3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: O Passado Não Perdoa, feito em 1960 por John Huston, é um filme forte, poderoso, impressionante. É um western, e ao mesmo tempo é bem mais que um western, é um filme sobre relações familiares e sobre intolerância. É extremamente complexo; fala muita coisa nas entrelinhas, e aborda temas delicados e difíceis.
É também um tanto irregular, como a própria profícua, imensa filmografia do grande John Huston. Quando aceitou meu convite para escrever para este site sobre um filme de que gosta especialmente, Os Vivos e os Mortos/The Dead, de 1987, Sandro Vaia destacou essa irregularidade de cara: “John Huston fez grandes e pequenos filmes (de Tesouro de Sierra Madre a Cartas ao Kremlin), dirigiu grandes e pequenos atores (de Humphrey Bogart a Pelé).”
Tento explicar por que “um tanto irregular”. Embora seja um ótimo filme, extremamente bem realizado, com excelentes atuações de um grande elenco, e uma história poderosa, de grande impacto, tem, no entanto, pequenos defeitos. Algumas situações são inverossímeis, ou dão uma impressão de falsidade.
Tento explicar, em parte, por que “extremamente complexo”. Embora o ponto principal da trama esteja explicitado na sinopse da capa do DVD, e também nas resenhas de seis guias – três americanos, dois brasileiros e um francês – que consultei depois de rever o filme (tinha visto quando garoto, e na verdade me lembrava de pouquíssima coisa), o espectador só ficará sabendo do que se trata quando o filme se aproxima da metade de seus 125 minutos. Assim, apesar do que dizem os guias e a própria capa do DVD, acho que seria errado revelar a questão antes de avisar ao eventual leitor que aí vem um spoiler, um estraga-prazer, um entrega-segredo.
Na primeira metade, o dia-a-dia dos colonizadores
O que dá para dizer antes do aviso de spoiler é que, ao longo dos primeiros 40, 50 minutos de filmes, o filme mostra a vida de uma família de colonos no Texas, em meados do século XIX – os guias falam em 1850, embora o filme não precise data alguma. Já nas primeiras tomadas – e as tomadas são sempre excelentes, com bela fotografia e enquadramento sempre muito bem cuidado, aproveitando ao máximo o formato da tela Panavision, hoje widescreen –, em que Audrey Hepburn sai de sua casa, carregando um balde, e anda uma dezena de metros para pegar água no rio que passa ali, vemos em primeiro plano, no lado esquerdo da tela, uma cruz com o nome de William Zachary. O pai da família está morto, enterrado ali, diante da casa.
Só por esse início dá para perceber claramente que estamos diante de um filme de produção A. Não só pela beleza das tomadas, o enquadramento cuidadoso – a casa que vemos é cinza, suja, mal acabada, como de fato deveriam ser as casas dos colonos no Texas em 1850. Nada de casa linda, bem cuidada, colorida, imaculadamente limpa, falsa que nem nota de 3 reais como vemos em tantos westerns ou filmes que reconstituem fatos da Antiquidade de produção menos caprichada. É tudo sujo – como a Roma mostrada na série da BBC e HBO.
Aliás, a casa foi construída junto a um barranco, no lugar em que duas linhas que formam um L se encontram, de tal forma que de vez em quando acontece de uma vaca subir pelo lado da casa no barranco e depois andar sobre o teto; na abertura do filme, quando Rachel – o personagem de Audrey Hepburn – sai de casa com o balde na mão, há uma vaca lá em cima, comendo uma grama que nasce sobre o teto da casa, e Rachel brinca com ela, na primeira frase do filme: “Xô! Fora já! Você não tem educação – fica aí comendo o teto da casa?” Esse detalhe do teto se mostrará importante bem para o final do filme.
A viúva de William Zachary, a matriarca da família, Mattilda, é uma senhora idosa, de rosto sofrido, mas que, mesmo naquele fim de mundo, “aquela terra esquecida por Deus”, se veste com elegância; é obviamente uma mulher que foi criada numa cidade, teve educação – veremos mais tarde que ela sabe tocar piano, ama Mozart. Mattilda é interpretada por Lilian Gish, uma atriz que é uma verdadeira lenda, uma das primeiras grandes atrizes do cinema americano. Nascida em 1893, teve vida e carreiras longas: começou no cinema em 1912, e fez seu último filme, Baleias de Agosto, em 1987; morreu em 1993, faltando alguns meses para completar cem anos de idade.
A moça interpretada por uma Audrey Hepburn belíssima, de cabelos muito longos, Rachel, é tratada como se fosse uma Zachary pelo sangue, a única filha da família, sua jóia mais preciosa, adorada por todos. Foi adotada quando bebê. Logo conheceremos seus três irmãos: Ben (Burt Lancaster), o mais velho, o que manda em todos, toma todas as decisões; Cash (Audie Murphy), inquieto, de temperamento irritadiço, que tem um ódio profundo de índios (vemos um grupo grande de índios, nas cenas durante os letreiros iniciais); e o caçula, Andy (Doug McClure), adolescente, garotão inexperiente, que não sabe nada da vida e do mundo, cujo maior sonho é ir até Wichita, Kansas, beber cerveja e comer uma profissional.
É de Wichita, aparentemente o centro urbano maior e mais próximo da fazenda dos Zachary, que Ben está voltando no início da ação; tinha ido levar gado para vender lá, e na volta traz de presente para a mãe um piano de cauda.
Então é isso: John Huston leva uns 40, 50 minutos, nos mostrando a vida dos Zachary, e dos seus vizinhos (a 16 quilômetros de distância uma casa da outra) e sócios na criação e venda de gado, os Rawlins. Zeb Rawlins (Charles Brickford), o patriarca, é um cristão fanático, sempre a ler a Bíblia. Entre seus diversos filhos há Charlie (Albert Salmi), garotão desajeitado, que vai pedir a Ben licença para fazer a corte a Rachel, e Georgia (Kipp Hamilton), uma moça doidinha para, pela ordem, dar e casar com Cash Zachary – ou com qualquer outro.
Os guias de filmes entregam logo o que virá depois. Um absurdo.
Um ótimo diretor de atores, e um grande compositor
Antes de chegar ao spoiler, quero registrar uma sensação que tive mais uma vez ao ver o filme: como John Huston é um competente diretor de atores. OK, isso é algo que se sabe; até porque ele foi o único diretor de cinema que dirigiu o pai, o grande Walter, e a filha, Anjelica, em papéis que mereceram Oscar (Walter, por O Tesouro da Sierra Madre, de 1949; Anjelica, por A Honra do Poderoso Prizzi, de 1985).
Mas esse talento do diretor fica muito claro quando observamos o ótimo desempenho de Burt Lancaster. Burt Lancaster (1913-1994), grandalhão, forte, atlético (foi acrobata de circo antes de virar ator de cinema), rosto bonito, dentões de anúncio de pasta dental, dono de sua própria companhia produtora, a Hecht-Hill-Lancaster, se deixassem, era bem chegado a um exagero, um over-acting de doer. Em outro western, feito seis anos antes deste aqui, Vera Cruz, por exemplo, ele faz mais caretas que Jim Carey ou Toshiro Mifune. No mesmo ano deste O Passado Não Perdoa, 1960, ele também exagerou no papel título de Elmer Gantry (aqui, Entre Deus e o Pecado) – mas aí deu tudo certo, porque o personagem de Elmer Gantry é mesmo um exagero só, tanto que ele levou o Oscar pelo papel.
Pois aqui Burt Lancaster atua na medida certa, sem exagero, sem over-acting. Uma maravilha. John Huston deve ter segurado firme nos arreios.
E, na longa seqüência em que Ben, seus irmãos, os filhos de seu sócio Zeb Rawlins e outros vaqueiros tentam adestrar cavalos, me peguei pensando que Huston estava treinando para seu filme seguinte, Os Desajustados/The Misfits, de 1961 – um grande filme, que se tornaria o último completado por seus três atores principais, Clark Gable, Montgmery Clift e Marilyn Monroe. Todos eles morreriam algum tempo depois do fim das filmagens.
Outro registro necessário: a trilha sonora do veterano Dimitri Tiomkin é da maior qualidade. O veterano ucraniano (1894-1979) que na juventude foi concertista trabalhou na trilha de mais de 120 filmes, e tornou-se o principal compositor para westerns dos anos 40 e 50: são dele as trilhas de Duelo ao Sol, Matar ou Morrer, Rio Vermelho, Onde Começa o Inferno, O Álamo, Sem Lei e Sem Alma. Seu trabalho aqui é magnífico, é um grande poema sinfônico.
Se você não viu o filme, não leia a partir de agora
Até uns 40 minutos de filme, o diretor John Huston já deu a entender ao espectador – mas sem nada óbvio, sem nada explícito, de forma alguma – que há entre Ben e Rachel bem mais que uma relação de dois irmãos que se amam. É uma atração forte, uma paixão, mas sempre subentendida, não exposta, não explicitada – e o que Huston mostra é uma coisa dúbia, complexa. Os dois sabem que não são irmãos de sangue – mas ao mesmo tempo foram criados como irmãos, desde que Rachel foi adotada, ainda bebê. Explicitar a paixão seria incesto ou não? A dúvida parece estar sempre enterrada em algum lugar da consciência de Ben. Até que, numa longa seqüência em que Ben está levando a irmã para a casa na garupa de seu cavalo, depois das seqüências em que eles estiveram domando cavalos bravos, ela bem abraçada a ele, Rachel pela primeira vez coloca a questão abertamente:
Rachel: – “Eu poderia casar com Charlie, ou com o jovem Jude. Eu poderia casar até com você.”
Ben: – “Cuidado com o que você fala, menina.”
Rachel: – Por que não? Não somos primos. Não somos sequer parentes.”
Depois de uma rápida pausa, Ben diz a Rachel que tomou uma decisão: vai autorizar o garoto Charlie a cortejá-la.
Mas ainda não é a questão da paixão muda entre os dois irmãos de criação o ponto central da trama. O nó da questão vai aparecer alguns minutos depois dessa seqüência do diálogo entre Ben e Rachel. Um grupo de índios kaiowas aparece junto à casa dos Zachary, e, depois de uma seqüência que mostra a grande tensão entre toda a família, Ben sai da casa e vai conversar com os índios. O chefe deles diz que trouxe três belos cavalos para dar de presente; Ben responde que se sente envergonhado, mas não tem nada de tanto valor para presenteá-los de volta, e o chefe kaiowa diz que tem, sim – a moça que vive com eles, que é uma índia kaiowa, irmã dele, o chefe.
Repito: a revelação é feita quase na metade do filme. É um absurdo que isso seja revelado nas curtas sinopses, sem aviso de spoiler.
A partir daí, a tensão vai crescer sem parar. O que vem a seguir é uma dos mais assustadores relatos de preconceito racial jamais mostrados num western. É tão assustador quanto o racismo do personagem de John Wayne em Rastros de Ódio, feito quatro anos antes deste filme aqui.
“The Unforgiven toca com convicção num tema que só vem à tona ocasionalmente nos westerns: a virulenta intolerância que floresceu entre os pioneiros e colonos do Oeste”, diz o livro Great Hollywood Westerns, de Ted Sennett. “O violento ódio dos índios que Ethan Edwards levou à sua busca pela sobrinha seqüestrada em The Searchers (Rastros de Ódio, de John Ford), de 1956, ou a fúria que leva ao linchamento do indianizado irmão de Marty Purcell em Two Rode Together (Terra Bruta, também de Ford), de 1961, mostram o racismo que impregnava aquele tempo.”
O livro Great Hollywood Westerns vai lembrar, depois, que o mestre John Ford iria admitir, em entrevista ao cineasta e historiador Peter Bogdanovich, que escreveu um livro sobre seu ídolo, John Ford: “Vamos enfrentar a verdade, nós os tratamos muito mal”, diz, sobre os índios. “É uma mancha que carregamos. Trapaceamos, roubamos, matamos, assassinamos, massacramos, e tudo o mais, mas se eles matassem um homem branco, Deus, lá vinham as tropas.”
Para o próprio autor, o filme é uma droga
Só depois de fazer toda a anotação acima fui pegar John Huston – Um Livro Aberto, no original An Open Book, a sensacional autobiografia do diretor, lançada originalmente em 1980 e no Brasil em 1987, pela gaúcha L&PM. Huston diz de cara que foi um erro ter aceito o convite da produtora Hecht-Hill-Lancaster para dirigir o filme. Considerou a qualidade do elenco, leu o roteiro escrito por Ben Maddow, que já havia trabalhado com ele em O Segredo das Jóias/The Asphalt Jungle, de 1950, e aceitou. “Julguei ver no texto de Maddow o potencial para um filme mais sério – e melhor – do que ele ou a Hecth-Hill-Lancaster pretendiam fazer. Eu queria transformá-lo na história da intolerância racial de uma cidadezinha de fronteira, um comentário sobre a verdadeira índole da ‘moralidade’ comunitária. Mas esbarrei na oposição dos produtores. O que eles queriam era o que infelizmente eu havia concordado em fazer, antes de mais nada, quando aceitei o encargo – um filme de ‘mocinho’ sobre um heróico pioneiro.”
Ele diz que abdicou das suas intenções, e que a partir daí perdeu todo o interesse pelo filme. “Foi tudo por água abaixo.”
“Certas coisas que aconteceram são penosas de rememorar”, escreveu ele. E conta que, durante as filmagens em Durango, no México, Audrey Hepburn caiu de um cavalo e fraturou uma costela. “Me senti culpado, por tê-la obrigado a montar pela primeira vez.” O acidente causou três semanas de atraso nas filmagens. Depois Audie Murphy quase se afogou num lago.
“Mas no fim o pior de tudo foi o filme que fizemos. Tem alguns, na minha carreira, que não ligo a mínima importância, mas O Passado Não Perdoa é realmente o único de que não gosto. Apesar de alguns bons desempenhos, o tom geral é bombástico e muito pretensioso. Não há nenhum personagem que não seja heróico. Uma noite dessas, ainda bem recentemente, assisti pela televisão e mais ou menos na metade da primeira parte tive que desligar para não ver mais aquela droga. Não deu para agüentar.”
Para mim, é o que ele queria: a história da intolerância racial
Que coisa fascinante. Há gente que defende com unhas e dentes tudo o que fez, mesmo a maior porcaria. John Huston detestou o filme.
Pois é muito estranho. O filme que eu vi nesta revisão agora é exatamente o que ele diz que queria fazer e não pôde: a história da intolerância racial, um comentário sobre a verdadeira índole da ‘moralidade’ comunitária.
Assim, eu faria um adendo à frase do Sandro que citei lá em cima:
“John Huston fez grandes e pequenos filmes (de Tesouro de Sierra Madre a Cartas ao Kremlin), dirigiu grandes e pequenos atores (de Humphrey Bogart a Pelé).”
Mas mesmo os filmes que ele renega, que chama de porcaria, têm mais valor que a obra inteira de muitos diretores.
O Passado Não Perdoa/The Unforgiven
De John Huston, EUA, 1960
Com Burt Lancaster, Audrey Hepburn, Lilian Gish, Audie Murphy, Charles Brickford, Doug McClure, Albert Salmi, Kipp Hamilton), John Saxon
Roteiro Ben Maddow
Baseado em novela de Alan Le May
Música Dimitri Tiomkin
Produção Hecht-Hill-Lancaster, James Productions
Cor, 125 min.
R, ***
Fui conhecer este filme pela TCM numa tarde de sábado. Abençoada TCM! E pode ser – pode ser – que Huston não tenha conseguido fazer tudo o que desejava em O Passado Não Perdoa, mas como você, eu também gosto do filme.
Ah! E eu não tenho preconceito contra filmes americanos. São meus favoritos, os mais antigos; dos modernos – de 1980 pra cá – alguns.
Não consegui gostar deste filme e nem ver até o final. É repugnante, preconceituoso e lamentável. No final ela mata seus irmãos e seu povo. Isto não tem nada de história de amor, é uma história de intolerância racial. Covarde ele manda atirar em um índio, sendo que estavam em paz. A velha mata um homem inocente enforcado. Raptam bebês e saem matando a todo e direito, ainda são donos da razão, o bem? Péssimo! Pior filme que vi nos últimos tempos…