O Julgamento de Paris / Bottle Shock

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Nota: ★★★☆

Anotação em 2011: Este O Julgamento de Paris, no original Bottle Shock, conta uma história incrível, no sentido mais literal do termo: uma história improvável, implausível – e no entanto real.

O tema é vinho. Especificamente, os vinhos da Califórnia. Os mais ferinos poderiam dizer que é assim o segundo longa-metragem de marketing dos vinhos da Califórnia, depois do gostoso Sideways – Entre Umas e Outras/Sideways, de 2004, com Paul Giamatti e a linda Virgina Madsen. Como Sideways, esta é uma produção independente, feita fora do esquema dos grandes estúdios.

É uma história real incrível, improvável, implausível – e absolutamente interessante. Se fosse ficção, já seria gostosa. Como é verdadeira, é mais ainda.

E o filme que conta a história é leve, suave, com um sabor um pouquinho adocicado. Há dezenas e dezenas de tomadas aéreas dos vinhedos do Napa Valley, uns 60 quilômetros ao norte de San Francisco, e outras dezenas e dezenas de tomadas de cachos de uva. Dizem que se deve beber com moderação, mas o diretor de fotografia não teve medo de exagerar na quantidade de planos de fim de tarde, para exibir aquele tom dourado que fica na fina linha entre o brega e o estonteante (olha aí o exemplo na foto abaixo).

A trilha sonora inclui um monte de música dos Doobie Brothers e do Allman Brothers Band, coisas típicas do som californiano de meados dos anos 70 – a ação se passa em 1976. Seria pouco acurado historicamente se houvessem incluído canções de Kate Wolf falando dos golden rolling hills of California, porque elas são exatamente daquela época, mas ainda não tocavam no rádio – ela estava começando a carreira e ainda não era famosa. A rigor, até hoje ela não é famosa, e portanto jamais será. Mas a verdade é que, se este filme tivesse um bouquet, como os vinhos, ele lembraria aquele cheirinho maravilhoso, inigualáve, de terra, de poeira, depois de uma suave chuva, que as canções de Kate Wolf têm. Sweet songs and soft guitars.

Se, porém, usa canções californianas ou de clima californiano dos anos 70 como músicas incidentais, o filme tem uma trilha sonora original com uma pegadinha francesa. Foi uma bela sacada. O espectador menos atento provavelmente nem notará, mas a música composta para o filme poderia se confundir com música francesa.

Um dono de vinhedo perfeccionista, e um filho garotão meio hippie

A maior parte da ação se passa no Napa Valley, nos vinhedos no Napa Valley, mas há diversas sequências em Paris.

No Napa Valley, a história gira em torno dos Barrett, o pai, Jim (Bill Pullman), e o filho, Bo (Chris Pine, os dois na foto abaixo). Jim Barret é o dono de um vinhedo, o Montelena, e produz vinhos – toda aquela região, claro, é coalhada de pequenas vinherias. É um perfeccionista, compenetrado em seu trabalho: está empenhado em fazer vinhos da melhor qualidade que houver. Botou tudo o que tinha no projeto de fazer dar certo sua vinheria: veremos bem nos momentos iniciais que ele está levantando seu terceiro empréstimo no banco.

Só quase no fim da narrativa é que ficaremos sabendo o que Jim fazia no passado, antes de investir tudo o que havia juntado na vida na produção de vinhos. Até esse momento – que, naturalmente, não vou adiantar aqui –, nem mesmo fica muito claro se Jim já nasceu fazendeiro, dono de vinhedos.

O filho, Bo, é um garotão aí de uns 20 e poucos anos. Como era 1976, e era a Califórnia, Bo parece um hippie, cabelão imenso; abandonou a escola, ajuda o pai, mas é um garotão cabeça fresca, às vezes demora para aparecer para o trabalho.

Bo é muito amigo de um dos empregados do pai, Gustavo (Freddy Rodriguez), filho de fazendeiros mexicanos, ele, sim, um sujeito que cresceu em fazenda, e sabe tudo e mais um pouco sobre o cultivo de uvas, os tipos de uvas, os tipos de vinhos. É daqueles que são capazes de tomar um gole de vinho – sem ter visto o rótulo, naturalmente – e dizer o tipo, a procedência, e até mesmo a safra.

Como todo filme precisa do que os americanos chamam de love interest, um caso, uma história de amor, ou, em suma, de uma mulher no pedaço, logo aparecerá na fazenda dos Barret a pessoa chamada Sam que havia acertado ir trabalhar lá como estagiário, praticamente sem salário, para aprender o oficio. Claro que todos pensavam que Sam fosse um homem – mas a Sam que aparece é uma garota loura e linda, interpretada por Rachael Taylor. Muito prazer em conhecê-la, Rachel Taylor; apareça mais vezes, quantas vezes quiser.

E pronto, temos o love interest. Tanto Bo quanto Gustavo (e os espectadores) vão ficar de olho grande em cima de Sam.

Um inglês tão apaixonado por vinhos que até aprendeu francês

Enquanto isso, em Paris…

Um inglês apaixonado por vinhos, absolutamente apaixonado por vinhos, Steven Spurrier, radicou-se na capital do país que produz os melhores vinhos do mundo (pelo menos, é o que diz a lenda), e lá abriu uma loja de vinhos finos, uma espécie assim de Academia do Vinho. Steven Spurrier, um tipo que entrou para a história mundial dos vinhos, é interpretado por um sujeito que cai como uma luva para o papel, o veterano Alan Rickman. Rickman está perfeito como o inglês esnobe, pomposo, que ama tanto os vinhos que foi viver em Paris e até fala francês, coisa raríssima para um anglo-saxão, embora com aquele sotaque mastodôntico deles.

Mas sua Academia do Vinho não tem lá muitos fregueses. O único fiel e constante é um americano de Milwaukee, Wisconsin, Maurice (Dennis Farina, à esquerda na foto abaixo), ele também um apaixonado por vinhos, que tem uma agência de viagens ao lado da loja de Spurrier.

É Maurice que planta na cabeça de Spurrier a idéia de que, para merecer o título de Academia do Vinho, sua loja deve ter vinhos produzidos em outros locais, além da própria França. Diz ao amigo que a imprensa tem falado muito dos vinhos californianos, feitos por pequenos produtores no Napa Valley.

A primeira reação do inglês radicado na França é um nariz torcidíssimo. Spurrier diz uma frase assim: “Não é possível que um pedaço de terra perto da fumaça de Chicago produza uvas que prestem para fazer vinho”.

Ao que Maurice replica, cheio de orgulho wisconsiniano:

– “Eu sou de Milwaukee!”

Pois Spurrier vai viajar até o Napa Valley, para provar os vinhos feitos ali, e levar algumas dúzias dele de volta para a França. Sua intenção é reunir alguns dos mais famosos enólogos franceses e promover com eles uma degustação às cegas de vinhos franceses e californianos. Os enólogos dariam suas notas a cada um dos vinhos, sem saber, naturalmente, a procedência de cada um.

As generalizações são grossa asneira. As rivalidades existem de fato

Faz bilhões de anos que acho, quer dizer, que tenho a certeza de que são grandes asneiras as generalizações a respeito das pessoas das diversas nacionalidades – os franceses são assim, os italianos são assado, os espanhóis são aquilo outro. Já disse isso aqui várias vezes, e repito quantas vezes for preciso. Filmes que exageram nessas generalizações, nessas simplificações, tendem a ser bobos, ginasianos. Mas mostrar as rivalidades que existem na verdade, usar, com ironia, essas idiossincrasias que muitas pessoas têm, pode ser extremamente saboroso. Claro, é preciso dosar bem – o exagero é prejudicial.

Este O Julgamento de Paris brinca com os estereótipos na dose corretíssima. Brinca com o tão falado esnobismo inglês, com a tão famosa arrogância francesa, com a própria sensação de inferioridade que os – como diz Jim Barrett – caipiras do interior americano têm diante dos europeus. É uma boa brincadeira com esse fenômeno de amor e ódio que americanos e europeus têm uns pelos outros.

Há um deliciosíssimo diálogo quando Steven Spurrier, o inglês candidato a enólogo emérito em Paris, se encontra pela segunda vez com Jim Barrett, o fazendeiro do Napa Valley.

Jim: – “Por que será que eu não gosto de você?”

Spurrier: – “Porque você acha que eu sou um imbecil metido. E a verdade é que não sou. Sou apenas inglês, e você… Bem, você não é.”

Necessidade de carona, versão anos 2000: a bela loura mostra os peitos

Um detalhinho que faço questão de registrar, porque adoro quando um filme cita outros filmes: lá pelas tantas, o diretor Randall Miller cita uma seqüência antológica de Aconteceu Naquela Noite, do mestre Frank Capra.

No clássico de 1934, o jornalista pobre (Clark Gable) e a herdeira milionária (Claudette Colbert) estão na beira de uma estrada, e o jornalista, que se diz vivido, experiente, homem do mundo, diz que vai ensinar à moça inexperiente como se pede uma carona. Nenhum carro pára para ele. Ao que a moça levanta a saia, mostra a perna até a altura do joelho – quanta audácia, em 1935, mestre Capra! – e, claro, óbvio, o primeiro carro que passa freia de imediato.

Neste O Julgamento de Paris, o carro em que estão o garoto Bo e a linda Sam fica sem gasolina – e eles têm uma imensa urgência, precisam desesperadamente falar com Jim, o pai e patrão. Bo faz todos os sinais possíveis para os carros que passam – e ninguém pára. Ai a bela Sam dá uma de Claudette Colbert, versão anos 2000: levanta a blusa e mostra os seios. O primeiro carro que passa freia de imediato.

O espectador não vê os seios da bela Sam. O diretor Randall Miller, educado, não querendo parecer apelativo, filma a moça de costas.

Pô, Randall Miller, poderia ter dado uma mostradinha rápida…

Aliás, quem é Randall Miller?

Fui consultar o IMDb, mas poderia também ter consultado o 50 Anos de Filmes, que tem um filme dele – Baila Comigo. O cara do 50 Anos de Filmes (quem será esse babaca?) não gostou do filme, disse que é bobo. Não propriamente ruim, mas bobo.

O IMDb, muito melhor que o 50 Anos de Filmes, mostra que Randall Miller já dirigiu 20 filmes e/ou episódios de séries de TV. Não reconheci nenhum dos demais títulos. Um dos mais recentes, Nobel Son, também tem Alan Rickman, Bill Pullman e Eliza Dushku no elenco, e ainda Mary Steenburgen e Danny DeVito. Colocar no elenco de dois filmes os três mesmos atores me parece um bom indício.

Deve estar aprendendo, o Randall Miller, deve estar melhorando, depois de Baila Comigo. Este aqui é um bom filme.

Vinho é um troço tão fresco que também tem jet leg

O título original, Bottle Shock, choque de garrafa, surge numa conversa em Paris, ainda no início do filme. Spurrier, Maurice e um outro expert em vinhos conversam sobre a possibilidade de levar para a França garrafas de vinhos californianos. O expert diz que, entre a chegada dessas garrafas a Paris e o momento de beber os vinhos, é preciso que se passe algum tempo. Maurice goza: “Por quê? Os vinhos têm jet leg?” E o expert, muito sério: “Chama-se bottle shock”.

É, de fato, um filme saboroso. Para os apreciadores de vinho, e também para os que, como eu, e até o Saul Galvão antes de ficar chique, preferem uma cachaça seguida de cerveja. De qualquer marca. Se não tiver nada melhor, pode até ser Brahma ou Skol.

O Julgamento de Paris/Bottle Shock

De Randall Miller, EUA, 2008

Com Chris Pine (Bo Barrett), Alan Rickman (Steven Spurrier), Bill Pullman (Jim Barrett), Rachael Taylor (Sam Fulton), Dennis Farina (Maurice Cantavale), Freddy Rodríguez (Gustavo Brambila), Eliza Dushku (Joe), Miguel Sandoval (Mr. Garcia)

Roteiro Jody Savin & Randall Miller e Ross Schwartz

Argumento Ross Schwartz & Lannette Pabon e Jody Savin & Randall Miller

Fotografia Michael J. Ozier

Música Mark Adler

Cor, 110 min

Produção Shocking Bottle, Intellectual Properties Worldwide, Unclaimed Freight Productions, Zin Haze Productions. DVD Califórnia Filmes.

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6 Comentários para “O Julgamento de Paris / Bottle Shock”

  1. Fiquei a conhecer o nome de Kate Wolf e já andei a espreitar no YouTube e também na Amazon.
    Desconhecia completamente e para já e pelo que vi e li é (foi, morreu cedo) uma grande artista.
    Estou sempre a aprender consigo, Caro Sérgio.
    Desculpe não dizer nada do filme.

  2. Mais uma coisa em comum entre nós, caro José Luís: nosso gosto pelo folk, pela música de raiz da Inglaterra e da Irlanda.
    Acho muito interessante como nós, sendo de países tão diferentes, temos gostos tão parecidos.
    Que maravilha que você conheceu a arte de Kate Wolf e gostou dela. É uma cantora e compositora que mereceria ser muito mais conhecida do que é.
    Um abraço!
    Sérgio

  3. Adoro o assunto vinho. Achei um filme fantástico, principalmente por ser baseado em fatos. Mais interessante depois desse filme foi procurar na internet sobre a história das vinículas, tanto a do Bo que é o Chatau Montelena quanto a do Gustavo, a Gustavothrace. Interessante as palavras do personagem Steven Spurrier, quando diz: “Rompemos uma barreira. Em alguns anos estaremos provando vinhos de outros lugares como a America do Sul…..” Hoje temos a Casa Valduga, que é uma vinícula brasileira com vinhos premiados internacionalmente.
    Abraços

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