Nascido para Matar / Full Metal Jacket


4.0 out of 5.0 stars

Texto publicado na revista Afinal de 19 de janeiro de 1988: O recruta Joker é o único dos membros de sua turma que ousa tentar reagir à enxurrada de ordens e impropérios com que o sargento instrutor se apresenta, logo no início dos treinamentos – mas, até por isso mesmo, é promovido a líder do grupo e, na prática, entrega-se à lavagem cerebral imposta a todos os futuros fuzileiros navais. Mais tarde, no Vietnã, é capaz de manter um aguçado espírito crítico e uma boa dose de humanidade – mas, ao mesmo tempo, se diz entediado quando passa um dia sem ver sangue.

Mais ainda: traz, no capacete, as palavras Born to Kill – nascido para matar, a essência prática das duríssimas lições do período de treinamento -, mas, ao mesmo tempo, usa na jaqueta um button com o emblema hippie da paz. Questionado sobre isso por um oficial, responde: “Acho que quero mostrar a dualidade dos homens”.

Stanley Kubrick, o mais lendário dos diretores de cinema do mundo, um personagem tão mitológico quanto Orson Welles, não gosta de dar entrevistas e, especialmente, detesta quando lhe perguntam sobre o significado de seus filmes. “Se Leonardo Da Vinci tivesse escrito, embaixo da sua obra, que aquela dama sorri docemente porque tem dentes podres, nós apreciaríamos a Monalisa até hoje?”, indignou-se, certa vez. Revolta-se contra a descrição, segundo ele corrente hoje na imprensa americana e européia, de que seu novo filme seja “a história da dualidade dos homens”. Mas é, na verdade. Nascido para Matar/Full Metal Jacket (com estréia nacional nesta quinta-feira, 21 (de janeiro de 1988) é isso – e muito mais. É, sobretudo, algo como subir a um ringue para lutar contra Mike Tyson, e ser nocauteado duas vezes.

         Poucos e ótimos

afull1A imensa aura de lenda que se criou em torno de Stanley Kubrick tem a ver, basicamente, com a quantidade – mínima, ínfima – e a qualidade – estupenda – de seus filmes, mas foi recebendo, ao longo dos anos, muitos outros complementos. De fato, não há caso, na história do cinema, e especialmente entre os grandes cineastas, de uma obra tão pouco extensa. Em 34 anos de carreira (faz 60 anos no próximo mês de julho de 1988), dirigiu apenas 12 filmes. O intervalo entre cada nova obra e a anterior só tem feito crescer: nos últimos 23 anos, foram apenas seis filmes. Nascido para Matar terminou de ser produzido em 1987, nada menos que oito anos depois do filme anterior, O Iluminado/The Shining, 1979.

 Em compensação, sua filmografia escassa é uma reunião de clássicos, dos mais variados gêneros – Kubrick passeia por todos, sem qualquer constrangimento. Dr. Fantástico/Dr. Strangelove or How I Learned no Stop Worrying and Love the Bomb, 1964, é um jamais igualado manifesto antiguerra nuclear, sob a aparência de uma fábula de humor negro. 2001, Uma Odisséia no Espaço, 1968, é o exemplo mais bem acabado de maturidade da ficção científica. Laranja Mecânica/A Clockwork Orange, 1971, é uma obra-prima pessimista sobre a violência da sociedade de um futuro próximo. Barry Lyndon, 1975, é um primor de reconstituição da sociedade inglesa no século XVIII. O Iluminado/Shining é um marco do cinema de horror. Glória Feita de Sangue/Paths of Glory, 1957, é um absoluto clássico dos filmes de guerra, em um violentíssimo ataque aos militares que ficou 17 anos inédito em um país democrático como a França (a ação se passa na França da Primeira Guerra Mundial). E mesmo Spartacus, 1960, que Kubrick não reconhece como um filme inteiramente seu (ele pegou o projeto já em andamento, e o produtor e astro Kir Douglas andou dando umas mexidas na montagem final) é o que de melhor se fez em superespetáculos sobre a antiguidade.

         Cuidados extremos

afull2Foi justamente depois da experiência de Spartacus que Kubrick, um nova-iorquino do Bronx, deixou os Estados Unidos para nunca mais voltar, mudando-se para a Inglaterra, e passou a se responsabilizar pessoalmente por suas obras, em todas as suas fases. Não permite que se exiba um filme seu em qualquer país do mundo se a censura cortar qualquer cena, por menor que seja. Ele e sua equipe supervisionam diretamente os trabalhos de dublagem nos vários países. (O Iluminado chegou a ser exibido no Brasil dublado sob a supervisão de Nélson Pereira dos Santos, escolhido para a tarefa pelo próprio Kubrick.) Mais ainda: examinam as cópias que são distribuídas nos vários países. (Cópias brasileiras de Barry Lyndon tiveram que ser retiradas dos cinemas por ordem de sua equipe, por estarem com imperfeições.) Mais ainda: supervisionam até mesmo os cartazes publicitários distribuídos nos grandes países. Para a estréia de Laranja Mecânica em Nova York, chegou até mesmo a mandar pintar parte das paredes de um cinema (a parede perto da tela era branca e, segundo ele, isso causava reflexos claros na tela).   

Isso são fatos. Criaram-se, naturalmente, histórias fantasiosas em torno de Kubrick, que ele se apressa a desmentir. Não é verdade, por exemplo, a história segundo a qual ele não permite que seu motorista passe de 60 quilômetros por hora. (Mas ele não desmente, por exemplo, o seu medo de viagens de avião, que o leva a ficar praticamente recluso na Inglaterra – vive nos arredores de Londres, com a mulher, a ex-atriz e hoje pintora Christiane Harlan, com quem teve três filhas.) Nega, igualmente, que seu perfeccionismo mitológico o faça rodar cada tomada cem vezes. Diz que depende dos atores: se um ator sabe direitinho as suas falas, e diz o que tem que dizer com a emoção necessária, e não simplesmente recitando um texto decorado, cada tomada pode ser repetida apenas até umas dez vezes.

         Quando há o milagre

 Nascido para Matar estreou nos Estados Unidos em junho passado (1987) – alguns meses, portanto, depois de Platoon, a grande obra do ex-combatente Oliver Stone que foi considerado o filme definitivo sobre a guerra do Vietnã, fez imenso sucesso de bilheteria e foi o grande ganhador do Oscar do ano passado. Oliver Stone passou sete anos tentando achar quem topasse financiar um filme sobre o Vietnã – mas Nascido para Matar não poderia jamais ser definido como um filme que procurou seguir a onda de revival do tema provocada por Platoon. Kubrick dedicava-se a seu novo projeto há um longo tempo – como é de seu feitio.

Ele levou um ano para escrever o roteiro, outro ano de preparativos, ou pré-produção (escolha de locais de filmagens, do elenco), 20 semanas para rodar o material – com uma interrupção de quatro meses e meio, devido a um grave acidente automobilístico com o ator Lee Ermey – e nada menos que um ano de montagem e toda a pós-produção. Ou seja: quase quatro anos, no total.   

De qualquer forma, quando perguntaram a Kubrick por que ele não fez um filme sobre o Vietnã mais cedo, ele respondeu: “Unicamente porque eu não achei um bom livro mais cedo”.

É outra característica exemplar de Kubrick, e que o afasta totalmente dos demais grandes cineastas, como Woody Allen, Ingmar Bergman ou Federico Fellini: Kubrick não trabalha com argumentos próprios. “Não estou muito certo se seria capaz de escrever um roteiro original”, disse em entrevista à redatora-chefe da revista francesa Première. Prefere adaptação de livros. Lê demais, de tudo, à procura de alguma coisa pela qual se apaixone profundamente. “Há poucos bons livros, e os bons livros são difíceis de adaptar sem que sejam estragados”, diz. “Achar uma boa história que se transforme em um bom filme é realmente um milagre. Quando esse milagre acontece, eu faço um filme.”

O milagre que deu origem a Nascido para Matar é um pequeno livro de 130 páginas, “escrito de uma forma muito direta, com frases curtas, que contém afirmações simples”, chamado The Short Timers, de Gustava Hasford, que foi fuzileiro naval e correspondente de guerra no Vietnã. Kubrick se encantou com “a originalidade, a beleza de estilo, a simplicidade”. Trabalhou a maior parte do tempo sozinho na feitura do roteiro; depois, teve a colaboração de Michael Herr – que trabalhou também no outro filme genial sobre a guerra do Vietnã, Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola – e, finalmente, nas três últimas semanas antes do início das filmagens, com o próprio autor do livro.

         Como na vida real

afull3Para a escolha do elenco, Kubrick pediu que jovens atores lhe enviassem fitas de videocassete, em que cada um falava um pouco de si, e representava uma cena qualquer, de sua livre escolha. O próprio diretor viu pessoalmente cerca de 800 fitas, antes de definir-se pelo elenco de apoio. Foi através de uma dessas fitas de vídeo que Kubrick chegou ao ator Vincent D’Onofrio, que faz o fundamental papel do recruta Pyle. (Quem viu O Iluminado certamente notará como Vincent D’Onofrio faz lembrar, em uma cena crucial do novo filme, a interpretação de Jack Nicholson naquele outro.)

O papel do recruta Joker, o narrador da história, ficou com Matthew Modine (ao centro na foto acima), que trabalhou em Asas da Liberdade/Birdy, de Alan Parker. Para o papel do sargento instrutor Hartman, Kubrick contou com uma grande dose de sorte: o sargento é interpretado – maravilhosamente – por Lee Ermey, que foi, ele mesmo, na vida real, um sargento instrutor de fuzileiros navais. Lee Ermey foi inicialmente contratado como consultor técnico, por seu conhecimento prático do assunto, e acabou ajudando até mesmo na elaboração dos diálogos. Boa parte dos xingamentos que o sargento Hartman dirige aos recrutas, violentíssimos, e às pencas, foi criada pelo próprio Ermey, com sua experiência de caserna da vida real.

         Sem maniqueísmos

Se filmes como Os Boinas Verdes e os Rambos da vida são uma exaltação escancarada à intervenção americana no Vietnã, O Franco Atirador/The Deer Hunter mostra os soldados americanos como bons rapazes patrióticos e os vietcongs como sanguinários, Apocalypse Now é um painel fantástico, tresloucado, delirante sobre o absurdo da guerra, e Platoon, com toda sua carga de crueza e realismo, mostra os lados opostos de um sargento bárbaro e psicopata e um sargento bom, honesto, de grande coração, Nascido para Matar vem para acabar definitivamente com todos os maniqueísmos. Quando Kubrick encantou-se com o livro de Gustav Hasford, ele notou que da obra não se poderia dizer, simplificadamente: é a favor da guerra, ou é contra a guerra. “Fazer um filme de guerra para dizer simplesmente que não deveria ter havido guerra é insuficiente”, diz Kubrick. “Até os generais estão de acordo com esta afirmativa.”

Em Nascido para Matar, não há os bons e os maus – há seres humanos, essa complexa mistura de todas as coisas, que cria obras de arte perenes e se encanta com o poder dos pentes de balas de cápsula de metal (o full metal jacket do título em inglês). E talvez por isso mesmo assistir ao filme seja como enfrentar os punhos de Mike Tyson – talvez ainda mais doloroso que ver as verdades de Apocalypse Now ou de Platoon.

A narrativa parece propositadamente dividida em três atos, ou três movimentos. Como em um concerto, o segundo movimento é o mais suave dos três. Ao fim do primeiro, assim como quase ao fim do terceiro, Kubrick joga o espectador na lona.

afull4O primeiro movimento é o treinamento de um grupo de recrutas dos fuzileiros navais. Nada do que o cinema já mostrou, em seus libelos antimilitaristas mais escancarados, em termos de esmagamento das individualidades de jovens pela máquina que ensina a matar, se compara ao que Kubrick vai mostrando com uma crueza desavergonhada. É tudo em tom maior, literalmente. O sargento instrutor jamais fala – ele berra o tempo todo, insulta, arrasa, destrói os recrutas. Retira-lhes até mesmo os nomes. Mas não transparece a intenção de mostrar que ele é um masoquista, um louco varrido – nem que ele é um grande homem. Mostra-se que aquele é o seu trabalho, é para isso que o Estado o paga: para transformar jovens de 18 anos de idade em exímios assassinos.

O segundo movimento é quase um entreato. O ex-recruta Joker já é um sargento, está no Vietnã, mas não está na linha de fogo; trabalha no Star and Stripes, o jornal dirigido aos soldados americanos e encarregado de passar a impressão de que a guerra está indo bem.

Joker vai experimentar a linha de frente no terceiro movimento, nas ruínas de Hué, durante a ofensiva do Tet, em 1968, que começou a mudar os rumos da guerra. Reencontra-se com um antigo colega dos tempos dos treinamentos, Cowboy; seu pelotão avança pelas ruínas da cidade em direção ao local em que um franco-atirador vietcong consegue abater os americanos. É o momento do segundo nocaute do filme – e não teria sentido descrevê-lo -, uma dilacerante metáfora sobre o que foi a invasão do Vietnã por quase 3 milhões de bem armadíssimos soldados da nação mais poderosa do planeta.

Kubrick entende que a guerra do Vietnã terá servido “para ilustrar, uma vez mais, que hoje nenhum país pode ocupar um outro, se esse outro não quer saber dele”. Ao custo de dezenas de milhares de mortos, os soviéticos estão aprendendo hoje esta lição que os americanos começaram a aprender no Vietnã, e já falam na data de saída do Afeganistão. Quem vir Nascido para Matar haverá de botar essa lição na cabeça – ao custo de enfrentar os punhos de Mike Tyson.       

Nascido para Matar/Full Metal Jacket

De Stanley Kubrick, Inglaterra-EUA, 1987

Com Matthew Modine, Adam Baldwin, Vincent D’Onofrio, R. Lee Ermey, Arliss Howard

Roteiro Stanley Kubrick, Michael Herr e Gustav Hasford

Baseado no livro The Short Timers, de Gustav Hasford

Música Vivian Kubrick

Produção Natant, Stanley Kubrick Productions, Warner Bros. Estreou em SP 21/1/1988

Cor, 116 min

****

19 Comentários para “Nascido para Matar / Full Metal Jacket”

  1. meu sonho até hj é ver O Iluminado e 2001 no cinema. não tem preço! q Matrix, q senhor dos anéis q nda. é kubrick na cabeça fazendo filmes pra se ver no poltrona, no escurão do cinema

  2. ps: será q existe algum livro ou mais matérias q falam de curiosidades como essas do kubrick apresentadas aqui?

  3. Privilégio ser filha de Sérgio Vaz.
    Assisti este filme pela primeira vez quando tinha treze, quatorze anos, com meu pai.
    Somente voltei a ver o filme hoje, aos trinta e quatro anos de idade.
    Me lembro de ter me impressionado muito com o filme, da primeira vez. Lembro da conversa que tivemos quando acabamos de ver o filme.
    A leitura que fiz da cena final, naquela época, foi de como era louco um país enviar um monte de crianças para uma guerra…
    Meu pai, sabiamente, disse que havia outra leitura para aquela cena final, não tão ligada à questão da idade dos soldados, mas sim da necessidade daqueles caras, naquele contexto, fazerem uma conexão com o que eles deixaram pra trás, algo familiar, algo de casa.
    O filme impressionou muitíssimo, também, desta segunda vez, já sem tanta ênfase na idade das pessoas.
    Acabamos de ver o filme, marido Carlos e eu, e é claro, viemos ao site!
    Sensacional o texto ter sido escrito na época do seu lançamento no Brasil, fazendo uma ligação tão clara entre o filme e a realidade de então.
    Pena que os americanos parecem não ter entendido nada do que Kubrick queria dizer com este filme estupendo… tá ai o Afeganistão e o Iraque que não me deixam mentir!

  4. Não sou apreciador de Stanley Kubrick, os seus filmes são muito bem feitos, muito bem executados, gasta mais de 100 takes em muitos planos, mas não me entusiasmam, acho-os frios, sem emoção.
    Gosto bastante de A Clockwork Orange e de Shining, principalmente do primeiro.
    O tão celebrado 2001 dá-me vontade de sumir a toda a velocidade, no entanto, quando apareceu em 1968 fiquei babado, os efeitos especiais eram fenomenais, mas com o tempo fartei-me.

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