4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 1999: Um dos melhores filmes que vi nos últimos tempos – e olha que tenho visto muitos filmes, nos últimos tempos. Dá vontade de ver de novo assim que termina. É talvez o filme político americano mais ousado, mais corajoso, mais iconoclasta, mais irreverente – e mais liberal, no sentido americano da palavra – progressista, avançado.
Goza todas as instituições e organizações possíveis e imagináveis – o establishment político, as grandes corporações, as relações sujas entre um e outra, a indústria do cinema, a mídia, os pretos, os judeus, os ricos, os drogados. É assim uma espécie de cruzamento da coragem de Bob Roberts com o idealismo humanista de Frank Capra – e, não por coincidência, o neto dele, Frank Capra III, é um dos produtores executivos.
O filme começa com um texto apresentado em dois quadros – ao fundo, vê-se o Capitólio. O trecho do primeiro quadro descreve a situação das eleições presidenciais de 1996 – tudo fato histórico. A segunda parte do texto é a ficção – introduz ao espectador um veterano senador democrata da Califórnia, que dentro de alguns dias disputa com um outro a indicação do partido para concorrer a mais um mandato. O candidato, Jay Bullworth (interpretado pelo próprio Warren Beatty, que dirigiu o filme e foi o co-autor do roteiro), está em seu escritório no Senado assistindo a um discurso seu, gravado em vídeo, em diversas tentativas de achar o tom certo. É um discurso dúbio, no muro – e em mais dez minutos o espectador terá a exata noção de que estamos diante de um antigo liberal hoje tentando “suavizar” seu discurso, tentando adequá-lo aos tempos conservadores, de, por exemplo, menos dinheiro para a Previdência Social. É um velho liberal democrata (a câmara passa por fotos dele ao lado de Bob Kennedy, de líderes negros da luta pelos direitos civis) com um discurso mais para republicano.
Bullworth – veremos a seguir – faz uma espécie de pacto de Fausto; vende a alma ao diabo, personificado por um lobista das companhias seguradoras, que querem evitar uma lei federal que as obriga a fazer seguros para os pobres, desempregados, desvalidos, deserdados. Vende a alma literalmente: em troca de um seguro de vida de US$ 10 milhões, para a filha única, promete lutar contra a lei, em favor dos interesses das corporações. Em seguida, contrata alguém para assassiná-lo durante os dias seguintes, os dias que o separam da indicação do candidato democrata à vaga no Senado.
Ao descer do avião em Los Angeles, vindo de Washington, no entanto, ele é apossado por uma vontade forte, juvenil de viver mais um pouquinho – e, já que está vivo, resolve fugir do script, e ser verdadeiro, falar o que vem à telha. Nesse processo, em um encontro com a comunidade de Hollywood, diz a ela que os filmes que ela produz são uma merda; goza os judeus e seu pavor dos árabes, seus medos ancestrais; expõe as mazelas das relações promíscuas entre grandes corporações e a política; em uma igreja de negros diz claramente que os políticos só procuram a comunidade negra para fazer promessas, na época das eleições, e depois somem. Nessa igreja, vê pela primeira vez uma negra estonteantemente bonita, Nina (Halle Berry), e passa a levá-la, juntamente com algumas conhecidas dela, aos compromissos seguintes.
Nina o faz querer viver, e se arrepender de ter feito o pacto com as corporações, as grandes empresas de seguro. Tenta desesperadamente cancelar a empreitada, mas o homem a quem encomendou sua própria morte tem um ataque cardíaco. O espectador percebe, antes que o personagem de Bullworth o faça, que Nina na verdade está trabalhando a mando dos assassinos contratados por ele próprio.
O novo modelo de Bullworth – a honestidade total, o politicamente incorreto – a princípio assusta seu staff e os jornalistas que cobrem a campanha. Mas eles logo percebem que o figurino é bom, capaz de atrair votos.
A situação permite excelentes piadas, entremeadas com um clima de thriller – há um homem misterioso que persegue Bullworth, e cujas intenções o espectador só saberá quase ao final. O senador vai parar na casa de Nina, num gueto de pobres, o que dá espaço para novas sátiras, piadas fantásticas.
Ao final, temos delineado o clássico final feliz à la Capra – os bons acabam vencendo, os males da sociedade podem ser enfrentados com a coragem e a determinação dos ricos bons, finalmente unidos aos pobres. Mas aí o diretor Beatty, como o seu personagem, fugirá do script.
Um brilho. E Beatty ainda colocou duas feras do que foi o melhor cinema político do mundo, o italiano, para ajudá-lo na sua metralhadora giratória contra as hipocrisias do sistema – o diretor de fotografia Vittorio Storaro e Ennio Morricone, que, genialmente, nos créditos finais, mistura rap e a melodia intensa típica de sua carreira brilhante. Storaro foi o fotógrafo de quase todos os filmes de Bertolucci, e de vários de Francis Ford Coppola, e já havia trabalhado com Beatty em Reds e Dick Tracy.
Politicamente Incorreto/Bullworth
De Warren Beatty, EUA, 1998.
Com Warren Beatty, Halle Berry, Don Cheadle, Oliver Platt, Paul Sorvino, Jack Warden, Isaiah Washington, Christine Baranski, Amiri Baraka
ArgumentoWarren Beatty
Roteiro Warren Beatty e Jeremy Pikser
Música Ennio Morricone
Fotografia Vittorio Storaro
Cor, 108 min
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Um comentário para “Politicamente Incorreto / Bullworth”