3.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Este é um belo filme. Duríssimo, pesado, difícil, extremamente amargo, Valsa com Bashir é também mais uma prova, na minha opinião, de que o cinema, as artes, as pessoas são muito melhores que os Estados que as governam.
O tema principal do filme, para mim, é o sentimento de culpa – a culpa por um gigantesco crime cometido diante dos olhos dos protagonistas. O sentimento de culpa, a procura por explicações, a procura da verdade, a tentativa de se compreender exatamente qual é a parcela da responsabilidade de cada um ao perceber que houve uma atrocidade e não se fez nada para tentar impedi-la.
A atrocidade que está por trás da narrativa, que é a moldura, o pano de fundo de toda a narrativa é o massacre de Sabra e Chatila, ocorrido entre os dias 16 e 18 de setembro de 1982, no Líbano, em que foram brutalmente assassinadas centenas de civis – homens, mulheres, crianças – palestinos e libaneses. O número de mortos não foi exatamente determinado até hoje; as estimativas variam entre 300 e 3.500.
Me fio nas informações da Wikipedia sobre o massacre: os assassinos eram membros da milícia cristã libanesa. O massacre nos campos de refugiados de Sabra e Chatila ocorreu pouco depois do assassinato do líder falangista e presidente eleito Bashir Gemayel. As Forças de Defesa de Israel, que cercaram os campos de refugiados palestinos depois de invadir o Líbano, permitiram que as milícias falangistas cristãs entrassem em Sabra e Chatila. Os falangistas eram comandados por Elie Hobeika, que mais tarde foi membro do Parlamento do Líbano e, nos anos 1990, foi ministro do governo libanês. O comandante das forças invasores de Israel era o tenente-general Rafael Eitan, e o ministro de Defesa, Ariel Sharon.
Sharon é citado diretamente por um dos personagens do filme: informado por telefone a respeito do massacre, tarde da noite, Sharon agradece, desliga o telefone, e, segundo nos conta o protagonista, em seguida volta a dormir. O personagem não usa a expressão “o sono dos justos”, porque seria uma ironia – e o filme não é irônico. É duro, tenso, denso, trágico, mas não faz brincadeira com coisa séria.
Continua a Wikipedia: “O debate continua até hoje sobre se os militares israelenses foram ou não indiretamente responsáveis pelo massacre. Em 1982, uma comissão independente chefiada por Sean MacBride conclui que as autoridades israelenses estavam diretamente ou indiretamente envolvidas nos massacres. O governo israelense criou a Comissão Kahan para investigar, e no início de 1983 essa comissão considerou Israel indiretamente responsável pelo evento. A comissão exigiu a renúncia de Sharon do Ministério da Defesa, o que ele fez, relutantemente.”
Uma narrativa em espiral, rumo ao passado
Quando o filme começa, vemos – enquanto são apresentados os créditos iniciais – uma fantástica, violentamente bela seqüência em que cães violentos vão se juntando num grupo cada vez maior, percorrendo as ruas de uma cidade, com uma ferocidade galopante, até pararem diante de um prédio, onde mora o primeiro personagem que ficamos conhecendo, Boaz Rein-Buskita.
– “Eles ficam lá, latindo” – diz Boaz, enquanto a câmara mostra a matilha feroz. – “26 cães. Vejo suas expressões malvadas. Eles vieram para matar.”
Boaz está contando, num bar, para um velho amigo, um cineasta (na ilustração acima), o pesadelo que tem tido todos os dias, nos últimos dois anos e meio. Estamos em 2006, ficamos sabendo logo em seguida. Boaz e seu amigo cineasta estiveram juntos na invasão do Líbano, 23 anos antes; eram jovens soldados do exército israelense quando houve a invasão do Líbano, e os massacres de Sabra e Chatila. Boaz passou 20 anos sem pensar no que havia presenciado em 1982; de repente passou a ter o pesadelo com os cães.
O cineasta não compreende bem por que o velho companheiro o procurou para contar aquela história. Ele não pensa no que viu no Líbano, quando era bem jovem. Na verdade, não se lembra de nada o que aconteceu naquele tempo – exceto os dias em que tinha licença e podia voltar para Israel e reencontrar a namorada. Apagou da memória tudo aquilo. Mas, naquela mesma noite, após ouvir o relato do amigo Boaz, tem o que chama de seu primeiro flashback sobre o Líbano, sobre Beirute, sobre Sabra e Chatila. Bem no início da manhã seguinte, atormentado com aquilo, vai procurar um outro amigo, ele também ex-combatente durante a época da invasão do Líbano, Ori Sivan.
O cineasta é o protagonista central da história – e o que veremos a partir daí é sua busca desesperada para se lembrar do que afinal aconteceu lá atrás, 20 e tantos anos antes, quando era pouco mais que um garoto.
É um filme sobre culpa, remorso, responsabilidade, esquecimento, memória, como a memória trata os traumas. A narrativa é forte, intensa – não vai em linha reta, vai em espiral, rumo ao passado, rumo ao momento fundamental, o momento dos massacres. E, nisso, interessante, me ocorre agora que a narrativa desse Valsa com Bashir faz lembrar a de Katyn, do mestre Wajda, outro filme em cujo epicentro está uma chacina inominável.
Uma animação que é praticamente um documentário
E o que é mais impressionante é que as histórias contadas no filme são todas reais. Os personagens são reais – o cineasta protagonista é o próprio diretor Ari Folman, que quando jovem era soldado do exército israelense e participou da invasão do Líbano e estava muito próximo dos campos de Sabra e Chatila quando aconteceu o massacre.
Ari Folman entrevistou várias pessoas que, como ele, estiveram no Líbano na ocasião, como soldados ou oficiais. O roteiro que ele escreveu se baseou no que foi contado durante as entrevistas. O filme, portanto, é quase um documentário – embora com uma narrativa que parece ficção.
Não sei dizer por que o diretor Ari Folman decidiu filmar essa saga de horror e culpa como uma animação. Nem interessa tanto assim. O que importa é que ele fez um filme fortíssimo, de grande beleza e profundidade.
O visual do filme é de fato belo – às vezes beira o surreal, às vezes se aproxima de um naturalismo, uma recriação cuidadosa da realidade, às vezes se aproxima do visual de histórias em quadrinhos. É muito impressionante que os movimentos de câmara são os movimentos que haveria num filme real, com atores – há travellings, planos-seqüência, plongées, contreplongées, uma câmara brilhante.
Há belos achados que só seriam possíveis numa animação, como, por exemplo, a linda sequência em que o jovem soldado Ari está de volta a sua cidade em Israel, durante uma folga, e ele anda muito lentamente, enquanto todos à sua volta, vivendo suas vidas normais, caminham muito depressa, como se estivessem num filme rodando em velocidade acelerada.
Ao final, o filme nos deixa com aquela sensação nítida de que a arte está adiante e acima dos regimes, do governo. Enquanto Israel permanece imóvel na sua postura agressiva diante do mundo árabe que o rodeia, sem ceder um milímetro em busca de uma tentativa de paz – e muitas vezes, ao contrário, incentivando novos assentamentos em territórios palestinos –, o cinema que se faz no país questiona essa mesma postura incessantemente. Valsa com Bashir vem se somar a outros belíssimos filmes feitos por cineastas israelenses, como A Noiva Síria, Lemmon Tree, e mesmo a filmes mais fracos mas igualmente bem intencionados, como O Pequeno Traidor.
Valsa com Bashir recebeu 23 prêmios e 24 indicações. Foi indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro – e, na época, era considerado o mais cotado. O simples fato de ter conseguido a indicação para melhor filme estrangeiro já é histórico – se não me engano, foi a única vez que um filme de animação foi indicado para o prêmio. (Se eu estiver errado, que alguém me corrija, por favor.) Entre seus concorrentes estava o ótimo alemão O Grupo Baader-Meinhoff e o extraordinário japonês A Partida, que acabou levando o prêmio.
O filme israelense levou o Globo de Ouro como melhor filme estrangeiro; foi indicado nessa mesma categoria para o Bafta, o Oscar britânico, e para o César, o Oscar francês. Da Academia de Israel, levou seis dos sete prêmios para os quais foi indicado, inclusive os dois principais, de melhor filme e melhor diretor.
De fato, um belo filme.
Valsa com Bashir/Waltz with Bashir
De Ari Folman, Israel-França-Alemanha, 2008
Animação
Argumento e roteiro Ari Folman
Animação Bridgit Folman Film Gang
Música Max Richter
Produção Bridgit Folman Film Gang, Les Films d’Ici, Razor Film
Cor, 87 min
***1/2
ótimo. parabéns. O ser humano ainda vai prevalecer sobre o estar humano.