3.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Resiste muito bem ao teste do tempo,-o-implacável,-o-que-passou, este A Faca na Água, o primeiro longa-metragem de Roman Polanski. O filme foi feito em 1962, pouco tempo depois que ele se formou na Escola Estatal de Cinema de Lodz, por onde passaram também Andrzej Wajda, Jerzy Skolimovsky, Krzysztof Kieslowski, entre outros – ou seja, todos os grandes nomes do cinema polonês da segunda metade do século XX.
É um tour-de-force: em 94 minutos de ação, temos apenas três personagens – um homem, uma mulher, um outro homem. Desses 94 minutos, uns 85, talvez mais, se passam dentro de um pequeno barco no meio de um grande lago. Apesar de estarmos quase o tempo todo no meio da natureza, sob o céu aberto, é um filme absolutamente claustrofóbico, tão claustrofóbico como seria se estivéssemos dentro de um elevador fechado.
Claustrofobia viria a ser uma das especialidades desse cineasta genioso e genial, doido e doído a não mais poder, um dos mais importantes de toda a história. Em algumas de suas obras seguintes – Repulsa ao Sexo, feito na Inglaterra em 1965, O Bebê de Rosemary, feito nos Estados Unidos em 1968, O Inquilino, feito na França em 1976, –, ele voltaria a criar ambientes fechados, claustrofóbicos, apavorantes.
Conforme Polanski várias vezes demonstrou, a partir de sua estréia no longa-metragem, aos 29 anos de idade, toda a loucura humana cabe num ambiente fechado, pequeno, estreito. E não só cabe: é ali que ela se potencializa, se agiganta.
Um corte no tempo – 24 horas na vida de três pessoas
A trama – o roteiro é assinado por Polanski, Jakub Goldberg e Jerzy Skolimowski – é quase minimalista; não há a preocupação em explicar para o espectador com clareza quem são exatamente aquelas três pessoas, qual é a história delas. É um corte na vida deles, um pequeno espaço de tempo – não mais que 24 horas, como nas tragédias gregas. É como se não importasse o que veio antes, ou o que virá depois. O que se mostra é aquele momento.
A ação começa num domingo pela manhã – terminará na manhã da segunda. Quando o filme começa, um casal viaja de carro por uma pequena estrada; quem dirige é a mulher, Krystina (Jolanta Umecka, uma atriz que apresentará umas quatro ou cinco caras diferentes ao longo do filme); de repente ela pára o carro, sai, dá a volta, o homem, Andrzej (Leon Niemczyk), assume a direção, e acelera, acelera muito. Os dois praticamente não conversam, não se comunicam. A certa altura, vêem um homem no meio da estrada – parece estar pedindo carona, Andrzej não tem a menor intenção de dar carona, mas o homem não sai do meio da estrada. Andrzej pára o carro, desce, troca duas frases com o homem, volta para o carro, xinga o sujeito, mas acaba permitindo que ele entre no banco de trás.
Chegam a um pequeno cais diante de um lago, onde está o barco de Andrzej – um pequeno barco a vela, com uma cabine interna, algum conforto, mas longe de ser um iate. Um pequeno barco a vela. O estranho, um rapaz mais novo que o casal (cujo nome não ficaremos sabendo hora alguma, e é interpretado por Zygmunt Malanowicz) faz menção a ir embora, continuar andando e pedindo carona, mas Andrzej meio sugere, meio ordena que ele entre no barco, passeie com eles. O rapaz acede.
Estamos com no máximo uns cinco minutos de filme. Praticamente todo o resto da ação será dentro do barco, no meio da água – na mochila, veremos pouco depois, o rapaz carrega uma grande faca.
Por que Andrzej convida, intima o estranho para acompanhar o casal? Por que o jovem aceita o convite, a intimação? Que cada um tire sua conclusão. A minha é simples – ou talvez complexa: porque são loucos, os dois, como, ademais, todos os seres humanos; porque não são racionais; porque querem ver no que vai dar aquilo; pela aventura, pelo desconhecido, pela surpresa; por que é melhor uma aventura, uma surpresa, do que ficarem sozinhos os dois, praticamente sem se falar, sem se comunicar. Porque não conseguem viver sem se arriscar.
Belos enquadramentos, uma filmagem trabalhosa, difícil
Que eu me lembre, até A Faca na Água, de 1962, só havia sido feito um filme importante todo passado num pequeno barco: Um Barco e Nove Destinos/Lifeboat, de 1944, uma inusitada visita de Alfred Hitchcock ao território da política, da discussão ideológica. Muito mais tarde, em 1989, o australiano Phillip Noyce faria com Sam Neill e uma Nicole Kidman deslumbrante em seus 22 aninhos Terror a Bordo/Dead Calm. Polanski com toda a certeza viu o filme de Hitchcock antes de fazer Faca na Água; e com toda a certeza Phillip Noyce, que é um bom diretor, viu bastante os dois, o do Hitch e o de Polanski.
Não posso garantir que sejam os únicos – mas seguramente são poucos. São, todos, tour-de-forces.
Os enquadramentos criados por Roman Polanski em seu primeiro longa-metragem, com o auxílio do fotógrafo Jerzy Lipman, são coisa de aluno aplicado de escola de cinema. Em muitas das tomadas, talvez na maioria delas, aparecem todos os três protagonistas – um deles em primeiro plano, os outros mais para trás, em diversas, infinitas variações.
É fascinante tentar imaginar como foi filmar tudo aquilo, em locação, no meio de um lago, sem grandes recursos, numa produção que não deve ter sido cara, de forma alguma – afinal, é o filme de estréia de um novo diretor na Polônia comunista. Deve ter sido trabalhosíssimo – mas o resultado é impressionamente simples, efetivo, forte, bem feitíssimo. Um show de cinema.
Na estréia, ele mostra como sabe fazer crescer a tensão
E é fascinante como, já no seu primeiro longa, Polanski sabe fazer crescer a tensão, ao longo de sua narrativa.
Muito mais tarde, já consagrado, aclamado, reconhecido, ele voltaria a mostrar tensões crescentes dentro de um barco – dessa vez um grande navio -, em Lua de Fel, de 1992. E voltaria também a fazer um filme apenas com três protagonistas, o extraordinário A Morte e a Donzela, de 1994, com a imensa Sigourney Weaver, ao lado de Stuart Wilson, confrontando o homem que no passado a havia torturado nos porões da ditadura, interpretado por outro grande ator, Ben Kingsley.
Em A Faca na Água, Polanski não tinha astros da estatura de uma Sigourney Weaver e Ben Kingsley, mas ele extrai de seus três atores interpretações excelentes – precisas, fortes, densas, cheias de nuances.
Leon Niemczyk, que faz Andrzej – um tipo asqueroso, pretensioso, cheio de si e de empáfia –, já era um ator experiente, e tem uma carreira gigantesca – o iMDB lista mais de 250 trabalhos dele. Já os outros dois, Jolanta Umecka, que faz Krystyna, e Zygmunt Malanowicz, que interpreta o rapaz sem nome, estrearam no cinema com A Faca na Água. Malanowicz manteve-se atuante, e trabalha até hoje. Jolanta Umecka faria apenas mais quatro filmes. Os três estão, no entanto, trabalhando de igual para igual. A Krystyna que a atriz estreante cria é um tipo fascinante; mistura uma certa docilidade diante do seu homem, com, ao mesmo tempo, um ar desafiador, uma postura independente, até pouco caso.
Zygmunt Malanowicz está muito bem no papel do jovem andarilho, mas Polanski gostaria de ter interpretado ele mesmo o personagem que acirra os conflitos latentes que o casal Andrzej-Krystyna carrega consiga. Polanski é um ator extraordinário, de imenso talento – como prova sobejamente tanto num papel pequeno, em Chinatown, de 1974, quanto como o protagonista de O Inquilino, seu filme de 1976.
Consta que ele não pôde interpretar o jovem sem nome por uma decisão dos produtores do filme, o estúdio estatal Kamera, que achavam que ele não é atraente, bonito, o suficiente. Bonito, isso Polanski não é mesmo – ao contrário de Zygmunt Malanowicz, sujeito boa pinta. Mas Polanski resolveu dublar o ator: a voz que ouvimos é a dele.
Incrustrados no roteiro, desafios ao regime comunista
A Polônia sob o jugo do comunismo, em 1962. No seu roteiro, os jovens Polanski, Jakub Goldberg e Jerzy Skolimowski conseguiram inscrustrar alguns diálogos que são, como a atitude de Krystyna diante do seu homem, desafiadores. Fala-se pouco, ao longo do filme; não há muitos diálogos. Mas, aqui e ali, há referências claras à existência de diferentes classes sociais, os privilegiados da nomemklatura e os pobres, no teoricamente igualitário mundo comunista.
Mas é aquele tal negócio: “Os dirigentes comunistas detestavam aqueles filmes, mas ao mesmo tempo ficavam absolutamente contentes com o fato de aqueles filmes estarem recebendo elogios no Ocidente”. A frase de Milos Forman se refere especificamente aos cineastas de seu país natal, a Checoslováquia, mas poderia perfeitamente se aplicar também aos seus colegas poloneses Wajda, Skolimovsky, Polanski, Kieslowski, assim como ao húngaro István Szabó, ao cubano Tomaz Gutiérrez Alea.
A Faca na Água recebeu indicação para o Oscar e para o Bafta de Melhor Filme Estrangeiro. Foi o primeiro filme polonês a receber uma indicação pela Academia de Hollywood. (Ele perdeu para 8 ½ de Fellini.) Foi apresentado no Festival de Cannes. Como é que daria para a censura polonesa implicar com um sucesso desses?
Ao contrário de seus compatriotas, que continuaram por muitos anos a fazer filmes na Polônia, Polanski cascou fora logo. A Faca na Água foi o único filme que fez na Polônia comunista; Repulsa ao Sexo, de 1965, foi feito na Inglaterra, e Armadilha do Destino/Cul-de-sac, de 1966, na França. Ele só voltaria à Polônia para fazer O Pianista, em 2002, já uma década após a derrocada dos regimes comunistas.
Um pouco do que os outros disseram
Leonard Maltin deu cotação máxima, 4 estrelas: “Drama absorvente, cresce com as tensões criadas quando um casal sai para um passeio de barco no fim de semana e leva um estudante andarilho. O primeiro longa-metragem de Polanski é um pedaço brilhante de narrativa cinematográfica, e um filme que tem que ser visto”.
O Guia CineBooks deu 4 estrelas em 5: “Knife in the Water é a primeira mostra da fascinação do diretor Roman Polanski com a violência e crueldade humanas, e seu intenso interesse em explorar as tensões complexas envolvidas em relações íntimas. O filme é extremamente seguro, conciso e ótimo na criação dos personagens. Knife in the Water é notável também na carreira de outro cineasta polonês, o co-roteirista Jerzy Skolimowski, que já havia começado a dirigir mas ficaria internacionalmente conhece em 1982 com Moonlighting (no Brasil, Classe Operária)”
No livro Off-Hollywood Movies, Richard Skorman faz boas observações: “Knife in the Water explora fascinantemente as questões de classe, sexo e poder nas relações entre homens e mulheres. Usando na maior parte câmara de mão, o fotógrafo Jerzy Lipman compõe maravilhosamente cada tomada para revelar a opressão e os conflitos entre os personagens, enquanto Polanski inteligentemente constrói metáforas para expressar o vazio de suas vidas.”
Dois detalhinhos
Para finalizar, dois pequenos detalhes:
A capa da revista Time de 20 de setembro de 1963 trazia uma foto do filme, para ilustrar uma reportagem sobre o cinema internacional. A legenda da capa dizia “amantes em filme polonês”, sem identificar qual era o filme ou os atores que apareciam na foto.
O outro detalhe é pessoal e intransferível, como tanta coisa nestas anotações. Fui checar no caderno onde anotava sobre filmes, e reparei que A Faca na Água – que vi no dia 23 de janeiro de 1968, no velho Cine Bijou da Praça Roosevelt – foi o primeiro filme que vi em São Paulo depois que me mudei para cá, de mala e cuia, para não mais sair, vindo de dois anos em Curitiba. Digamos que, em matéria de filme, foi um bom começo na cidade que escolhi para viver.
A Faca na Água/Nóz w wodzie
De Roman Polanski, Polônia, 1962
Com Leon Niemczyk (Andrzej), Jolanta Umecka (Krystyna), Zygmunt Malanowicz (o rapaz)
Argumento e roteiro Roman Polanski, Jakub Goldberg e Jerzy Skolimowski
Fotografia Jerzy Lipman
Música Krzysztof Komeda
Produção Zespol Filmowy “Kamera”
P&B, 94 min
R, ***1/2
Ora, que bela coincidência, também vi esse filme em 68, também recém-chegado a São Paulo, vindo do interior paulista. Provavelmente devo ter visto também no cine Bijou… Só falta ter sido no mesmo dia rs. Tenho uma vaguissima memória do filme. Há uma seqüência que permanece, a da luta no convés, a faca brilhando nas mãos de um deles (provavelmente Malanowicz).