Anotação em 2009: Uma deliciosíssima diversão, inteligente, cheia de ótimas piadas, visuais e verbais, sobre a época distante em que – diz o filme; não sei o quanto há de verdade nisso, ou se há algo de verdade nisso – o futebol americano universitário era um tremendo sucesso, enquanto o profissional, que hoje mexe com milhões e milhões e milhões de dólares, praticamente não existia.
O filme de George Clooney, o terceiro dirigido pelo ator galãozão que está com tudo e acho até que finge que não está tão prosa, faz lembrar um monte de outros. O sobrinho da grande cantora Rosemary Clooney, com aquele jeitão de sonso nas comédias dos irmãos Coen, parece ser um cinéfilo apaixonado, e cita, acho que propositalmente, diversos outros filmes. Há toques de Golpe de Mestre/The Sting, o maravilhoso segundo encontro da dupla Newman-Redford: a época em que os dois filmes se passam é mais ou menos a mesma, os anos 20-30; os dois têm uma trilha sonora bem semelhante, com muito ragtime de primeiríssima qualidade. (Volto ao tema trilha sonora depois.) Também pela época da ação, pelo ritmo às vezes muito rápido, pelas piadas escrachadas, desavergonhadas, pelas caretas do próprio Clooney, este filme aqui faz lembrar E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?/O Brother, Where Art Thou?, o primeiro dos até agora três filmes dos Coen em que Clooney trabalhou como ator.
Tem mais. Ainda por ser uma reconstituição de época, do período pré-Hiroshima (o momento em que, segundo Spielberg, acabou a inocência), e por tratar de esporte que naquele tempo distante era meio amador, e hoje é show business biliardário, faz lembrar Uma Liga Muito Especial/A League of Their Own, com Geena Davis e Madonna, sobre o beisebol feminino. E também por tratar de esporte, de time pequeno viajando de ônibus de cidade em cidade, e falar de um triângulo amoroso envolvendo um jogador mais velho, experiente, e um mais verdinho, e também mais talentoso, lembra muito o delicioso Sorte no Amor/Bull Durham, com Kevin Costner, Susan Sarandon e Tim Robbins.
Tudo bem: mesmo para quem não viu nenhum dos quatro filmes citados, este aqui é uma delícia. E não há por que se preocupar pelo fato de que o tema de fundo é o futebol americano. Não é preciso entender nada daquele estranhíssimo esporte (será que aquilo é um esporte??) para gostar do filme. Na verdade, não é preciso entender nem gostar de esporte algum para rir muito da história.
O filme abre com o logotipo da Universal dos seus primeiros anos – não o modernão em que vemos o planeta como visto pelos satélites, com a palavra Universal chegando em torno dele, mas aquela coisa pré-computador, pré-imagem gerada por computador, primitiva e linda. Só isso, a apresentação da logomarca do estúdio de forma antiga, já é uma bela sacada – mas o filme sequer começou.
Temos então uma primeira seqüência com um estádio lotado, abarrotado, e um jogador, Carter Rutherford (John Krasinski) fazendo um gol sensacional – e um letreiro informa: “Futebol americano universitário, 1925”. Em seguida vemos Carter saindo do estádio, com um monte de repórteres fazendo perguntas a ele; alguém pergunta o que ele fará daí a um ano, quando terminar a faculdade – não sentirá saudade do futebol? E outro repórter emenda: – “Bem, você poderia ir para o futebol profissional”. Um segundo de absoluto silêncio – e todos, Carter e o bando de repórteres, caem numa gigantesca gargalhada.
Corte rápido, e temos uma vaca. Diante da vaca – o único e solitário espectador do espetáculo -, engalfinham-se, à maneira do que se fazia no Coliseu romano, à maneira do que fazem na luta livre, uns 20 jogadores de futebol americano. Um letreiro avisa: “Futebol americano profissional, 1925”.
A trama que virá após essa abertura triunfal envolverá jornalismo, a merda que é esculachar as pessoas na mídia, ferrar a vida de pessoas na mídia para dar ibope, a dor de consciência nos jornalistas que porventura possuem alguma, mulher repórter num mundo de machos, considerações sobre patriotismo, honra, verdade, mentira, engodo, farsa, gozações sobre a Lei Seca, um triângulo amoroso, a noção de que as regras e regulamentos estragam o prazer – um bando de assuntos. Tudo com uma visão irreverente, satírica, escrachada, descompromissada, e um ritmo frenético, uma piada e um belo diálogo após o outro, numa velocidade tão estonteante que dá dó de quem vê o filme no cinema e não pode se dar ao luxo de apertar a tecla de voltar.
Só para dar um exemplo, transcrevo um diálogo, que pensei em anotar direto do DVD, mas que, felizmente, já está no iMDB. Estamos em um bar (ilegal; é 1925, Prohibition, Lei Seca, a forma mais acertada de fazer prosperarem as máfias, os traficantes, o crime, o desorganizado ou não); Dodge Connely, o personagem de George Clooney, um espertalhão bom de bola, chega com uma dame, uma doll, uma senhora da noite, e, por coincidência, senta-se diante do balcão ao lado da jornalista Lexie Littleton (Renée Zellweger, com muitas caretas e bocas, uma gracinha), que está acompanhando o time de futebol para desmascarar Carter Rutherford, o astro do time, um herói da Primeira Guerra Mundial cuja história secreta ela acabou de descobrir. A moça, a dame, a doll, diz que vai fazer xixi, e então temos o diálogo, tudo a mil por hora:
Lexie: – “Garota encantadora. Pensei que era preciso ter 21 para entrar num lugar como este aqui.”
Dodge: – “Ela tem 21.”
Lexie: – “Eu quis dizer de QI.”
Dodge: – “Eu não planejava que ela concorresse a um lugar no Congresso.”
Lexie: – “Ah, não? O que você planejava fazer com ela?”
Dodge: – “Você sabe, o que se faz normalmente.”
Lexie: – “Botar protetores nos ombros e um capacete e arrancar o cérebro dela?
Dodge: – “Acho que alguém já fez isso antes de mim.”
Lexie: – “Ela vai se dar bem no Congresso.”
***
O maravilhoso diálogo acima seria um perfeito fecho para esta anotação, mas eu gostaria de falar da trilha sonora. A trilha sonora é de Randy Newman, um compositor absurdamente fora de série. Nascido em Nova Orleans, em 1943, ele é sobrinho de três compositores, Alfred, Lionel e Emil Newman; tio Alfred Newman é simplesmente um dos mais importantes compositores de trilhas sonoras de toda a história; ganhou nove Oscars e teve 40 outras indicações a prêmios. A dinastia continua, e Randy é primo dos excelentes compositores Thomas e David Newman.
Randy Newman, ao contrário de todos os tios e primos, resolveu também mexer com palavras, em vez de só com notas, sol, lá, si, bemóis e quetáis. Virou um singer/songwriter de respeito, adorado pela crítica, com canções maravilhosas, tristes, pesadas, profundas, emblemáticas de seu tempo; só não ficou mundialmente conhecido como o melhor compositor pop judeu-americano (ou não) porque teve a infelicidade de competir com Bob Dylan, Paul Simon e Leonard Cohen – para não falar de Irving Berlin e dos irmãos Gershwin, que são tão judeus-americanos quanto, mas de outra seara.
Randy Newman tem então uma carreira dupla – a de compositor popular não muito popular e a de autor de trilhas sonoras. É exatraordinário nas duas, mas, nesta última, é brilhante como o tio Alfred. A trilha que escreveu para Nos Tempos do Ragtime/Ragtime, de Milos Forman, é das melhores que já foram feitas, um brilho, uma riqueza fascinante – evoca o ragtime do gênio Scott Joplin, que por sua vez foi usado na trilha do já citado Golpe de Mestre/The Sting. Fez a trilha de outro filme de época e sobre esporte, Um Homem Fora de Série/The Natural, com Robert Redford e um bando de boas atrizes e belas mulheres, Kim Basinger, Glenn Close.
Teve o absurdo de 17 indicações ao Oscar, por trilha sonora e canção (às vezes nas duas categorias ao mesmo tempo), em 1982, 1985, 1990, 1991, 1995, 1996, 1997, 1999, 2000, 2001, 2002 e 2007. Uma loucura.
Mas, de tudo, acho, o de que ele gosta mesmo é da música do início do século. Não deste, não – o outro, o passado. Uma coisa alegre, sincopada, dançante, rica, a união da formação erudita com as formas novas, populares, da música, com sangue negro e força multicolor – o ragtime de Scott Joplin. Foi em homenagem àquela música que ele fez a trilha deste filme aqui. Um brilho.
O Amor não tem Regras/Leatherheads
De George Clooney, EUA-Alemanha, 2008
Com George Clooney, Renée Zellweger, John Krasinski, Jonathan Pryce
Roteiro Duncan Brantley e Rick Reilly
Música Randy Newman
Produção Universal
Cor, 114 min
***1/2
Título em Portugal: Jogo Sujo
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