4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Um filme brilhante, estupendo, extraordinário, genial. Depois de ver este aqui e também Lemon Tree, não tenho dúvida em fazer a afirmação superlativa: o israelense Eran Riklis é um dos melhores cineastas em ação no mundo hoje.
Vi os dois filmes na ordem inversa – primeiro vi Lemon Tree, que é de 2008, e só algumas semanas depois fui ver A Noiva Síria, de 2004. Os dois são tão bons quanto – são duas obras-primas.
Ao final de A Noiva Síria, enquanto corriam os créditos finais, ao som de uma trilha sonora excepcional, assinada por Cyril Morin, me peguei pensando que, ao fim e ao cabo, o que fica é a certeza – que tanta gente boa já teve muito antes de mim e de Eran Riklis, mas que ele expressa de maneira genial com seu filme – de que os Estados, as ideologias servem é para estragar a vida das pessoas. Que as pessoas são muito mais importantes que essas estruturas loucas, imbecis, paquidérmicas, jurássicas, que sustentamos com nossos impostos e que nos entregam de volta, na melhor das hipóteses, serviços da pior qualidade, burocracia, problemas, dificuldades, encheção de saco.
Claro, o filme fala de diversos outros temas importantes. A situação específica do Oriente Médio, a difícil, duríssima vida das pessoas que moram junto às fronteiras de Israel com os países árabes, mesmo nos períodos em que não está havendo guerra aberta ou conflitos específicos, locais. O expansionismo do Estado israelense, que foi anexando terras antes pertencentes a seus vizinhos.
Mas não são apenas os temas abertamente políticos que o filme aborda. Fala também das relações familiares, o machismo que ainda persiste em diversas culturas, as tradições religiosas que se intrometem na vida das famílias e as fazem sofrer, as dificuldades no relacionamento entre país e filhos em um mundo em mudança acelerada, o valor e a importância da amizade, do companheirismo, da solidariedade.
Mas, ao fim, no fundo, no fundo, fica este gostinho: os Estados são uma merda que só servem para infernizar a vida das pessoas.
Os drusos, habitantes da terra de ninguém, nacionalidade “indefinida”
Exatamente como no filme Sob o Céu do Líbano, A Noiva Síria focaliza uma comunidade de drusos, a ação se passa numa região próxima da fronteira de Israel e trata de um casamento em que o noivo está de um lado da fronteira e a noiva do outro. Sob o Céu do Líbano é de 2003, um ano antes deste filme aqui. A comparação entre os dois pára aí; A Noiva Síria é absolutamente mais bem concebido, mais bem feito que o anterior. Em todos os sentidos, o filme do israelense Eran Riklis é superior ao da libanesa Randa Chahal Sabbag.
Até mesmo num pequeno detalhe, que nem tem a ver com arte, com cinema, mas afinal tem importância: a libanesa não se deu ao trabalho de explicar nada a respeito dos drusos – e isso faz falta para os espectadores de países distantes daquela realidade. Depois de ver Sob o Céu do Líbano, fui saber que os drusos são assim meio como a terra de ninguém que existia entre as trincheiras inimigas durante a Primeira Guerra Mundial – não têm a simpatia nem dos muçulmanos nem dos judeus.
Aqui, a explicação é dada numa legenda, bem no início do filme: a ação se passa em Majdal Shams, a maior cidade drusa localizada nas proximidades da fronteira entre Israel e a Síria; Majdal Shams fica nas Colinas de Golan, que pertenciam à Síria e foram anexadas por Israel em 1967. Há drusos que têm simpatia por Israel e outros que são leais à Síria; em seus documentos de identidade sua nacionalidade aparece como “indefinida”.
Toda a ação do filme se concentra em um único dia, o do casamento de Mona (Clara Khoury), uma jovem drusa que mora em Majdal Shams – portanto, território hoje ocupado por Israel – com Tallel (Dirar Suleiman), um rapaz que trabalha como ator numa emissora de TV de Damasco, a capital síria. O noivo virá de Damasco até a fronteira para receber a noiva; esta, assim que atravessar a fronteira e entrar na Síria, não poderá mais voltar a pisar na cidade em que vive sua família.
Uma grande família, a da noiva
Aos poucos o espectador vai conhecendo e entendendo a família da noiva Mona. Ela é muito ligada à irmã mais velha, Amal (interpretada pela maravilhosa Hiam Abbass, na foto, que faz o papel principal em Lemon Tree). Amal é na verdade a protagonista central desta história que tem muitos personagens; é uma mulher forte, inteligente, educada, esclarecida; casou-se cedo, seguindo a tradição de seu povo, sua cultura, e teve duas filhas, agora adolescentes. Amal não está feliz no casamento com Amin (Adnan Trabshi); não foi uma união por amor, e sim, conforme a tradição, arranjado; ele é muito mais conservador do que ela, machista; ela quer liberdade, quer fazer faculdade, agora que as filhas estão criadas.
O pai de Amal e da noiva Mona, Hammed (Makran Khoury), é um homem bem sucedido materialmente, tem uma casa excelente, em especial para os padrões do lugar; é um militante pró-Síria, já esteve preso pelas autoridades israelenses durante um bom tempo. Está proibido pela polícia israelense de participar de atos públicos – e naquele exato dia haverá uma grande manifestação em Majdal Shams de apoio ao novo presidente sírio, Bashar al-Assad, que assumiu o posto, em 2000, depois da morte de seu pai, Hafiz al-Assad, que ficou 30 anos no poder; está proibido também de se aproximar da fronteira até onde a filha noiva será levada.
Além das duas moças, Amal e a noiva Mona, a família tem três irmãos. Um deles mora na Síria, e estará do outro lado da fronteira aguardando a irmã. Outro irmão, Marwan (Ashraf Barhom), é um bom-vivant, um trambiqueiro e mulherengo, que naquele mesmo dia do casamento está chegando de volta a Israel após uma viagem à Itália; saberemos lá pelo meio do filme que ele namorou Jeanne (Julie-Anne Roth), uma garotinha francesa que trabalha para a ONU e estará encarregada de levar a documentação da noiva para que ela faça a travessia da fronteira, primeiro pelo posto de aduana israelense e depois pelo sírio.
O irmão mais velho, Hattem (Eyad Sheety), havia se mudado para a Rússia oito anos antes, onde se casou com uma russa Evelyna (Evelyn Kaplun) e teve um filho, agora com uns sete anos. O pai não o perdoa pelo casamento com uma pessoa de outra cultura, de outra etnia; de fato, Hammed, o pai, recebe nesse mesmo dia a visita dos líderes da comunidade, que o advertem: caso a estrangeira vá ao almoço do casamento, ele mesmo, Hammed, embora seja um membro proeminente da comunidade, será banido.
Com talento, vão sendo mostradas várias histórias
Como se vê, a situação é complexa, complicada, difícil. É um angu de caroço – e muito caroço. São muitos personagens, muitos dramas, há a coisa política pairando no ar, vai haver manifestação de rua, há vários conflitos familiares.
O diretor Eran Riklis e seu co-roteirista Suha Arraf fizeram um trabalho absolutamente brilhante. Todas essas várias histórias vão sendo mostradas lado a lado, com um domínio absoluto da narrativa; vemos todos aqueles personagens e os compreendemos; são personagens multifacetados, de carne, osso, sentimentos – não figuras arquetipais, simples, monolíticas. Todas as interpretações são ótimas, todo o elenco é afiado. Naturalmente, Hiam Abbass se sobressai, brilha mais – não só porque é o centro da narrativa, mas por causa de seu talento descomunal. É uma atriz fantástica.
O tom do filme é sério – afinal, ele trata de assuntos sérios, importantes, pesados –, mas não sisudo. Há momentos com um suave, bem suave toque de humor. A Noiva Síria ganhou sete prêmios e teve 13 outras indicações – na Itália, na Bélgica, em Israel, no Canadá.
O filme demonstra a todo momento ser obra de um cineasta maduro, com pleno domínio da linguagem – Eran Riklis nasceu em 1954, estudou cinema na Inglaterra, fez seu primeiro filme em 1984, On a clear day you can see Damascus, um thriller político baseado numa história real; dirigiu curta-metragens, filmes publicitários e séries de TV. Vive em Tel Aviv. Que a gente possa ver os demais filmes que ele fez – na 2001, uma locadora que costuma ter tudo, só há os DVDs deste filme aqui e de Lemon Tree. E que Eran Riklis faça muitos filmes ainda. Mais uma vez, tiro o chapéu para ele. O bicho é muito, muito bom de serviço.
A Noiva Síria/The Syrian Bride/Ha-Kala Ha-Surit
De Eran Riklis, Israel-França-Alemanha, 2004
Com Hiam Abbass, Clara Khoury, Makram Khoury, Adnan Trabshi, Dirar Suleiman
Argumento e roteiro Eran Riklis e Suha Arraf
Música Cyril Morin
Produção Eran Riklis, Neue Impuls, France Cinéma Productions
Cor e P&B, 97 min
****
MARAVILHOSO.
onde posso adquirir esse filme?
Assisti este filme já faz um tempinho e gostei muito. É primoroso.
É um filme que retrata uma realidade duríssima de uma forma leve e sensível.
Acredito que há duas formas de assisti-lo: com olhos críticos, apreciando todas as nuances da história, os dramas pessoais que revelam o drama de dois povos separados pelo ódio ancestral que ressurge a cada conflito; e com olhos ingênuos, que veem apenas um história gostosa, com bela fotografia e um toque de humor simples.