Monpti, um Amor de Paris / Monpti


2.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Eis aí um filme que tem coisas horrorosas e, ao mesmo tempo, é uma interessante, fascinante peça de museu.

Peguei para ver só por causa de Romy Schneider. Antes de começar a ver, fui checar: como o filme é de 1957, Romy Schneider, nascida em 1938, estava com 19 aninhos. O filme foi feito no meio da trilogia Sissi, que a tornou mundialmente famosa: o primeiro Sissi é de 1955; Sissi, a Imperatriz é de 1956; e Sissi e Seu Destino é de 1957, o mesmo ano deste Monpti.

Já é interessante o simples fato de o filme ser uma produção alemã toda passada em Paris, enaltecendo o charme de Paris, feito apenas 12 anos depois do fim da Segunda Guerra, em que a Alemanha invadiu e ocupou a França. Parece assim uma espécie de pedido de desculpas, ou, no mínimo, um aceno de paz, de boa vontade endereçado aos franceses. Comentei isso com Dona Lúcia, minha sogra, antes mesmo de começarmos a ver o filme.

Um filme que tem coisas horrorosas, eu disse. Sim, é uma grande bobagem, a começar do título, Monpti, contração de mon petit. A historinha muitas vezes beira o ridículo, a debilidade mental: mocinho conhece mocinha; ele é estrangeiro, húngaro, pobre, mora num prédio velho, caindo aos pedaços, um cortição, no último andar, sem elevador – mas seu pequeno e mulambento apartamento tem um terraço com vista para a Notre Dame. A mocinha diz que é riquíssima. Encontram-se no Jardim de Luxemburgo, têm uma conversa boboca, depois se encontram mais uma vez, e outra, e outra; ela diz que está noiva, mas os dois começam a namorar. Beijam-se sous le ciel de Paris, e o filme mostra algumas das belezas de Paris, as margens do Sena, Montmartre, os boulevards, o casario belíssimo – mas, e aí vem algo interessante, não se fixa apenas nos locais mais belos e portentosos; o filme mostra também áreas mais pobres, com casas velhas, mal pintadas, mal conservadas; visitamos também os faubourgs, os bairros mais pobres.

O mocinho e a mocinha então beijam-se, beijam-se, e o mocinho quer mais, mas a mocinha não quer entregar o mais que ele quer.

Alguns diálogos são grotescos, infantis, babacas. Algumas gracinhas que os personagens fazem são de dar vergonha no espectador. Os dois atores, Romy Schneider e Horst Buchholz (ele estava no início de uma carreira que teve bons momentos no cinema internacional), são tão jovens e belos quanto mal dirigidos, ou dirigidos para atuarem num jeito mais farsesco do que natural. Não sabem o que fazer com as mãos, parecem palhaços no picadeiro de circo mambembe.

         Uma atriz de beleza fulgurante, e um início surpreendente

Mas Romy Schneider aos 19 anos, antes de crescer e aparecer e virar a atriz maravilhosa que viria a ser, trabalhando com alguns dos diretores mais importantes de seu tempo, meu Deus do céu e também da terra – que coisa maravilhosa, que beleza fantástica, fulgurante.

E o início do filme é surpreendente, inesperado. O diretor Helmut Käutner e os roteiristas bolaram um esquema bem sacado, gostoso, até inteligente. Um narrador apresenta-se para os espectadores, em uma pequena praça parisiense em que uma pessoa acaba de ser atropelada e um carro de frutas cai e as pessoas se divertem com a cena.

O narrador se vira para a câmara e diz um texto gostoso, com algum humor e jogo de cintura que não seria de se esperar dos sisudos tedescos:

– “Tudo acontece no mesmo lugar, ao mesmo tempo. Alguém é atropelado, as pessoas assistem chocadas. Um carro de frutas vira, as pessoas riem. As mesmas pessoas. A alegria e a tristeza andam juntas, sempre e por toda a parte. Como sorte e azar, claro e escuro, vida e morte. Você tem um tempo? Quero contar uma história. Ela é engraçada – e triste. Uma história de amor.”

E aí começam os créditos iniciais, enquanto vamos vendo cenas de Paris, bairros pobres e bairros mais centrais, mais ricos. E a voz em off do narrador diz, numa pausa entre os letreiros iniciais, de novo com um jogo de cintura surpreendente:

“Não precisa ler tudo. Basta olhar o cenário. É Paris. Minha história é uma história parisiense.”

Uma gozação com os créditos iniciais de um filme! Surpreendente.

Ao fim dos créditos, a voz em off do narrador continua. Ele mostra o Boulevard Saint Germain-de-Près, “onde os existencialistas estão em casa” (era 1957, é preciso lembrar). Mostra o mocinho, mostra a mocinha; diz que eles vão se encontrar – mas eles passam um pelo outro sem se ver. Depois vamos vê-los no mesmo café ao ar livre, mas eles ainda não se aproximam um do outro, e o narrador brinca com isso, diz que Deus não tem pressa. No café, a mocinha lê um livro, o mocinho lê um jornal cujo nome é Hungary, e o narrador aproveita para dizer que ao mocinho é um estrangeiro – mas brinca: “Calma, não vou contar uma história política”.

Até que finalmente, num banco do Jardim de Luxemburgo, os dois se vêem, começam a conversar a primeira conversa boboca.

E aí os germânicos surpreendem mais uma vez com mais ginga de corpo em lugar da sisudez: as primeiras palavras que mocinho e mocinha trocam são em francês; aí entra a voz em off do narrador:

– “Minha nossa! Os dois falam em francês. Ela perfeitamente, ele com sotaque húngaro. O que faremos? Legendas? Não! Você quer ouvir o que eles falam, e não ler. Vamos fazer o que às vezes fazemos. Vamos sincronizar. Sabe como é…”

E aí os dois passam a falar em alemão.

Comentei com Dona Lúcia que a brincadeirinha do narrador era surpreendente – eu esperava um filme boboca, um água-com-açúcar padrão, tradicional, com muita sacarina e menos ginga de corpo.

         Um tom inocente, angelical – e um tom safado, sacana

E aí é que está. O filme tem de fato coisas surpreendentes.

De repente, bem de repente, surge no filme um outro casal, além do mocinho e da mocinha. Os dois são ricos, afetados, frescos; ela nos é apresentada como uma mulher que se casou com um homem muito rico; ele é o amante dela; os dois detestam casamento – bom é o/a amante. A primeira vez em que o casal número 2 aparece é num restaurante finíssimo, onde nosso herói pobretão foi gastar todo o dinheiro que ganhou vendendo seus primeiros desenhos – ah, sim, porque o mocinho, naturalmente, é um pintor iniciante, um artista; o que mais poderíamos esperar de um filminho que brinca com clichês?

Pois o casal número 2 vai continuar aparecendo aqui e ali ao longo do filme, permeando a historinha boba do namoro do mocinho com a mocinha que não tem coragem de dar pro mocinho. O casal número 2 aparece tanto que lá pelo meio do filme a voz do narrador em off voltará para dizer algo do tipo: “Mas por que é que esses dois continuam aparecendo na história?”

E aí temos mais uma coisa surpreendente. No meio do filminho água-com-açúcar, censura livre, há toda a coisa do mocinho querendo comer a mocinha mas a mocinha não tendo coragem de dar pro mocinho – algo, aliás, bem típico daqueles anos 50, mas um tanto impróprio para tanta água-com-açúcar. Mas a surpresa não pára aí; surgirá do nada uma faxineira que trabalha no prédio do nosso herói, mulher negra, sensual, em vestido de couro (!), que canta (em inglês!), se oferece toda para ele – e ele nem liga, claro.

E, nova surpresa, de repente o mocinho passa fome e tem alucinações, a câmara fica um tanto flu – e numa dessas alucinações temos Romy Schneider aos 19 anos, a puríssima, angelical imperatriz Sissi, em uma cena toda sensual, de negligé negro, belíssimo corpo à mostra, de repente tirando o negligé e se oferecendo para o mocinho alucinado.

É muito esquisita essa mistura que o filme faz de tom inocente, pueril, com uma coisa safada, sensual. Muito esquisita, surpreendente, interessante. Depois, mais tarde, quando menos se espera, o tom vai mudar de novo; o tom que vinha alternando inocência e safadeza vai subir várias oitavas para o trágico.

Dei uma olhada em seis guias de filmes, três americanos, um inglês e dois franceses, desses enciclopédicos, com mais de 15 mil filmes cada, e nenhum deles se preocupa em falar de Monpti, que a Versátil descobriu e lançou aqui em DVD. O filme também não consta de um sétimo guia, o Videobook, o que é uma indicação certa de que, na era do VHS, ele não chegou ao Brasil.

Rara peça de museu.

Monpti, um Amor de Paris/Monpti

De Helmut Käutner, Alemanha Ocidental, 1957

Com Horst Buchholz, Romy Schneider, Mara Lane, Boy Gobert, Olive Moorefield

Roteiro Gábor Vaszary, Helmut Käutner, Willibald Eser

Baseado em novella de Gábor Vaszary

Produção Neue Deutsche Filmgesellschaft, Herzog Filmverleih

Cor, 96 min

**1/2

7 Comentários para “Monpti, um Amor de Paris / Monpti”

  1. Acho q vc começa o texto de forma muito cruel…
    Parece-me que o filme foi efetivamente feito pra ser uma “sessão da tarde”, aproveitando um romance marqueteiro entre Romy Schneider e Horst Buchholz – as duas maiores promessas do cinema alemão de então (e que efetivamente se concretizaram). Acho que é a partir daí que o filme deve ser considerado. E aí talvez algumas coisas passem a fazer sentido…
    Buchholz era um ídolo juvenil (especialmente por “Die Halbstarken”, de 55) e neste mesmo ano consolidava-se como ator (por sua atuação na adaptação do Felix Krull, de Thomas Mann – um estrondoso sucesso na Alemanha). E, como vc destacou, Schneider já era uma celebridade, por “Sissi”. Ambos haviam feito um filme juntos, uma besteirinha claramente voltada para adolescentes (a Versátil também o lançou aqui há pouco).
    Como “casal”, os dois fizeram um enorme sucesso na época. Para vc ter uma idéia, houve até o lançamento de bonecos dos dois, com os figurinos usados em “Monpti” (mas ela acabou mesmo foi com Alain Delon, que fez alguns filmes para o qual Buchholz esteve cotado – como o “Rocco” e depois “O Leopardo”, ambos de Visconti –, e vice-versa).
    Estes dados talvez expliquem um pouco esses dois lados do filme, que vc percebeu. “Monpti” me parece ter sido concebido como veículo para exibição das duas jovens estrelas, especialmente pela platéia juvenil. Daí, talvez, a história meio boba e o que vc viu como excesso de gracinhas dos atores. Imagino que, à época, isso não tenha sido visto como excesso: essas gracinhas talvez fossem justamente a principal atração do filme (como aquele “Sr. e Sra. Smith”, com Brad Pitt e Angelina Jolie).
    Mas, e aí está o outro lado do filme, toda a bobagem tem um tratamento surpreendente para a época porque, afinal, Buchholz e Schneider já não eram mais iniciantes nem apenas duas promessas (de Schneider não sei muito, mas Buchholz faria uma sucessão de dramas “adultos” em seguida, até chegar aos EUA). Em resumo: um filme feito para exibir duas estrelas para seu público juvenil, mas com um certo “algo mais” que o colocasse à altura de dois atores que, naquele momento, estavam diretamente ligados à construção de uma nova Alemanha, já na onda do Plano Marshall (note-se que o filme tem uma clara influência hollywoodiana…)
    Bom, talvez eu esteja divagando, mas foi assim que percebi o filme.
    Mas, apesar do início cruel do seu texto, fiquei contente de vc não trair seu habitual olhar arguto, destacando essas outras coisas do filme (eu citaria, na linha da seqüência SM que vc mencionou, aquele vento que mostra não só as pernas mas a própria calcinha de Schneider, no amasso às margens do Sena). E, além da questão da Paris do pós-guerra que vc também destacou, outra coisa me chamou a atenção: a tal faxineira é negra, num filme feito, como vc observou, apenas 12 anos após a queda do III Reich – e, mais do que negra, uma negra sensual, com ar altivo, e que foi talhada para conquistar a platéia (aliás, não seria ela o personagem mais interessante do filme?).

    😉

    Ok, ok. Confesso: sou fã de Horst Buchholz. Por isso é que escrevi isso tudo…

  2. Caro André,
    Agradeço imensamente por seu comentário.
    Nada contra, evidentemente, o fato de você ser fã do Horst Buchholz. E tudo a favor de receber um comentário como o seu, cheio de informações, argumentos, lembranças de fatos.
    É uma honra que você de vez em quando leia o site. Volte sempre que puder.
    Muito obrigado, e um abraço.
    Sérgio

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