Pelos Meus Olhos / Te Doy Mis Ojos


4.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2010: Pelos Meus Olhos, filme espanhol de 2003, me pegou como uma completa surpresa: não me lembro de ter ouvido falar nada dele. E as boas surpresas são muito agradáveis. Mas o filme é muito mais que uma boa surpresa. É uma obra excepcional. Encara de frente um dos temas mais duros que há: a violência doméstica. Encara de frente – e de forma brilhante. É um filme soberbo. Duríssimo, mas extraordinário.

Pode ser falha minha não ter ouvido falar nada sobre ele. Há lançamentos demais, e muitos passam no meio das pernas da gente, como se fôssemos goleiros ruins do time do ginásio. Achei o DVD como sendo um lançamento, na prateleira de cinema europeu da 2001, seguramente uma das melhores e mais sortidas que há entre as locadoras brasileiras, se não for a melhor – embora o filme seja de 2003.

É, repito, um filme excepcional. É desses filmes que precisavam ser feitos, que fazem diferença, que são imprescindíveis.

Planos de conjunto de prédios de classe média, à noite, enquanto começam a rolar os créditos iniciais. Corte, um close de mãos de uma mulher retirando roupas do armário. Ela acorda o filho, garoto de uns 7 anos; ele quase não acorda, ela pede que ele se vista, na verdade põe sobre a roupa de dormir dele um agasalho. Treme toda, inteira, como uma vara verde. O garotinho mal acordou, mas os dois deixam o apartamento, vão para a rua. Passa um táxi, não pára. Corte, e mãe e filho estão em um ônibus. Close dos pés da mulher: ela calça chinelos de tecido, essas pantufas de ficar em casa. Mãe e filho andam na rua à noite, ela bate a campainha de uma casa, se identifica – chama-se Pilar. Uma mulher abre a porta, diz para eles entrarem, pergunta se ela está bem, o que aconteceu. É um plano americano, daqueles em que se vêem as pessoas da cintura para cima. As duas mulheres estão de pé, já dentro da casa, no hall, o garoto subiu as escadas, as mulheres estão frente à frente, a câmara está na soleira da porta, Pilar continua tremendo, e diz, a voz embargada, não contendo mais o choro:

 – “Vim de chinelos.”

 E a outra: – “O quê?”

 – “Estou desnorteada. Vim de chinelos.”

 E os créditos iniciais terminam nesse momento com o nome do autor do filme, Icíar Bollaín, e o título:

 Te Doy Mis Ojos – no Brasil, Pelos Meus Olhos

         É uma barra tão pesada que se pode desistir de ver o filme

Pelos Meus Olhos é uma porrada na cara do espectador. Seguramente não tão dura quanto as porradas que tantas mulheres levam de seus maridos, mas é uma porrada bem pesada.

 Confesso que suspirei fundo, depois desta abertura brilhante, destes três a cinco minutos que abrem o filme e definem imediatamente qual é o tema que ele abordará, e com que tom ele o abordará. Quando peguei o filme na locadora, não tinha idéia do tema – faço um esforço para não ler sinopses antes de ver os filmes. Suspirei fundo, e tive até uma certa preguiça de enfrentar a barra pesada que sabia que viria a seguir. Mas não há como não ver um filme que começa com tanta carga de talento, com tamanha determinação de abordar um tema dessa magnitude. 

        Um tema importantíssimo, que o filme enfrenta de frente, de cara

Violência doméstica é um absurdo tão freqüente, tão loucamente comum, que é de se estranhar que o cinema não fale dele mais vezes. Sem fazer qualquer pesquisa, me lembro, por exemplo, de Um Lugar para Recomeçar/An Unfinished Life, que o sueco Lasse Hallström, um cineasta que jamais se afasta do tema vida em família, fez em 2005, com Robert Redford, Morgan Freeman e Jennifer Lopez. Jennifer Lopez é uma mulher que apanha do marido, e, bem no início da ação, foge de casa com a filha e, sem ter outra opção, vai para a distantíssima fazenda do ex-sogro, pai do primeiro marido, já morto. É um bom filme – mas ele apenas parte da violência doméstica, para aí sim tratar da tentativa de reconstrução da vida. Me lembro também de Dormindo com o Inimigo, de 1991, em que a protagonista, interpretada por Julia Roberts, tem um marido ciumento, possessivo, brutal, agressivo, mas o filme acaba virando um thriller. Me lembro de um filme genial, Eclipse Total/Dolores Claiborne, que tem um marido assim, mas isso é apenas um dos muitos elementos da trama. Há Nunca Mais/Enough, de Michael Apted, de 2002, de novo com Jennifer Lopez como a mulher de um marido que se revela brutal, um filme que começa muito bem mas acaba se perdendo.

Claro que há outros filmes que falam de maridos espancadores. Mas não me lembro de nenhum que seja especificamente, integralmente, totalmente sobre esse tema.

         Nossos medos horrendos de que os outros descubram como somos idotas

Depois que, absolutamente apavorada, em pânico, tremendo inteira feito vara verde, Pillar o abandona, Antonio se esforça. Faz terapia – e vemos cenas da terapia de grupo, um bando de machos (e machos latinos) com essa nossa absoluta incapacidade de exprimirmos qualquer coisa que diga respeito a nós mesmos, reunidos para tentar dizer o que a maioria de nós nem de longe suspeita que existe – nossos medos horrendos, profundos, de que os outros descubram como somos fracos, imbecis, babacas, carentes, idiotas.

O que virá a seguir não é, de forma alguma, uma surpresa. Muito antes ao contrário: é tudo previsível, tão previsível quanto sabermos que depois de 2 vem 3, e vem 4, e vem 5, e vem a mesma história viciada do princípio ao fim. Nenhuma surpresa na história – é a mesma de sempre. Todos nós já passamos por alguma história assim, já ouvimos falar de uma história assim.

Quando o filme avançava pela segunda metade, previsível como são as histórias dos relacionamentos de homens que batem e mulheres que apanham, me peguei um tanto temeroso de que ele optasse por uma saída didático-otimista, do tipo é possível, sim, é possível. Afinal, são muitas as seqüências da terapia de Antonio – e nos créditos finais veremos agradecimentos a grupos de terapia da região de Castilla, da belíssima cidade de Toledo, onde se passa a ação. 

Bobagem minha.

         É uma das grandes tragédias da vida – não se passa experiência só com palavras

São belamente construídas as personagens de Ana (Candela Peña, ótima), a irmã que acolhe Pilar, e Aurora (a extraordinária Rosa María Sardà), a mãe das duas. Aurora é a mãe velha, velha no sentido de que viveu muito e não aprendeu com a vida; no sentido de que quer manter as tradições, por piores que sejam, apenas porque não tem forças de lutar contra elas. Aurora acha que o dever da mulher é ficar com seu marido – seja ele quem seja. Quando, com a ação do filme bem avançada, Pilar finalmente contesta o que diz a mãe, fala as verdades que ela mesma não compreende na sua própria vida.

Ana, a irmã, é o contraponto a Pilar. Ana andou, caminhou, avançou – mas é incapaz de passar o que sabe para a irmã. Ninguém pode só na teoria, só através das palavras, passar experiência para outra pessoa. É uma das grandes tragédias do ser humano, o que acontece com Pilar ao se refugiar na casa da irmã, e o que acontece com Ana ao dar guarida a Pilar: não se aprende ao ouvir – só vivenciando. As mais óbvias verdades, não aprendemos a não ser vivendo nosa própria experiência. É trágico, é abissalmente trágico, mas é assim.

         Só na França, um milhão e meio de mulheres espancadas

Não consegui deixar de pensar, ao longo do filme e depois dele – Pelos Meus Olhos é daquele tipo de filme que fica na cabeça da gente por muito tempo, que não vai embora –, em Marie Trintignant. Jovem, bela, talentosa, educada, uma princesa augusta do cinema francês, filha de um nobre, um príncipe, uma lenda viva, Jean-Louis, e uma mãe de talento grande, Nadine, vida inteira pela frente – e aí, aos 41 anos de idade, foi espancada até a morte pelo namorado.

Diante do assassinato da filha, Nadine Trintignant botou a boca no mundo em um livro-panfleto: “As mulheres espancadas. Como dizer a elas para não aceitar? Jamais! Elas são um milhão e meio na França. Em 1999, não houve mais que 17 mil queixas. A maior parte dos acusados foi beneficiada por falta de provas. Um em cada três foi julgado. Escaparam da pena com sursis.”

         Palmas, de pé como na ópera, para a diretora Iciar Bollain

Pelos Meus Olhos foi o terceiro filme da diretora Iciar Bollain, também co-autora do brilhante roteiro, ao lado de outra mulher, Alicia Luna. Iciar Bollain nasceu em Madri em 1967, de uma família basca – daí o nome estranho. Foi atriz em mais de 30 filmes e/ou episódios. Este seu filme brilhante foi o grande vencedor dos Goyas; levou o Oscar espanhol de filme, direção, atriz, ator, atriz coadjuvante, roteiro e som. Mais ainda: segundo consta, o filme foi um tremendo sucesso de público, e se tornou referência para a discussão, na Espanha, da violência doméstica.

No total, teve 39 prêmios e outras 17 indicações.

Merece todos os prêmios, todas as loas. É um filme de fato excepcional. Foi feito com uma maturidade que impressiona demais. Iciar Bollain não faz nada, mas nada, absolutamente nada para chamar a atenção para si mesma; não solta um rojãozinho, nenhum fogo de artifício. Sua narrativa é tradicional, correta, limpa, lisa – como se ela não precisasse provar que é boa, que domina perfeitamente o artesanato, como se fosse uma veterana.

Seu filme tem detalhes que poderiam ser tema de longas discussões sobre o relacionamento entre homens e mulheres, sobre as dificuldades de cada um, sobre os papéis de cada numa sociedade e num mundo em permanente mudança, evolução. Mas ela não parece querer ensinar – ela faz um grande filme.

         Quem dá um tapa, um único que seja, não tem direito a  uma segunda chance

Este belíssimo filme, obra maior, me deu a idéia de criar uma nova tag neste site, reunindo os filmes que falam sobre violência doméstica e abuso.

E aí aproveito para fazer mais uma confissão, ao final da minha anotação sobre este filme – até porque, ao contrário dos que dizem procurar uma linguagem objetiva, “jornalística”, busco sempre o pessoal e intransferível, o confessional em vez do tradicional.

Sou uma pessoa apaixonada, fascinada pela idéia da segunda chance. O benefício da dúvida. O direito a uma nova tentativa.

No caso específico do marido que bate, no entanto, sou de um reacionarismo de fazer corar um frade de pedra, como diria Nelson Rodrigues – aquele para quem mulher gosta mesmo é de apanhar. Para mim, é o seguinte: levou um tapa, por mais leve que seja, tem que cascar fora. No ato, na hora. 

Pelos Meus Olhos/Te Doy Mis Ojos

De Icíar Bollaín, Espanha, 2003

Com Laia Marull (Pilar), Luis Tosar (Antonio), Candela Peña (Ana),

Rosa María Sardà (Aurora), Nicolas Fernandez Luna (Juan) 

Argumento e roteiro Icíar Bollaín e Alicia Luna

Fotografia Carles Gusi

Música Alberto Iglesias

Produção Alta Productión, Producciones La Iguana

Cor, 106 min

Título em inglês: Take My Eyes

****

Título em Portugal: Dou-te os Meus Olhos

16 Comentários para “Pelos Meus Olhos / Te Doy Mis Ojos”

  1. Fiquei super a fim de ver, vou baixar. Realmente é um tema duríssimo; de todas as reportagens que já vi a respeito, todas eram angustiantes, tristíssimas. Muitas mulheres acabam indo a óbito.
    Esse tema é meio polêmico para algumas pessoas pq algumas acham que ninguém deve se intrometer, nem mesmo chamar a polícia quando a pancadaria está demais. Tem gente que fala, como vc já citou, que tem mulher que gosta mesmo de apanhar (o que me enche de revolta e indignação). Fiquei sabendo recentemente que a lei Maria da Penha foi mudada, que agora o homem só vai preso se a mulher quiser, pois tem homem que é o “sustento” da família e pq “tem mulher que gosta de apanhar”. Achei um tremendo retrocesso.

    Concordo totalmente com vc, no primeiro tapa a mulher tem que cair fora*. Lembrei até de que quando eu era criança, quando esse tema vinha à baila, numa época em que não se falava tanto sobre isso (não que hj se fale), minha mãe sempre dizia que se quando eu casasse, o marido encostasse um dedo em mim, ela iria me buscar. Minha mãe sempre foi vanguardista, rs.
    Não sei se vc soube, mas acho que no ano passado, o tal grupo de funk “Furacão 2000” foi condenado a pagar uma multa altíssima por causa da letra da música “Um tapinha não dói”. De vez em quando a justiça brasileira dá uma dentro.

    Fiquei alegre ao saber que o diretor na verdade é diretora (pelo nome pensei que fosse homem). E como vc elogia tanto o filme, deve ser mesmo muito bom. Não quero ser sexista, mas acho que só mesmo uma mulher pra falar com tanta propriedade sobre o assunto (estou me baseando no seu texto).

    * para mim pedófilos tb não merecem segunda chance. O que acontece no filme O Lenhador é ficção, a realidade é outra. E é tão repugnante cada vez que sai uma notícia sobre isso. Não sei como a pedofilia é classificada, se é doença ou o quê. Pra mim, é falha de caráter, não tem cura; pq caráter é igual àquela propaganda de carro: ou vc tem, ou vc não tem.

    Escrevi demais again [e nem foi sobre o filme]. Sorry.

  2. Jussara, você sabe que eu adoro seus comentários. Gosto de tudo o que você escreve. Nunca é demais o que você diz – e nunca é demais eu repetir isso. Abração.
    Sérgio

  3. oi gente! gostaria de saber qual de vocês tem o dvd”DOU TE OS MEUS OLHOS” estou precisando de comprar,já procurei emtodos os lugares e não encontro de jeito nenhum. alguem de vocês sabe como faço para baixá-lo?

  4. Já assisti este filme!
    Adorei!Gosto de filmes que mantém meus pés no chão; A historia trata da violencia domestica,mas não vamos esquecer que o filme é um drama romantico;Pilar e Antonio se amam ardentemente, e isso da ao filme uma beleza, e seu titulo original,(te dou meus olhos).

  5. Olá, Sergio:

    Assisti a este filme, segunda-feira passada, uma tarde fria e chuvosa aqui no sul. Mas que filme!Atual, comprometido, sem pirotecnias, sem concessões,amoroso e dramático como a vida é.
    Vou procurar na Livraria Cultura aqui em Porto Alegre para comprá-lo e dar a minha sobrinha que tem a violência doméstica como tese de mestrado.Posso colar teus comentários? Seriam de extrema valia.

  6. Oi Sergio

    Mesmo sendo uma ratazana das mostras de cinema, essa pequena obra-prima também me escapou. Ontem agradeci aos céus pelo presente que a TV Cultura nos deu, jogando inteligência à TV aberta, sempre povoada de bobagens. Sua análise é brilhante e também concordo com vc. Homem que dá um só tapa, não merece perdão. As estatísticas no Brasil também são terríveis:
    O Brasil é o país que mais sofre com a violência doméstica, segundo pesquisa da Sociedade Mundial de Vitimologia, em 54 países e junto a 138 mil mulheres (www.ipas.org.br);

    • No Brasil, a cada 7 segundos uma mulher é agredida em seu próprio lar (Fundação Perseu Abramo);

    • A violência doméstica é a principal causa de morte e deficiência entre mulheres de 16 a 44 anos e mata mais do que câncer e acidentes de tráfego http://www.violenciamulher.org.br);

    Teremos, finalmente, um filme brasileiro tratando esse tema complexo de maneira delicada. “Amor?”, de João Jardim, estreia dia 15 de abril no circuito comercial. Corram, pq é documentário e esse tipo de narrativa não tem muito apelo. Eu vi o filme, é lindíssimo

  7. Só para tranquilizar a Jussara: a Lei Maria da Penha NÃO FOI mudada. A condenação do agressor independe da retirada da denúncia. O que há é uma movimentação de juristas interpretando mal a lei e dizendo que ela é institucional pq não acolhe o homem. Não acolhe mesmo, a Lei Maria da Penha só serve para mulheres. Homens agredidos (que são pouquíssimos) encontram proteção na lei comum.

  8. Filme maravilhoso e atual. Vivi na infância a violência doméstica e senti na pele novamente vendo o filme. Excelente mesmo! valeu mais uma vez a Cultura ter nos presenteado num sábado de frio.

  9. “A historia trata da violencia domestica,mas não vamos esquecer que o filme é um drama romantico;Pilar e Antonio se amam ardentemente, e isso da ao filme uma beleza, e seu titulo original,(te dou meus olhos).”

    Desde que li esse comentário no meu Feed fiquei incomodada com o “Pilar e Antonio se amam ardentemente, e isso da ao filme uma beleza…”
    Por algum motivo acabei não comentando sobre isso na época (e olhando o ano do comentário acho que até sei o porquê), mas toda vez que eu via um filme sobre violência doméstica e/ou abuso me recordava dele.
    Pelo estilo da escrita, parece que Paty Margarida é/era adolescente, e portanto, não devia saber nada da vida ainda, mas já poderia ter alguma noção de que um homem bater em uma mulher não tem absolutamente NADA de romântico nem de belo, muito menos de amor. Fala sério!

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