Anotação em 2010: Estão Todos Bem é um bom filme sobre temas importantes, fundamentais: família, pais, filhos, o relacionamento entre eles, o que os pais tentam passar para os filhos, e o que acabam na realidade passando, em geral um resultado muito diferente do que se pretendia; e as mentiras – ou no mínimo omissões da verdade – que surgem.
E então é interessante verificar que, bem nos créditos iniciais, há uma mentirinha – ou, no mínimo, a omissão da verdade. Lá está dito que o filme é “escrito e dirigido por Kirk Jones”.
Há uma convenção sobre a forma de se assinar a autoria dos roteiros. De uma maneira geral, a expressão “written by” – que é usada neste filme – significa que a pessoa foi a autora do argumento original e do roteiro. E não é verdade que o argumento de Estão Todos Bem seja de autoria de Kirk Jones.
Essa mentira, ou omissão, é corrigida nos créditos finais, aquelas letrinhas pequenas, depois do final do filme, que muita gente não vê – em geral, as pessoas se levantam das poltronas do cinema ou da sala nessa hora. Então, lá quase no final dos créditos finais, em letrinha pequena, está a verdade inteira: Baseado no filme Stanno Tutti Bene, de Giuseppe Tornatore, 1990, roteiro de Giuseppe Tornatore, Massimo De Rita e Tonino Guerra.
Mas ainda bem que a verdade é dita – ainda que tarde, exatamente como algumas verdades da família retratada no filme só serão ditas bem no final. Antes tarde do que nunca.
Stanno Tutti Bene, no Brasil Estamos Todos Bem, nos Estados Unidos Everybody’s Fine (exatamente o título desta refilmagem feita em 2010), foi o terceiro filme de Tornatore, logo depois de Cinema Paradiso, o maravilhoso filme que deu a ele fama mundial. Só vi o filme uma vez – segundo vejo nas minhas anotações, em julho de 1991, em Buenos Aires, durante uma semana que passamos lá, Mary, Fernanda e eu; infelizmente, só anotei os dados básicos, não escrevi nada sobre ele na época. E me lembro pouco do filme, em que o personagem central, interpretado pelo grande Marcello Mastroianni, percorre diversas cidades da Itália, se não me engano da Sicília até Milão, tentando visitar os filhos.
Estão Todos Bem deu muita vontade de rever Estamos Todos Bem.
Um homem solitário que sente falta da mulher e do trabalho
É um bom filme, esta refilmagem americana, repito. Robert De Niro faz o papel que no filme original era o de Mastroianni. Nos últimos tempos, De Niro, grande ator, andou fazendo filmes com uma certa preguiça, fazendo uma caricatura de Robert De Niro. Neste aqui, não – ele me pareceu muito bem, como costuma ser quando de fato quer, quando se interessa pelo papel que está fazendo. Compôs um personagem cheio de matizes – Frank Goode é um homem solitário, que sente o tempo todo a falta da mulher com quem viveu quatro décadas e morreu faz oito meses apenas; vive muito confortavalmente em uma bela casa, tenta se convencer de que não sente falta do trabalho, agora que não precisa mais trabalhar, mas o fato de não haver mais o trabalho, o fato de não haver mais a companheira de quase a vida toda deixam um imenso vazio. No entanto, não é um homem que se entrega à angústia, que sucumbe a ela. Esforça-se para tocar a vida; diz, várias vezes ao longo do filme, para várias pessoas, que está bem.
É um batalhador.
Quando a ação começa, Frank está se preparando e preparando sua grande casa agora vazia para receber a visita dos quatro filhos, todos já adultos, espalhados por diversas cidades, todas longe da dele. De propósito, o filme hora nenhuma especifica a cidade em que Frank mora. Pode ser qualquer uma – só é importante saber que todos os filhos não estão ali, estão bem longe, espalhados pelo país gigantesco.
Como tantos pais, ele nunca tinha sido muito próximo dos filhos. Trabalhava demais, dentro daquela perspectiva tão absolutamente comum de que o papel do pai é o de ser um bom provedor material – e de fato Frank pôde prover estudo para todos eles. Contato mesmo, afeto, conversa, entendimento, eles tinham era com a mãe.
Frank estava cuidando dos preparativos para receber os filhos, nos primeiros minutos da narrativa, e Mary já antecipava: ninguém vai vir. Sim, nenhum dos quatro virá. Em seguidos telefonemas, três deles dão explicações, justificativas – todos estão com problemas específicos que os impedem de sair de suas cidades naquele momento.
Frank tem problemas de saúde – nada gravíssimo, fatal, mas seus pulmões não estão bem, ele toma medicação, seu médico diz que ele não deve viajar, em especial de avião. Frank tenta argumentar com ele, diz que viajaria de trem ou de ônibus, mas o médico o desaconselha, diz que ele precisa é descansar, ficar em casa, cuidar do jardim.
Frank parte em busca dos filhos – vai a Nova York, depois a Chicago, depois a Denver, depois a Las Vegas.
Veremos, naturalmente, como já se poderia prever, que os filhos de Frank (interpretados por Kate Beckinsale, Drew Barrymore, Sam Rockwell e Austin Lysy) não estão bem.
Um filme previsível, com boas sacadas, pequenos detalhes
Estão Todos Bem tem muitas coisas previsíveis. Nada contra uma história previsível – isso não é uma crítica, é só uma constatação. O roteirista e diretor Kirk Jones usa alguns elementos que realçam essa coisa da previsibilidade. Por exemplo: os fios.
Frank Goode passou a vida em uma empresa (presume-se que de sua propriedade) que encapava fios com PVC, para protegê-los da chuva, do sol. Ele conta isso para uma vizinha de poltrona no trem para Nova York, a primeira das escalas de sua viagem de Odisseu, de Ulisses, pelos quatro cantos do país. Da janela do trem, vêem-se os fios – de energia, de telefonia. A câmara focaliza fios quando ouvimos a voz em off das duas filhas de Frank conversando ao telefone. Exatamente essa mesma imagem vai se repetir diversas vezes, ao longo do filme, sempre que há uma conversa telefônica entre os irmãos: a câmara focaliza fios, as vozes em off dos filhos conversam ao telefone.
Há uma bela sacada: numa determinada hora do encontro de Frank com Amy (Kate Beckinsale), a filha publicitária bem sucedida em termos materiais, Frank a vê como a garotinha de uns dez anos que ela havia sido. É uma bela sacada, mas é absolutamente previsível que ela voltará a aparecer quando Frank encontrar os outros filhos – e de fato volta, exatamente da mesma maneira. Frank os revê como eles eram quando garotinhos.
Estão Todos Bem se repete na previsibilidade – e, de novo, aqui não vai juízo de valor. Não estou dizendo que isso seja ruim – é só uma constatação.
O filme tem também uma série de coisas boas, de pequenos bons detalhes. Como Frank deixa Amy embaraçada ao tirar fotos dela no prédio em que ela trabalha. Como o filho de Amy em um segundo percebe que o avô não sabia usar as rodinhas de sua mala. Como Frank deixa Robert embaraçado quando surge de sopetão no teatro em que sua orquestra ensaia, fazendo desagradável barulho com a mala com rodinhas. Como Frank é antiquado – usa máquina fotográfica com filme, na era das fotos digitais. Belos detalhes que compõem bem os personagens, a história, o clima.
E, no final, uma canção composta para o filme por Paul McCartney
Kirk Jones fez um filme bem intencionado. O que ele pretende passar para o espectador, as conclusões a que ele chega são todas corretas, moralmente corretas. São bons toques para todos os pais do mundo.
Exatamente por ser bem intencionado, a muita gente ele parecerá ingênuo, sentimentalóide, babaca. A crítica do AllMovie, por exemplo, desce a lenha, usa adjetivos como falso, óbvio, barato.
Não me lembrava de ter ouvido o nome do diretor. Vejo que Kirk Jones nasceu em 1964, em Bristol, na Inglaterra. Começou no cinema publicitário, no início dos anos 90 – e de fato seu filme tem um bom visual, uma fotografia de primeira qualidade, característica básica de quem passou pelos filmes comerciais.
Opa! Seu primeiro filme foi Waking Ned Devine, no Brasil A Fortuna de Ned, uma absoluta delícia, “um filme irlandês abençoadamente bem-humorado, de bem com a vida”, segundo anotei quando o vi, em 1999 – o filme é de 1998. Depois disso ele ficou vários anos sem filmar; voltou em Nanny McPhee, de 2005, uma comédia para toda a família, com a maravilhosa Emma Thompson (que assina o roteiro) fazendo uma babá mágica. Este aqui foi o terceiro filme do diretor.
A trilha sonora de Estão Todos Bem é do italiano radicado na Inglaterra Dario Marianelli, autor da excepcional trilha de Desejo e Reparação/Atonement, da ótima trilha de Orgulho e Preconceito, da ótima trilha de O Solista/The Soloist, entre muitas outras
Além das composições de Marianelli, a trilha tem belas músicas incidentais, canções suaves, num estilo folk – sweet songs and soft guitars. No finalzinho do filme, na última tomada, e ao longo dos créditos especiais, uma nova canção de Paul McCartney!
Só aí me lembrei da informação: sim, eu tinha lido que Sir James Paul McCartney havia composto uma canção especialmente para um filme de safra recentíssima, que havia sido indicada para um prêmio importante – de fato, “(I Want to) Come Home” foi indicada para o Globo de Ouro.
O DVD do filme inclui um filmete de uns dez minutos em que o próprio Paul conta a história da música – desde o momento em que seu agente recebeu um telefonema de alguém que gostaria de saber se ele aceitaria compor uma canção para encerrar um filme que estava sendo produzido. Paul conta a história daquele jeito dele, aquele jeito de garoto, fazendo um monte de piadas, algumas sem graça – mas que ficam engraçadas por causa do absoluto charme de artista genial.
Conta que passaram o filme já praticamente pronto para ele, num cinema do SoHo – e, no final, no lugar em que deveria entrar sua nova canção composta especial e especificamente para aquele momento, tinham colocado Aretha Franklin cantando “Let It Be”. E aí Paul diz algo assim: “Parecia fácil – era só eu compor outro ‘Let It Be’ e cantar como Aretha Franklin. Aí até pensei em desistir.”
Claro que não desistiu.
Ah, se a música que ele compôs é boa? Claro que é boa: é McCartney, pô! Três minutos e 35 segundos do melhor pop que pode haver. Já gravei, já baixei, estou ouvindo feliz como pinto no lixo. (Eis aqui um clipe da canção.) O CD da trilha sonora, vejo agora, não traz as canções, nem mesmo a de Paul – tem apenas as composições da Marianelli.
É um filme bastante bom, Estão Todos Bem, a refilmagem de Stanno Tutti Bene de Tornatore. Mas só por esse filmete de uns dez minutos com Sir James Paul já valeria a pena.
Estão Todos Bem/Everybody’s Fine
De Kirk Jones, EUA-Itália, 2009
Com Robert De Niro (Frank Goode), Drew Barrymore (Rosie), Kate Beckinsale (Amy), Sam Rockwell (Robert), Lucian Maisel (Jack), Melissa Leo (Colleen), Katherine Moennig (Jilly), Austin Lysy (David)
Roteiro Kirk Jones
Baseado no filme Stanno Tutti Bene, roteiro de Giuseppe Tornatore, Massimo De Rita e Tonino Guerra
Fotografia Henry Braham
Música Dario Marianelli
Canção por Paul McCartney
Montagem Andrew Mondshein
Produção Miramax Films, Radar Pictures, Hollywood Gang Productions
Cor, 99 min
***
Assisti a versão americana, agora. É boa. Mas, ai, a versão original é primorosa, da trilha sonora – que acho que é do Morricone, um google me ajudaria, mas relevo – passando pela fotografia e culminando com o grande, grande Marcello fazendo o que ele faz melhor: permitindo nos ver a réstia de fragilidade que nos é própria ´por sermos humanos.
Lembro de não ter gostado desse filme. Assisti pulando algumas partes, achei pra baixo e também previsível, meio clichê. Sou do time que o considerou sentimentalóide. Mas como você disse, alguns detalhes são bons, só que sozinhos não salvam o filme. Lembro de um desses detalhes, quando ele falava ao telefone com uma das filhas: ela disse que a mãe deles sabia ouvir, já ele era mais do tipo que só sabia falar ( ou teria sido o contrário?). Enfim, às vezes falta isso aos pais, saber ouvir os filhos, principalmente na adolescência, quando há um afastamento natural. Aliás, falta isso a muita gente, principalmente nos dias atuais. Ninguém quer ouvir ninguém. Triste.
Não achei o filme sentimentalóide (sic). O pai que tenta reestabelecer relações com os filhos numa momento de sua vida que as coisas triviais, cotidianas já não fazem mais sentido. E os filhos buscando desculpas para não terem um contato mais próximo com o pai, justamente porque estão naquela fase da vida em que estão buscando justamente o que o pai buscava quando eles eram crianças e de, uma certa forma, emulando o comportamento do pai, na função de provedor da família, evitando o contato com o passado e, por consequência, com seus sentimentos. O turn point dos filhos acontece exatamente quando eles percebem que tal contato é inevitável e evitar a aproximação com o pai seria negar as próprias origens e, paradoxalmente, ter um comportamento diferente em relação à prole e ao mundo, do que o pai deles teve nas infâncias. Previsível sim, assim como o comportamento humano também é previsível, ou seja, como diz Sérgio isso não é uma crítica mas uma constatação.