O Fim da Escuridão / Edge of Darkness

3.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2010: O Fim da Escuridão é um thriller muito bom; tem tudo para agradar a quem gosta de filmes policiais, de ação, de mistério, com algum suspense. Mas é bem mais que isso. É a expressão forte, e atualíssima, do sentimento de profundo ódio de parte da sociedade americana pelas grandes corporações, pelo Leviatã. E faz ainda uma sutil e bela homenagem à imprensa.

É uma das mais antigas e nobres tradições do cinema americano a defesa do homem que luta só contra um poder gigantesco, David contra Golias. Boa parte dos westerns – o gênero americano por excelência – segue essa linhagem, o lutador solitário, ou apenas com um pequeno punhado de amigos, em luta contra gente muito poderosa, rica, grandes fazendeiros, invasores de terras. Há trocentos filmes, desde as fábulas de Frank Capra com seu humanismo às vezes ingênuo mas profundamente sincero, que demonizam os grandes conglomerados financeiros, entidades impiedosas que esmagam as famílias, os pequenos fazendeiros, os pequenos negociantes.

Centenas de policiais e funcionários públicos honestos e bem intencionados (sim, eles existem) já protagonizaram histórias de luta contra a corrupção em partes da máquina, do sistema. Os Intocáveis, o seriado de TV e o filme de Brian De Palma, são apenas um exemplo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A ação de O Fim da Escuridão se passa em e ao redor de Boston, a primeira grande metrópole do país, uma espécie assim de capital da Nova Inglaterra – a mesma cidade em que um pequeno David, um advogado empobrecido, decadente e alcoólatra enfrentou poderosíssimo grande escritório de advocacia que representava um dos maiores Golias de que se tem notícia, a Santa Madre Igreja, em O Veredito, a obra-prima de Sidney Lumet de 1982.

Não que O Fim da Escuridão seja tão absolutamente brilhante quanto O Veredito. Mas vem nessa linhagem – um tema tão absolutamente americano quanto o hambúrguer, a Coca-Cola e o jeans.

         Um policial honrado, com uma única paixão na vida: a filha

O filme começa com um plano geral de uma paisagem noturna, quase bucólica – um rio manso, junto do qual há muito mato e poucas construções. Mas logo aparece algo boiando nas águas escuras – um corpo de uma pessoa morta, depois mais um, e mais outro.

Corta, e temos uma imagem feita por uma câmara caseira de uma garotinha de uns sete, oito anos, brincando na praia e sendo filmada pelo pai. Os dois conversam, alegres, a garotinha sorri e brinca. É verão, é dia claro, ensolarado, o oposto da seqüência anterior. No canto inferior direito da tela podemos ver a data – 1990.

Corta, e vemos Mel Gibson, ansioso, esperando um trem numa estação central. Não há necessidade de letreiros nos informando que se passaram uns 12, 15 anos, e que a bela jovem que desce do trem e é recebida pelo pai é a garotinha que havíamos visto no filme caseiro feito em 1990.

Com cinco, sete minutos de ação, já sabemos que Tom Craven, o personagem interpretado por Mel Gibson, é um policial – veremos logo em seguida que é um respeitado, honrado detetive da polícia de Boston já lá se vão 30 anos; é viúvo, solitário, não tem amante ou namorada – sua única paixão na vida é Emma, a filha única. Emma (Bojana Novakovic), veremos também em seguida, está com 24 anos, foi uma estudante modelo, prodígio, formou-se no respeitabilíssimo MIT, o Massachussetts Institute of Technology, é engenheira nuclear e já trabalha em uma grande empresa.

Como em tantas outras relações de pais e filhos apaixonados uns pelos outros, no entanto, Tom e Emma não estavam se vendo muito, nos últimos tempos, antes do reencontro ali na estação central; os dois estavam trabalhando muito, cada um envolvido com sua vida, em cidades diferentes, e falavam-se pouco.

Antes de entrar no carro do pai, Emma passa mal, tem ânsia de vômito. No caminho da casa dele, já avisa, no entanto, que, sim, tem namorado, mas não, não está grávida.

Mal acabaram de chegar à casa dele, Emma passa mal de novo, com sangue pelo nariz. Arrumam-se às pressas para ir a um hospital; estão na soleira da porta quando há um berro da rua – “Craven!” –, um tiro de espingarda, e Emma é lançada para dentro de casa, mortalmente ferida.

Não temos nem dez minutos de filme.

A primeira impressão geral – de todos os personagens e do espectador – é de que o tiro era para Tom, alguma vingança de bandido preso por ele. Cheguei a imaginar o pior, e comentei que Mary que parecia que iria ser um daqueles muitos filmes em que alguém vai em busca de vingança contra os assassinos de um ente querido, como Valente, de Neil Jordan, para dar só um exemplo; cheguei a pensar em desistir de ver o que parecia ser mais uma dessas coisas fascistóides de olho por olho, dente por dente.

         A união de grande corporação com setores do governo

Não é nada disso, de forma alguma. O que se seguirá é uma trama complexa e ao mesmo tempo simples, básica: um homem solitário contra o Leviatã.

E o Leviatã, aqui, não é força de expressão, figura de linguagem, exagero – é exatamente o que dizem os dicionários: “qualquer coisa colossal, monstruosa ou ameaçadora”, “o Estado, como soberano absoluto e com poder sobre seus súditos” “o Estado totalitário”. Dos piores que pode haver: o resultado do intricamento dos interesses de uma gigantesca corporação e de setores da máquina do governo, ligadas a esse conceito criado para oprimir as pessoas, “a segurança nacional”.

Mel Gibson, essa figura forte, estranha, controvertida, polêmica, está muito bem. Depois de muita polêmica por suas obras como diretor – A Paixão de Cristo, em especial – e por seu comportamento pessoal, o ator parece ter se entregado de corpo e alma a esse personagem, o policial honesto que perde a coisa mais importante da vida da forma mais brutal que pode haver. O Tom Craven criado por Gibson cativa o espectador; é um sujeito duro, rígido, forte – mas chora feito um bebê, sofre o diabo com a perda de Emma.

         O fantasma da filha visita constantemente o pai

O diretor Martin Campbell e os roteiristas Andrew Bovell e William Monahan souberam construir muito bem as seqüências em Emma – ainda criança, como naquele verão filmado na praia, ou já adulta, jovem mulher, profissional promissora – visita constantemente o pai atormentado pela perda. Me lembro que esse mesmo tipo de imagem foi bem usado num filme bem inferior a este aqui, Sedução Fatal/Eye of the Beholder, de Stephan Elliott, de 1999: ali, o protagonista, interpretado por Ewan McGregor, também se vê a todo momento conversando com a filhinha que a mulher levou embora e ele nunca mais viu.

Emma virá à presença do pai diversas vezes. Poderia parecer sentimentalóide, babaca, nas mãos de outro diretor – mas não é. Funciona, é emocionante, é de doer.

O filme poderia também cair de cabeça nessa tendência tão comum em grandes produções do cinemão comercial, do exagero do exagero do exagero, e da transformação do personagem central em super-herói. Pois o filme consegue evitar essas armadilhas. Tom Craven é um bom policial, saca bem as coisas, faz bem as coisas – mas não é um super-herói exagerado.

Haverá algum exagero mais para o fim da trama, em seqüências de ação e violência; parece que sem isso não se consegue obter financiamento para fazer um filme, hoje em dia. Mas é uma coisa controlada, não é over do over do over, ao contrário do que tem acontecido tão comumente.

         Depois da crise financeira, ódio ainda maior às corporações

Antigo, já tão mostrado no cinema, esse ódio de muitos americanos pelas grandes corporações, por seu poder cada vez maior, ao que tudo indica recrudesceu com a crise financeira que estourou no segundo semestre de 2008. Às vezes dá para ter uma percepção clara de que a História anda, mas lentamente, fazendo – ao mesmo tempo que em que avança – movimentos pendulares. Depois da Grande Depressão iniciada com o crash da Bolsa de Nova York em 1929, veio o período Roosevelt, com tentativas de normatizar e ordenar as forças econômicas, o mercado. Nos anos 1990, após o fim do império comunista e durante o período Bush, ao contrário, houve um surto de selvageria maior que o normal no capitalismo, até a eclosão da crise de 2008. A partir daí, vieram as tentativas da União Européia e dos Estados Unidos da era Obama de normatização, ordenação.

Acho que este filme recentíssimo – a primeira produção de 2010 que vi, e que abre uma nova tag neste site, os filmes dos anos 2010 – tem tudo a ver com a época em que ele foi feito, o fim da era Bush, de todo poder às empresas, e o início da era Obama, de maior intervenção sobre a economia. Reflete bastante essa sensação de cansaço geral, nas economias desenvolvidas, com o poder sem fim das grandes corporações.

(Mas está é uma realidade que existe só do outro lado do Equador. Aqui embaixo, temos um governo que tenta o inverso, tenta a fórmula Geisel, a fórmula da nova China, o capitalismo de Estado, o dinheiro público sendo usado para fortalecer as empresas que interessam à companheirada que se aboletou na administração pública.)

Interessante é que o filme é a adaptação de uma minissérie da BBC que foi ar em 1985, no auge do thatcherismo. O diretor do seriado foi o mesmo Martin Campbell que dirigiu o filme – autor, também, de Cassino Royale, um dos mais recentes filmes de James Bond. Segundo o AllMovie, a minissérie, em seis capítulos, com música de Eric Clapton, virou cult na Europa. Nos créditos finais, o filme é dedicado a Troy Kennedy-Martin, o autor da série original.

Um dos roteiristas do filme, William Monahan, escreveu o roteiro de Os Infiltrados/The Departed, de Martin Scorsese.

         Quase um spoiler – quem não viu o filme não deveria ler a partir daqui

O que vai abaixo é mais uma consideração, uma pequena digressão. Não vou revelar abertamente nada específico da trama, mas, de qualquer forma, é quase um spoiler.

Há, no filme, embora de maneira suave, não muito explicitada, uma bela homenagem à imprensa, ao jornalismo – a única arma com que o cidadão de bem pode contar na luta contra o Leviatã. É aquela tal coisa: se for para abrir mão ou do governo, ou da imprensa, que se abra mão do governo. Essa é outra das boas tradições do cinema americano, a defesa da imprensa, do jornalismo independente. O jornalismo independente que assusta os governos todos, mas em especial os propensos à força total, os que se embalam em índices de popularidade artificialmente altos por concessões populistas, como os que têm assolado a América Latina nos últimos anos.

Este filme faz uma bela defesa da imprensa, uma homenagem ao jornalismo. Fica ainda maior por causa disso.

O Fim da Escuridão/Edge of Darkness

De Martin Campbell, EUA-Inglaterra, 2010

Com Mel Gibson (Tom Craven), Danny Huston (Jack Bennett), Ray Winstone (Jedburgh), Bojana Novakovic (Emma Craven), Shawn Roberts (Burnham), David Aaron Baker (Millroy), Jay O. Sanders (Whitehouse), Denis O’Hare (Moore), Damian Young (senador Jim Pine), Gabrielle Poppa (Emma garotinha)

Roteiro Andrew Bovell e William Monahan

Baseado na série da BBC escrita por Troy Kennedy-Martin

Fotografia Phil Meheux

Música Howard Shore

Montagem Stuart Baird

Produção Warner Bros, BBC Films, GK Films. DVD Imagem Filmes

Cor, 116 min

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Título em Portugal: Fora de Controlo

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