2.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Serenata Prateada foi feito na época de ouro de Hollywood (é de 1941), por um diretor de respeito, George Stevens, e com um casal de grandes astros de seu tempo, Irene Dunne e Cary Grant. Os dois trabalharam juntos em três filmes – eram amados pelo público americano. No entanto, não é um bom filme, na minha opinião. Na verdade, me pareceu fraquinho – embora tenha uma legião de admiradores.
É um baita dramalhão, um tearjerker. O danado do inglês tem algumas palavrinhas sensacionais, expressivas, que não têm correspondente exato em português. Tearjerker é uma delas. Derramador de lágrimas, que faz derramar lágrimas. Tenho quase certeza que vou encontrá-la na descrição deste filme em um dos guias.
Embora seja feito para que o espectador derrame lágrimas, ele tem, em alguns momentos, um ritmo de comédia romântica; há um trecho, lá pelo meio, que parece ter sido feito como uma comédia rasgada – mas que mais parece uma coisa simplesmente boba, bocó, infantil. E, mesmo nas horas em que muita gente deve ter chorado ao ver o filme, é impossível que o espectador não saiba que, no final, tudo tudo vai dar pé.
Tudo bem – não é um filme de suspense. Mas o excesso de previsibilidade de Serenata Prateada também é demais.
E o tom suave, cômico, de alguns momentos, acaba interferindo na parte dramática. Fica parecendo que Cary Grant está fazendo um esforço danado para não rir, nas horas feitas para o espectador chorar.
O filme abre com uma Irene Dunn com maquiagem para parecer mais velha dizendo que vai sair de casa, vai deixar o marido. Ela informa isso ao outro personagem que vemos em cena, um grande amigo, Applejack (Edgar Buchanan); pede a ele que compre passagem de trem para ela, e, quando ele sai para fazer o favor, ela põe um disco na vitrola. Sim, estamos em um filme de 1941: Irene Dunne pega um disco de 78 rotações e põe na vitrola. Um close-up da vitrola com o disco – com o logotipo da RCA Victor bem visível – rodando 78 vezes por minuto, e lá vem o flashback, o primeiro de váááários que haverá ao longo do filme. No espaço redondo em que está o disco, vemos uma cena do passado.
E aí vem uma longa série de seqüências que parecem de uma comédia romântica. É uma das 200 milhões de variações do tema mocinho encontra mocinha. O mocinho – Cary Grant – está passando na rua, e vê a mocinha, dentro de uma loja de música. A mocinha é uma das duas funcionárias da loja – o espectador mais atento poderá ver um cartaz do lado de fora informando que ali é a Brooklyn Music Shop, que vende discos, 3 por 88 cents. O mocinho pede à mocinha que toque determinado disco; depois pega uma pilha vasta de discos e leva para ela. Corte, e os dois estão saindo juntos da loja – ele carregando um embrulho gordo de discos, e mais um solto. Caminham juntos, como se fosse por acaso – ele diz a ela que está mesmo indo naquela direção. Quando finalmente a mocinha pára diante do prédio em que mora, o mocinho pergunta a ela, candidamente:
– “Do you have a Victrola inside?”
Ela se espanta: ele não tem? Ele diz que não. Ela pergunta: mas então por que ele comprou tantos discos? Ele dá um sorrisinho como para dizer: para ficar mais tempo junto de você, mocinha.
Victrola, da RCA Victor, virou substantivo comum
Você tem uma Victrola na sua casa? A legenda do DVD (aliás, as legendas do DVD são péssimas, horrorosas) traduz para “Você tem um gramofone em casa?” A rigor, está correto, mas perde um pouco do sentido da coisa, do merchandising da RCA Victor.
E aí não resisto a uma digressãozinha. Como apaixonado por música, e por discos, não dá para resistir. Informa a Wikipedia: “A Victor Talking Machine Company (1901-1929) era uma empresa americana, a principal produtora americana de fonógrafos e discos fonográficos, e uma das maiores companhias fonográficas do mundo na época. Sua sede ficava em Camden, New Jersey.”
Quem tem mais de 50 anos deve se lembrar de que houve uma época em que a RCA no Brasil se chamava RCA-Camden.
A empresa mudou de nome várias vezes, ao longo dos anos. Em 1941 chama-se RCA Victor. Era tão importante que o fonógrafo que criou se chamava Victrola – e todo mundo com mais de 50 anos se lembra da palavra vitrola. Um típico caso de marca tão importante que virou substantivo comum, como gilete.
O mocinho é jornalista
O namoro de Roger e Julie demora um pouquinho para engrenar. Era 1941, afinal de contas. O primeiro beijo, só lá adiante. De repente somos informados de que Roger é jornalista – um tipo sem horário para sair do trabalho, sem qualquer pontualidade, e sem qualquer intenção de se comprometer seriamente. Numa festa de réveillon na casa de Julie, Roger demora demais para chegar. Os amigos – Applejack, que tínhamos visto na primeira seqüência, está lá – percebem que Julie está aflita, sem saber se ele virá, quando ele virá. Enfim ele chega, e com grandes notícias: abriu uma vaga de correspondente em Tóquio no jornal em que ele trabalha, o salário é bom, é tudo o que ele quer; ele vai – mas quer saber se Julie aceita se casar com ele, imediatamente, aquela noite mesmo. Ele viajaria no dia seguinte, para assumir o posto, até poder, uns três meses depois, pagar a passagem dela para o outro lado do mundo.
A essa altura, devemos estar com uns 20 minutos de filme, e o esquema de voltar aos dias de hoje, Julie colocando um disco após outro na vitrola, a câmara pegando em close-up o disco girando no prato, no espaço do disco aparecendo uma imagem de flashback, já se repetiu umas duas vezes. O mesmo esquema vai se repetir ao longo do filme inteiro. Dá-lhe um trecho de flashback da história do casal, corta, vemos Julie colocando mais um disco na vitrola, volta-se a mais um flashback.
Irene Dunne, uma grande estrela
Mesmo os espectadores mais jovens sabem da importância de Cary Grant, de como ele foi um dos maiores astros de Hollywood nos anos 30, 40 e 50. O mesmo não acontece, acho, com Irene Dunne; ela meio que sumiu na poeira do tempo. Naquela época, no entanto, era uma grande estrela, das maiores de todas. Seu nome, nos créditos iniciais, aparece antes do dele.
Irene Dunne (1898-1990) foi indicada cinco vezes ao Oscar; era excelente cantora, e começou no teatro, em musicais; no cinema, a partir de 1930, fez musicais, épicos, westerns, melodramas, comédias. Diz o livro Leading Ladies – The 50 Most Unforgettable Actresses of the Studio Era: “Seu rosto clássico e delicado, a voz bem modulada e maneira graciosa eram bem talhados para os filmes dirigidos a mulheres, tão populares nos anos 30, e ela fez dois dos mais famosos do gênero, Back Street (Esquina do Pecado, 1932) e Magnificent Obsession (Sublime Obsessão, 1935). No entanto, apenas um ano depois deste último, sua carreira assumiu uma nova dimensão. A Columbia a colocou no papel de uma jovem de cidade do interior que, secretamente, escreve romances tórridos na screwball comedy (as comédias amalucadas, quase nonsense, da época) Theodora Goes Wild (Os Pecados de Teodora), e muita gente ficou surpresa ao ver que essa rainha dos teajerkers (olha a palavra aí!) também podia perfeitamente se divertir como uma palhaça com os melhores do gênero. The Awful Truth (Cupido é um Moleque Teimoso, 1937) e My Favorite Wife (Minha Esposa Favorita, 1940), ambos co-estrelados por seu bom amigo Cary Grant, demonstram que a fama de Irene como uma screwball comedienne era um reflexo de seu talento único. Ela atuava em tom menor onde outros poderiam ter atuado de forma extravagante.”
No início dos anos 50, aposentou-se, foi viver em casa com o maridão, um médico; ficaram casados quase 40 anos, até a morte dele, algo raríssimo no mundo e mais raro ainda no mundo do cinema.
Um detalhe muito interessante: na vida real, ela adotou uma filha. Exatamente como sua personagem em Serenata Prateada. Reparei nessa informação que está solta no livro Leading Ladies, sem remeter a nada; depois, vi que o iMDB afirma que Irene Dunne várias vezes disse que este era seu filme favorito, porque a fazia lembrar de sua filha adotiva.
Engraçado: já vi vários filmes com Irene Dunne, inclusive as duas comédias em que ela aparece ao lado de Cary Grant, citadas pelo livro Leading Ladies. Acho que ela é uma boa atriz, sem dúvida, e tem o rosto bonito – mas ela não me encanta, não me passa nada especial. (Um P.S.: isso aí é besteira minha; mais tarde, percebi o valor dessa bela atriz, e passei a admirá-la muito.)
“Wonderful tearjerker”
Bem, já achei a expressão tearjerker, como eu previa que iria achar, quando comecei esta anotação. Mas vou dar mais uma olhada nos alfarrábios.
Háhá, não tem erro. Tá lá no Maltin, que dá 3.5 estrelas em 4, entrega numa única frase duas informações sobre a história que eu fiz questão de não adiantar, e diz: “Wonderful tearjerker”. E está também na abertura do texto de Pauline Kael: “Irene Dunne e Cary Grant, que tinham feito as platéias rirem em Cupido é um Moleque Teimoso e Minha Esposa Favorita, desta vez arrancaram lágrimas.” (No original, jerked tears this time.)
Dona Pauline merece a fama que tem. Sua análise é brilhante: “O diretor, George Stevens, não teve pressa (o filme dura mais de duas horas), nem foi muito sutil; o filme é ‘sincero’ de uma maneira inerte e horrivelmente primitiva. Stevens tornou a história sentimental convincente para o grande público; muita gente fala deste filme como profundamente emocionante. Talvez a magia se deva à escolha irrealística do elenco: a atração para a platéia é que dois astros glamourosos fazem um casal comum e sofrem as calamidades que de fato acontecem com as pessoas simples. Quando a tragédia atinge Irene Dunne e Cary Grant, fere o público de um modo especial.”
Ela só deu uma exageradinha: o filme tem 119 minutos, e não mais de duas horas, como ela diz.
No seu verbete sobre o filme, o livro The Columbia Story não usa a palavrinha tearjerker, mas usa tears e jerk: “Se você tem lágrimas, prepare-se para derramá-las agora. Esse, pelo menos, deveria ter sido o aviso dado aos consumidores que iam ver Penny Serenade. Generosas quantidades de lenços de papel deveriam ter sido oferecidas, gratuitamente.” Esse filme, prossegue o livro, foi o maior chorador desde Madame X, de 1929.
Mas o espectador já sabe – desde o primeiro flashback – que no fim tudo tudo vai dar pé.
Um campeão de reprises na TV americana
Engraçado: enquanto estava vendo o filme, me lembrei de A Felicidade Não se Compra/It’s a Wonderful Life, do mestre Frank Capra, de 1946. A Felicidade Não se Compra também é assim: o George Bailey de James Stewart sofre feito um condenado, come o pão que o diabo amassou. A gente sabe que no fim tudo tudo vai dar pé, mas a gente sofre com ele. Aliás, diversos filmes de Capra são assim. Só que o sofrimento de George Bailey me parece mais real, mais emocionante, mais entristecedor do que o do casal central de Serenata Prateada. Sei lá: o filme não me pegou.
Pois bem, mas o fato é que me lembrei de A Felicidade Não se Compra ainda quando estava vendo Serenata Prateada. Aí, esta anotação já grande e já me parecendo completa, resolvi dar uma olhadinha no que diz o AllMovie. Vou transcrever o trecho final – porque é mais uma amostra de que o filme tem grandes admiradores, como Leonard Maltin, e também porque, não por coincidência, o texto do grande e belo site cita A Felicidade Não se Compra:
“Sentimental ao extremo, Penny Serenade é enormemente efetivo, alternando momentos de pathos de quebrar o coração com gargalhadas. Somente o diretor George Stevens poderia ter feito uma cena em que Cary Grant chora copiosamente sem induzir a platéia a um desconforto ou embaraço. Depois que caiu em domínio público em 1968 (embora tenha sido lançado pela Columbia, o filme pertencia à empresa produtora de Stevens), Penny Serenade se transformou numa presença tão constante na TV a cabo quanto It’s a Wonderful Life.”
Fantástico.
Que A Felicidade Não se Compra passa sempre na TV americana, em especial na época de Natal, eu sabia. Não sabia que Serenata Prateada também é uma reprise constante lá. De fato, os dois filmes têm em comum o fato de falarem de Natal, e de terem um certo espírito natalino, dentro da concepção americana – uma coisa sentimental, sentimentalista, lacrimosa: sofre-se muito, mas no fim tudo tudo dá pé, nesta hora (a época do Natal) de congraçamento, de conciliação, de reunião, de amor e paz.
Então, aproveito que vi o filme em dezembro e vou tascá-lo no site depressinha, reavivando a tag Natal, que criei no final de 2008, mas depois tirei do ar depois que passaram-se as festas de fim de ano.
Serenata Prateada/Penny Serenade
De George Stevens, EUA, 1941
Com Irene Dunne (Julie), Cary Grant (Roger Adams), Beulah Bondi (Miss Oliver), Edgar Buchanan (Applejack), Eva Lee Kuney (Trina)
Roteiro Morris Ryskind
Baseado em conto de Martha Cheavens
Fotografia Joseph Walker
Música W. Franke Harling
Produção Columbia Pictures
P&B, 119 min
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