4.0 out of 5.0 stars
Texto para a revista Afinal de 14 de outubro de 1986: Vinte anos atrás era um fiapo de história. Um homem e uma mulher encontravam-se na vida; apaixonavam-se, desencontravam-se na hora da cama, separavam-se, encontravam-se de novo. Vinte anos depois são muitas histórias que se entrecruzam e se modificam.
Há a história daquele mesmo homem, a história daquela mesma mulher, as histórias de cada um deles com seu atual amante, as histórias dos filhos de cada um deles, a história de um estuprador que foge de um hospital psiquiátrico. E há diversos filmes dentro do filme.
(Os trechos em itálico deste texto foram acrescentados agora, para a publicação neste site.)
Claude Lelouch, o cineasta, não mudou nada, desde Um Homem, Uma Mulher, Palma de Ouro no Festival de Cannes e Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1966, até este Um Homem, Uma Mulher Vinte Anos Depois/Un Homme et Une Femme Vingt Ans Déjà, com estréia nacional nesta quinta-feira, dia 16 (de outubro de 1986). O estilo é o mesmo, personalíssimo, marca registrada, a câmara ágil, rápida, inquieta, que jamais fica parada, que persegue os atores num jogo incessante, sempre carregada pelo próprio diretor, que é também o cameraman de seus filmes.
Claude Lelouch, o contador de histórias, mudou muito, ao longo destes 20 anos. Continua contando histórias de amor, de encontros e desencontros, sempre escritas por ele próprio, que é também o argumentista e roteirista de seus filmes. “Só existem duas ou três histórias na vida”, diz. “Mas as variações são infinitas.” Agora, porém, mesmo quando está contando uma história de amor mistura um punhado infindável de outras histórias, e tenta captar a relação das histórias de seus personagens com a História. “Eu acho que meus filmes têm ficado mais literários”, diz, em entrevista a este jornalista aqui e a um crítico da Folha de S. Paulo, no Maksoud Plaza, ao lado da sua bela mulher da época, Marie-Sophie Pochat, durante viagem para a divulgação do filme.
Caminho inverso
Claude Lelouch entende que o cinema tem sido um escravo da literatura. Chega a dizer que o cinema evoluiu pouco, desde que, em 1927, aprendeu a falar; acha que o essencial da linguagem cinematográfica foi criado antes. “A partir de 1929 (a França atrasou-se um pouco na adoção dos filmes falados), o cinema está mais a serviço da literatura do que a seu próprio serviço.” A maior parte dos cineastas, avalia, descobriu a literatura antes do cinema, como é o caso, por exemplo – cita ele – dos diretores da nouvelle-vague. “O meu caminho é completamente inverso. Eu venho do cinema para a literatura.”
De fato, para Lelouch primeiro veio a câmara, depois vieram as histórias. A paixão pelo cinema que herdou do pai – industrial judeu do ramo têxtil nascido na Argélia que emigrou para a França antes da Segunda Guerra Mundial, fanático filmador de cenas familiares -, Lelouch passou a exercitar no seu trabalho como cameraman. Durante três anos fez cinejornalismo, filmando cenas reais em diversos países, inclusive o de seu pai, durante a guerra da Argélia. Era o final dos anos 50, início dos anos 60, a época em que Jean-Luc Godard decretava que “a fotografia é a verdade, o cinema é a verdade 24 quadros por segundo”. Hoje Claude Lelouch entende que está muito mais perto da verdade contando as histórias de seus personagens do que quando filmava cenas reais.
“Na guerra da Argélia”, contou, “eu vi uma metralhadora que atirava, e filmei aquela metralhadora. Três horas mais tarde houve uma explosão, e eu filmei. Dois dias depois, houve outra explosão. Quando minhas imagens foram mostradas ao público, elas haviam sido montadas em dois segundos: tátátátátátátátátátátátá… Agora, isso é uma mentira. Acredito que, com a ficção, eu posso ir mais longe na verdade das coisas. Eu disse mais coisas verdadeiras quando fiz Um Homem, Uma Mulher do que disse quando fiz as minhas reportagens.
Feito depois de cinco filmes que não foram percebidos pelo público (dois deles, Le Propre de l’Homme, de 1960, e Les Grands Moments, de 1965, Lelouch abomina tanto que destruiu todas as cópias), Um Homem, Uma Mulher foi um sucesso avassalador em todo o mundo. Quando Lelouch foi receber a Palma de Ouro em Cannes – a última, aliás, conquistada pelo cinema francês até a época deste texto, 1986 -, brincou que voltaria ao festival 20 anos depois para mostrar uma continuação do filme. Este ano (1986) o filme foi mostrado, hors concours, na 39ª edição do festival.
Nunca, na história do cinema (até então), um diretor teve a oportunidade de fazer uma continuação de um filme com tantos anos de distância um do outro, usando os mesmos atores para interpretar os mesmos papéis. Só poderia mesmo ser Lelouch, o cineasta que adora brincar com encontros e desencontros – em Toda Uma Vida, por exemplo, sua obra de 1975, ele discorre sobre a história do século, ao mostrar a trajetória de um homem e uma mulher que só vão se encontrar exatamente na última seqüência do filme. Para promover o reencontro, 20 anos depois, de Jean-Louis Duroc (Jean-Louis Trintignant), em 1966 piloto de corrida, com Anne (Anouk Aimée), em 1966 continuísta de cinema, Lelouch desta vez brincou também com a memória dos espectadores.
No filme de 1966, depois de um desencontro na cama de um hotel, em Deauville, Anne volta a Paris de trem. Jean-Louis volta em seu carro, e a espera na estação de trem. A cena final é dos dois se abraçando. Viveram felizes para sempre, conclui o espectador.
Nada disso, diz hoje Um Homem, Uma Mulher Vinte Anos Depois. Na verdade, Jean-Louis e Anne não continuaram sua história; separaram-se pouco depois, e nunca mais se viram, desde então. Hoje, Jean-Louis, 20 anos mais velho, ainda mantém o amor pelos carros de corrida; é organizador de competições esportivas como o rali Paris-Dacar. Seu filho, Antoine (interpretado pelo mesmo Antoine Sire que, criança, fez o papel do filho de Jean Louis na primeira versão, e que Lelouch conseguiu encontrar 20 anos depois), é corredor em barcos e casa-se com uma bela moça, que tem uma irmã ainda mais bela e mais jovem (interpretada por Marie-Sophie Pochat, a atual mulher de Lelouch, e que veio com ele ao Brasil no mês passado – setembro de 1986 – para divulgar o filme), por quem Jean-Louis se apaixona.
Anne continuou trabalhando no cinema; agora é uma produtora poderosa, que interfere em todas as fases da feitura de seus filmes. Tem um namorado que é apresentador de um importante programa de TV. Sua filha Françoise virou atriz de cinema, trabalha nos filmes produzidos pela mãe, está casada – não muito bem -, tem uma filha. Françoise é interpretada por Evelyne Bouix, que é extraordinariamente parecida com Anouk Aimée e, para manter o clima lelouchiano emaranhado de encontros e desencontros, já foi casada na vida real com o diretor.
O reencontro dos dois amantes desunidos em 1966 não é simples – o contador de histórias Claude Lelouch agora só sabe contar histórias intrincadas, tão intrincadas quanto seus movimentos de câmara. Inclui um caso policial que é narrado na TV pelo namorado de Anne – a fuga de um estuprador de um hospital psiquiátrico; depois dessa fuga, há um assassinato diante de uma TV que exibe Disque M Para Matar, de Alfred Hitchcock, no momento em que Grace Kelly é atacada pelo assassino e o mata com uma tesoura. Inclui uma viagem pelo deserto do Saara, onde a jovem namorada de Jean-Louis tenta matá-lo e suicidar-se por sede e insolação (nos filmes de Lelouch, assim como no noticiário dos jornais populares, ainda se tenta morrer por amor). Inclui a produção de três filmes diferentes pela empresa de Anne, um deles a transposição para a tela – na forma de um musical no estilo de Jacques Demy, o outro cineasta que brinca magistralmente com encontros e desencontros – do romance vivido 20 anos antes por Jean-Louis e Anne.
Declaração de amor
A produção desse filme é que provoca o reencontro dos dois, em um restaurante. A cena é memorável. Trintignant e Anouk, belíssimos com seus 56 e 54 anos de idade, mostram rugas na pele. Jean-Louis e Anne mostram sabedoria e calma na expressão; estão mais felizes e mais sábios. Por trás de sua câmara mágica, Lelouch capta, 24 vezes por segundo, a verdade que ele quis demonstrar neste filme declaração de amor ao cinema e à passagem do tempo.
“Quando são jovens, as pessoas se angustiam mais”, diz Lelouch. “Vivem sempre em função do futuro, acham que amanhã vão fazer as coisas que planejam. Amanhã, amanhã, amanhã. Quando ficam mais velhas, vão percebendo que não dá mais para adiar. Então se angustiam menos. E a felicidade é isto: viver mais o que está acontecendo agora, o presente.”
Aos 48 anos de idade, Claude Lelouch entende que pode se dedicar mais às histórias que conta no cinema. “A câmara eu já domino, já faz parte de mim”, diz. “Agora eu posso tentar o casamento ideal, de unir o cinema à literatura.”
As reações a seu Um Homem, Uma Mulher Vinte Anos Depois não foram calorosas como vinte anos atrás. A crítica malhou – a crítica sempre malhou Lelouch, e com isso ele não se importa; perguntado se pensa na crítica quando faz seus filmes, responde com uma palavra só – “jamais”. O público da França, onde o filme estreou logo depois do festival de Cannes, no primeiro semestre, reagiu friamente: não foi um fracasso, mas esteve longe de ser um sucesso. Não faz muita diferença. Como Anne, seu personagem, Lelouch responde partindo para mais um filme.
Um Homem, Uma Mulher Vinte Anos Depois / Un Homme et Une Femme Vingt Ans Déjà
De Claude Lelouch, França, 1986
Com Jean-Louis Trintignant, Anouk Aimée, Richard Berry, Evelyne Bouix, Marie-Sophie Pochat, Philippe Leroy, Thierry Sabine, Robert Hossein, Nicole Garcia
Argumento Claude Lelouch
Roteiro Claude Lelouch, Pierre Uytterhoeven, Monique Lange e Jérôme Tonnerre
Música Francis Lai
Produção Les Films 13
Cor, 112 min.
****
Eu deveria ter vindo aqui em 29 de outubro quando coloquei minha opinião sôbre ” Um Homem Uma Mulher ” . Afinal , no índice de filmes um está logo após o outro.
E, aí, eu ficaria sabendo desse detalhe que me deixou surprêso.
Então, eles não ficaram juntos ? E eu ainda disse que a Anne não se recusou a ser feliz.
Mas, quem iría supor tal coisa ?
Não acredito que uma só pessôa, das tantas, milhões, que viram este filme pudesse imaginar isso. E voce, Sergio ?
Preciso assistir este filme para saber o real final desta história.
Deve mesmo ter sido muito legal ter feito este filme, 20 anos depois, com os mesmos atores, excetuando-se a filha da Anne, estou certo?
Para este também deste 4 estrelas então, tão ótimo quanto o primeiro.
Espero encontrar em algum site de filmes online.
Um abraço !!
Sérgio, interessante o filme, tanto como o inicial. em que o final é colocado, dentre outras cenas nessa continuação: para Anne o romance na época não é possível por que para ela o marido que já morreu há dois anos permanece vivo. Época errada então para o romance, que só pôde se concretizar 20 anos depois.
Interessante que no início do filme Jean-Louis está vivendo com uma moça linda e jovem e que é apaixonada por ele mas tem consciência de que devido à diferença de idade e de maturidade de vida não vão poder envelhecer juntos, ao contrário da maioria dos homens que casa com mulheres bem mais jovens que eles.
O reencontro dos dois com o objetivo de Anne de filmar a história deles é muito bonito e emocionante, mostrando como os dois ficaram mais sábios com o tempo: si jeunesse savait, si vieilhesse pouvait…