Crime em Palmetto / Palmetto


Nota: ★★★½

Anotação em 1999: Um brilho de filme. Tem aquele ritmo, aquela sensualidade forte e aquela agonia dos grandes noir. Embora seu parente mais próximo seja o excepcional Corpos Ardentes, de Lawrence Kasdan, descende daquela linha majestática que inclui O Destino Bate à Sua Porta/The Postman Always Rings Twice (o original, dos anos 40, com Lana Turner, muito melhor do que o remake óbvio e explícito demais do Bob Rafelson nos anos 80) e Pacto de Sangue/Double Indemnity.

Quando vi, na mesma semana do ano passado, Pacto de Sangue e The Killers (versão anos 40), escrevi:

(…) aquela característica tão cara aos films noirs: ao fim e ao cabo, o espectador compreenderá que toda a trama macabra foi fruto da ganância de uma mulher, uma dame, ou baby, uma femme fatale, linda, astuciosa, fria, que joga os homens a seus pés para conseguir o que desejam. Os homens fazem o serviço sujo – mas são elas que saem ganhando, pobres joguetes nas mãos delas.

Tem a ver, embora o texto não esteja à altura do que o tema mereceria.

apalmetto1Neste Palmetto, repete-se a coisa fetiche dos pés e das pernas da loura sensualíssima que foi usado tanto em O Destino Bate à Sua Porta quanto em Pacto de Sangue. Na primeira tomada em que ela aparece, a câmara se fixa nos pés e no início das pernas, até o começo do vestido. A cena é um brilho. Aqui, quem faz a femme fatale que já foi Lana Turner, Barbara Stanwyck e Kathleen Turner nos três filmes citados acima é essa menina Elisabeth Shue (foto), de Despedida em Las Vegas/Leaving Las Vegas e Desconstruindo Harry. Aos 35 anos, encarna um personagem de 31. Faz uma mulher de sensualidade aberta, escancarada, explícita. Se sai bem.

O personagem do pato (o sucker do título da novela de James Hardley Chase), o cara a quem a femme fatale oferece o serviço sujo, é interessantíssimo, riquíssimo – e parece realmente feito para o Woody Harrelson. É o narrador, Harry Barber. O espectador o encontra na primeia tomada do filme na cadeia da cidade de Palmetto, Flórida. Cumpriu dois anos de uma sentença maior. Logo nos primeiros minutos, Harry e o espectador ficam sabendo que novas evidências apresentadas à Justiça o inocentaram; ele é comunicado de que está livre. Em vez de agradecer, ele se enfurece: E os dois anos da minha vida que perdi aqui dentro?, berra para o juiz que aparece em uma teleconferência para avisá-lo sobre a recém-conquistada liberdade.

apalmetto2Enquanto surgem os letreiros da apresentação, vemos Harry Barber sair querendo ir pra qualquer cidade – menos para Palmetto. Sabemos então que Palmetto é uma cidade suja, corrompida, corruptora – mas não sabemos qual foi o crime que ele cometeu. Só saberemos muito mais tarde. Seu crime foi ter denunciado, no jornal em que trabalhava, um caso de escândalo de corrupção envolvendo os vereadores da cidade e alguns policiais; armaram para ele uma armadilha, e ele acabou preso acusado de corrupção. No momento em que Harry Barber conta sua história para o espectador, ele já está envolvido até o pescoço em um crime – ele, que foi pra cadeia sem motivo, por ser honesto. Ele está, naquele momento, participando da encenação de um sequestro, da filha de um bilionário, a pedido da mulher dele (Rhea-Elisabeth Shue) e da própria filha (Odette-Chloe Sevigny, na foto acima com Woody Harrelson, e também na foto abaixo).

A trama do filme é absolutamente fascinante. O nome James Hardley Chase não é novo pra mim, mas só agora fiquei sabendo que ele não é americano, e sim inglês, morto na Suíça (1906-1985) sem jamais ter ido aos Estados Unidos. Não me lembro de nomes de livros dele, nem de que histórias foram adaptadas para o cinema. Mas, por esse exemplo, o cara é extraordinário.

apalmetto3É uma trama que, como eu já falei, lida com elementos básicos, tradicionais, da saga noir – a femme fatale que enfeitiça o homem bom, puro ou simplesmente inocente, e o transforma em fantoche para que ela obtenha o que sua ambição deseja. Mas, também seguindo a tradição dos grandes filmes noirs, é uma trama complexa, inteligente, cheia de surpresas. Há em Palmetto pelo menos quatro grandes, surpreendentes reviravoltas na história, que de fato deixam o espectador completamente aturdido – embora não sejam absurdas, improváveis, implausíveis.

Passei o filme entre embasbacado com o brilho da trama e angustiado pela situação de Harry Barber, um homem íntegro que cedeu à tentação por um punhado de dólares mas, sobretudo, pela força da femme fatale que aconteceu cruzar sua vida. Me lembrei até mesmo de que o destino do pobre Harry Barber é mais ou menos como o dos heróis da tragédia grega – absolutamente distante de suas próprias mãos, dependendo única e exclusivamente dos desígnios dos deuses cruéis. E mais tarde peguei uma coincidência: um dos outros filmes desse sério Schlondorff é Voyager, com Sam Shepard e a Julie Delpy – a tragédia grega em sua face mais cruel.

Falei lá em cima que o personagem de Harry Barber é riquíssimo. Um detalhe importantíssimo que mostra essa riqueza do personagem é sua relação com a bebida. Vemos que, ao sair da prisão e tentar recomeçar a vida, Harry Barber vai a um bar, paga um bourbon e o leva para a sua mesa – mas não bebe. Cheira, olha, mas não bebe. O cara do bar pergunta se ele não gosta do uísque servido ali, e ele responde que não bebe. Pra lá do meio do filme, veremos que ele, enfiado até o pescoço na merda, olha para uma garrafa de uísque, pensa um pouco, e acaba tomando um porre. É um ex-alcoólatra – Mary pegou a mensagem antes de mim. A mensagem é óbvia, mas é dita de forma brilhante, pra o espectador mais sensível pegar mais rápido, de forma clara, porém não explícita em palavras. Esse detalhe é um brilho. Outro brilho é a discussão que têm a femme fatale e sua filha adotiva a respeito de ele ser previsível ou não. Ele é totalmente previsível.

Um grande filme. Sim, um grande filme.

Crime em Palmetto/Palmetto

De Volker Schlondorff, EUA, 1998.

Com Woody Harrelson (Harry Barber), Elisabeth Shue (Rhea Malroux), Gina Gershon (Nina), Chloe Sevigny (Odette Malroux), Tom Wright, Michael Rapaport, Rolf Hoppe (Felix Malroux)

Roteiro E. Max Frye

Baseado no romance Just Another Sucker, de James Hardley Chase

Fotografia Thomas Kloss

Música Klaus Doldinger

Produção Castle Rock, Warner

Cor, 114 min.

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