A Testemunha / Witness


Nota: ★★★★

Anotação em 2008: A Testemunha/Witness é um desses poucos filmes extraordinários, quase perfeitos (e o quase aí é por lembrança das lições da minha mãe de que perfeito, só Deus), que não sofrem com o passar do tempo, e, ao contrário, ficam melhores a cada nova revisão.

Nem vi o filme tantas vezes assim. Anotei que vi em 1988 e depois em 2005 – mas em nenhuma das duas ocasiões escrevi comentários. Revimos de novo agora, em dezembro de 2008.

É um brilho.

Eu lembrava bem da história: garotinho amish vê um assassinato no banheiro da estação de trem de Filadélfia; o policial encarregado do caso cuida dele e da mãe, e acaba se refugiando com os dois na casa deles, bem no meio da comunidade amish em Lancaster, interior da Pensilvânia. Lembrava bem de algumas seqüências que tinham me impressionado, do clima todo do choque de dois mundos absolutamente distantes, separados, da beleza estupenda de Kelly McGillis. Mas nesta terceira vez o filme me deixou ainda mais fascinado.

Uma beleza visual extraordinária, que chega mansa, suave

O filme é de uma beleza visual acachapante. E o fantástico, o incrível, o absurdo é que essa beleza vem de forma suave, mansa, calma. Não há, em momento algum, aquela coisa forçada que muitos bons diretores se permitem, de fazer questão de mostrar o tempo todo que estão criando um filme de visual apurado – essa tentação a que Alan Parker em geral não resiste, Brian De Palma e Kar Wai Wong não resistem nunca (a lista poderia seguir indefinidamente), Scorsese muitas vezes não resiste. Em Cassino, O Aviador e Gangues de Nova York, por exemplo, o grande Scorsese fica gritando para o espectador o tempo todo: olhe como eu sou genial, olhe como eu sei usar todos os recursos possíveis e imagináveis para fazer um grande filme.

Peter Weir, não. A beleza visual de A Testemunha desliza com a suavidade dos movimentos da câmara de Hitchock quando persegue Scottie-James Stewart que está perseguindo Madeleine-Kim Novak pelo museu ou pelas ruas de San Francisco, em Um Corpo Que Cai/Vertigo.

Peter Weir está mais para Truffaut que para Godard. Mais para Roberto Santos que para Gláuber Rocha. Mais para Visconti que para Fellini. Mais para John Ford que para Sergio Leone. E, pelamordedeus, não estou querendo depreciar ninguém, até porque Fellini e Leone são mesmo geniais; estou só falando de estilo. Nada contra o barroco, o gongórico, o feérico; mas Peter Weir é suave, simples, aquela simplicidade difícil do ourives cuidadoso.

A seqüência de abertura já mostra a que ele veio: um plano geral de uma plantação verdíssima, com o uso perfeito da tela retangular, ex-CinemaScope, hoje widescreen; aos poucos, na linha que divide o verde imaculado do azul do céu igualmente imaculado, vão surgindo pontos negros – os chapéus, depois os rostos, as figuras inteiras dos amish, todos de preto. A comunidade amish está se reunindo para o enterro de um deles, Jacob Lapp, que deixa viúva a mulher Rachel (o papel de Kelly McGillis) e seu filhinho de uns 7 anos Samuel (Lukas Haas) aos cuidados de seu pai, o velho Eli (Jan Rubes).

Uma rápida palavrinha sobre os amish. São cristãos protestantes, rígidos, ultraortodoxos, ultraconvservadores; não podem usar modernidades como telefone, luz elétrica rádio ou TV, nem invenções tão velhas quanto a humanidade, como a violência e qualquer tipo de arma.

Em alguns locais da Pensilvânia, a comunidade amish é muito forte; no distrito de Lancaster, onde mora a família de Rachel Lapp, há 14 mil amish, conforme explicará lá pelas tantas o policial da cidade.   

Um garoto  e uma estátua – nessa seqüência, uma lição de cinema

Algum tempo depois da morte de Jacob, a viúva Rachel, já capaz de sorrir (e que maravilha de sorriso, o de Kelly McGillis, que ilumina a tela), embarca com o garoto Samuel para Baltimore, com baldeação em Filadélfia, para visitar parentes. Faltam três horas para a saída do trem para Baltimore, e então mãe e filho ficam ali, peixes fora d’água naquela civilização tão díspar da sua. Com a curiosidade natural da idade, Samuel perambula pelo salão gigantesco da estação ferroviária. As tomadas esplêndidas me deixaram chapado – mas eu estava revendo o filme, já sabia de tudo o que iria acontecer em seguida, por isso foi que fiquei chapado. As tomadas esplêndidas, repito, são simples, calmas, mansas, antifeéricas.

Samuel pára diante de uma coluna em que há uma estátua dourada de um homem abraçando uma mulher. Ele vê a estátua, o espectador vê a estátua mais de perto. É um plongée, um recurso que muito diretor usa abusando, gritando, chamando a atenção; aqui, não. É suave. Aí ele inverte, faz um contre-plongée, a estátua em primeiro plano, Samuel de pé, no meio do salão gigantesco, aquele pequeno ser humano do século XIX solitário numa grande cidade do final do século XX.

 É belíssimo.

Lukas Haas tinha nove anos de idade quando interpretou Samuel. O cinema está cheio de bons atores infantis, mas Lukas Haas, nas mãos de Peter Weir, é um show. O olhar dele, no extreme close-up que Peter Weir faz de seu olho atrás da porta quase fechada de uma das privadas do banheiro da estação, enquanto assiste a um assassinato, é absolutamente impressionante, marcante.

(Me lembro agora, ao fazer esta anotação, de Danny Lloyd, que fez o garotinho com poderes paranormais de O Iluminado/The Shining, de Kubrick, de 1980, e de Haley Joel Osment, que fez o outro garotinho paranormal que via gente morta em O Sexto Sentido/The Sixth Sense, de M. Night Shyamalan, de 1999. A interpretação de Lukas Haas está no mesmo nível.)

Kelly McGillis, incrivelmente bela, numa interpretação primorosa

E ainda tem a beleza e a interpretação de Kelly McGillis.

Foi a primeira grande oportunidade dela no cinema. Tinha 28 anos, e, no currículo, um filme e três participações em TV. Tiveram imensa sorte ela, Peter Weir, e todos nós. Não poderia haver nenhuma outra atriz tão perfeita para o papel de Rachel. Rachel é amish até o fundo da alma, é rígida, acredita na sua religião – e o mundo do policial John Book (o papel de Harrison Ford) parece a ela nojento, desprezível, sujo, porco, errado, e assustador. Ela demonstra pavor nos olhos imensos ao ver a arma dele dentro de sua casa, pega nela como se pegasse um rato morto. Ao mesmo tempo, no entanto, Rachel quer ser dona do seu próprio nariz lindo – não quer ser escrava do sogro e dos anciões que determinam as leis da comunidade. É mulher, é jovem, tem vontades, tesão, e algumas das seqüências em que ela demonstra isso – aquela no celeiro em que o rádio do carro toca a ginasiana e deliciosa (What a) Wonderful World, de Herb Alpert-Lou Adler-Sam Cooke, e ela, embaraçada, sem graça, e ao mesmo tempo se soltando, feliz, ensaia pela primeira vez na vida uns passos de dança, e aquela em que se lava com a porta do banheiro entreaberta – são das mais belas e sensuais que o cinema americano já mostrou. 

De que eu me lembre, Kelly McGillis só teria duas outras grandes oportunidades, depois de fazer essa maravilhosíssima Rachel (que lhe deu as indicações para o Globo de Ouro e o Bafta): a da heroína na aventura adolescente Top Gun, em 1986,ao lado do jovem Tom Cruise, e a da advogada da garota estuprada em Acusados/The Accused, de 1988, que deu o Oscar de atriz para Jodie Foster. 

No meio do filme, um pouquinho depois do meio, Peter Weir faz uma espécie assim de intermezzo, um pequeno conto, dentro de sua novela. É o dia em que toda a comunidade amish se reúne para construir o celeiro da fazenda de um jovem casal recém-casado. O conjunto de seqüências, isoladamente, poderia ser um curta-metragem, um grande clip, a ser visto e revisto por quem gosta de belas imagens.

É o único momento do filme em que a música de Maurice Jarre sobe levemente de tom; no resto do tempo, ele é muito suave, quase minimalista, toda apoiada em som de sintetizador. Aqui ela se agiganta, fica sinfônica.

Esse conjunto de seqüências é o equivalente em imagens ao que John Lennon quis dizer na letra de Imagine – e a letra de Imagine, vamos e venhamos, embora já gasta por tanta repetição, é uma maravilha. É uma coisa utópica, um grande grupo de pessoas trabalhando juntos pelo bem comum, sem competição, com companheirismo, criando algo palpável, que vai se materializando diante de nossos olhos. Utopia, sim – mas o que seria de nós se não pudéssemos acreditar que seria possível haver um mundo melhor? 

A Testemunha/Witness

De Peter Weir, EUA, 1985.

Com Harrison Ford, Kelly McGillis, Lukas Haas, Jan Rubes, Danny Glover, Josef Sommer, Alexander Godunov, Viggo Mortensen

Roteiro Earl W. Wallace e William Kelley

Baseado em história de William Kelley, Pamela Wallace e Earl W. Wallace

Música Maurice Jarre

Produção Paramount

Cor, 112 min

R, ****

12 Comentários para “A Testemunha / Witness”

  1. Não sei quando, mas já assisti esse filme. Gostei muito, é claro, mas hoje, lendo o que você fala sôbre ele, tudo ficou mais lindo na minha memória. Vejo pequenas filigranas que passaram despercebidas naquela época. Seu belo comentário me fez ficar morrendo de vontade de assistí-lo novamente.E farei isso.

  2. Belíssimo, e é mesmo um filme que cresce ao ser revisto. Sua beleza é sutil, precisa de um segundo, terceiro olhar para ser percebida; para ser apreciada.
    Uma outra sequência, eu destacaria, que evidencia uma sensualidade palpável ainda que discreta – Rachel (McGillis) entregando um copo d’ água a John (Ford) e observando-o beber, a água escorrendo pelo pescoço dele.

  3. A sensualíssima dança no celeiro, ao som de “Wonderful World” é minha cena favorita do filme. Impressionante como causam muito mais impacto os indícios de erotismo do que a ação explícita. O mesmo acontece com o roçar de mãos entre Vermeer e Griet em “Moça com Brinco de Pérola”.

  4. Depois destes comentários todos quero deixar uma nota.
    O Harrison Ford diz (na pele de John Book) por duas vezes “Já fui carpinteiro”.
    A primeira ao fazer um conserto em casa e a segunda quando estão a construir o celeiro. Como o actor foi mesmo carpinteiro
    durante algum tempo, antes de ter algum sucesso, acho que isto é intencional.

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