay, Sonho Sem Fim, Com Licença, Eu Vou à Luta e Eu Sei Que Vou de Amar. Por este último, de Arnaldo Jabor, feito em 1986, havia ganho nada menos que a Palma de Melhor Atriz em Cannes (empatada com a veterana Barbara Sukowa por Rosa Luxemburgo, de Margareth von Trotta).
Carioquíssima, Fernandinha fala caipirês lindamente no filme; só uma ou outra vez deixa escapar um s chiado de carioca, mas isso é um detalhe tão pequeno, e ela está tão lindinha, e charmosa, e alegre (e mais cheinha de corpo do que viria a ficar mais tarde, quase anoréxica), que na verdade nem deixou escapar s chiado coisa nenhuma.
Adilson Barros é um achado. Ele consegue fazer a mais perfeita cara sonsa, matuta, caipira que poderia existir. Anda que nem caipira. Demonstra a forma com que raciocina – e raciocina como caipira. Uma beleza de atuação.
Ao contrário de Fernandinha, Adilson Barros não teve que se esforçar muito para falar caipirês. É paulista de Sorocaba, e em Sorocaba se fala o mais perfeito r caipira, capaz de fazer inveja até a Renato Teixeira. Formado pela EAD, Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo, bem perto da ECA, a Escola de Comunicações e Artes onde estudaram o diretor André Klotzel e o montador e também diretor Alain Fresnot, Adilson ganhou o Mambembe por sua interpretação na peça Feliz Ano Velho, de Rubem Paiva. Foi professor de artes cênicas na Unicamp; no cinema, trabalhou em Flor do Desejo, Kuarup, Capitalismo Selvagem. Morreu cedo demais, aos 50 anos, em 1997.
As pessoas certas na hora certa no filme certo
O diretor Klotzel teve ainda a sorte de poder contar com dois atores veteraníssimos, experientes, nos papéis dos pais de Carula, Nhô Totó e Nhá Policena – Dionísio Azevedo e Geny Prado (os dois na foto).
A presença de Geny Prado é uma maravilha, uma beleza de homenagem dos garotos da ECA e da EAD a essa atriz de quase 60 filmes na carreira, vários deles ao lado de Mazzaropi, fazendo o papel da mulher do caipirão: Jeca Tatu, Tristeza do Jeca, Um Caipira em Bariloche, Jeca Contra o Capeta, O Jeca e a Freira, O Jeca e a Égua Milagrosa.
Está, portanto, absolutamente à vontade como a mulher do caipirão aqui. É uma bela presença no filme – e foi de fato uma inteligente homenagem à veterana atriz. Foi o último filme que ela fez; morreria em 1998, aos 79 anos.
Mas ainda tem mais. A Marvada Carne se dá ao luxo de ter Tonico e Tinoco, uma das mais importantes duplas caipiras da História (pelamordedeus, não confundir com sertanejo – nada, nada a ver), cantando, como se fosse uma dupla caipira desconhecida qualquer, numa festa, lá pelo meio da narrativa. E tem, quase ao final, a presença deliciosa de Regina Casé.
Uma fascinante combinação de talentos e sorte – as pessoas certas na hora certo no filme certo.
Da Wizard, ali na Vila, para o worldão véio sem porteira
Levou 11 prêmios no Festival de Gramado de 1985. Ganhou melhor filme do júri popular, melhor filme do júri oficial, melhor d1iretor, melhor atriz para Fernanda Torres, melhor fotografia para Pedro Farkas, melhor montagem para Alain Fresnot, prêmio especial do júri para Dionísio Azevedo… Não sei se terá sobrado prêmio para algum outro filme.
Foi convidado oficial para uma das mostras não competitivas de Cannes e para os festivais de Montreal, Mill Valley (nos EUA), Los Angeles, Havana, México, Tyneside (Inglaterra), Aurilac (França), Manheim, Damasco, San Remo, Hiderarabad, Bérgamo, Moscou, Figueira da Foz, Valladolid e Bruxelas.
Produção da Tatu Filmes, que na época tinha sede na Vila Madalena, na Wizard (pronuncia-se visárdi, por favor, e não uízard) entre Mourato e Fradique, bem na frente do Empanadas Bar (este está lá ate hoje), A Marvada Carne foi lançado em DVD por um dos grandes estúdios americanos, uma das majors, a Universal. Está disponível, como se diz, nas boas lojas do ramo. O último a ver ou rever é mulher do padre.
Anotação em novembro de 2011
A Marvada Carne
De André Klotzel, Brasil, 1985
Com Adilson Barros (Quim), Fernanda Torres (Carula), Dionísio Azevedo (Nhô Totó), Geny Prado (Nhá Policena), Lucélia Maquiavelli (Nhá Tomasa)
E, em participações especiais, Regina Casé (mulher na encruzilhada), Tonico e Tinoco (a dupla caipira), Nelson Triunfo (o curupira)
Argumento André Klotzel, com a colaboração de José Roberto Eliezer
Roteiro André Klotzel e Carlos Alberto Sofredini
Diálogos Carlos Alberto Sofredini
Fotografia e câmara Pedro Farkas
Música Rogério Duprat
Canção tema Passoca
Montagem Alain Fresnot
Direção de som Walter Rogério
Produção Tatu Filmes. DVD Universal.
Cor, 77 min
R, ***1/2
A marvada carne é um filme imperdível para quem gosta de cinema nacional, já que tem a’cara’ do Brasil. Eu adoro cinema nacional.
Acabei de assistir agora, via on-line, caso contrário não conseguiría pois nas locadoras daqui e das redondezas, não se encontra filmes dessa data.Mas,encontra-se muito LIXO atual.
Que filme lindo ! Como dizes, Sergio, alegre,
livre,leve,solto.
Aquela cena do Curupira, muito hilária. E, uma das coisas que mais gostei e também muito divertida, são as cenas onde a Carula conversa e briga com Santo Antônio, até o climax de jogá-lo pela janela e acertar a cabeça do Quim. O Adilson Barros eu não conhecia e, como disseste, uma beleza de atuação. A Fernanda além do talento próprio,
teve a quem puxar, teve “bêrço”.
A mudança, quando ele deixa o interior e vem prá cidade, deixa o matuto assustado. O olhar dele quando no mercado, vê o tão sonhado e desejado pedaço de carne de gado, de boi,na balança diz tudo que se passa nele.
Ía esquecendo, concordo contigo, muito bem sacado as mudanças na cara de Sto.Antonio, nas conversas da Carula com ele.
Este é o quarto ÓTIMO filme Brasileiro que vejo em sequência. Os outros foram, TIETA, É PROIBIDO FUMAR, e A PARTILHA.
Voltei só para fazer uma correção. Este não foi o quarto mas, sim o quinto ótimo filme Brasileiro que assisti em sequência.
O quarto filme foi “CAIXA DOIS”, apesar da presença dos atores,Daniel Dantas,Cassio Gabus,Giovanna Antonelli e Thiago Fragoso,dos quais eu não gosto. Mas,tem a presença dos fabulosos,Fúlvio Stefanini e Zezé Polessa.
Muito bom ! Fernanda Torres está belíssima interpretando a personagem Carula. Apaixonei !
No mais; perfeito .