2.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Quilômetro Zero é uma co-produção da França com a região curda do Iraque. E fala de temas bem pouco comuns no cinema, ou no mínimo nos filmes que chegam até nós: a opressão do regime de Saddam Hussein sobre os curdos, e a guerra Irã-Iraque.
O filme promete – mas não entrega. A definição, perfeita, foi dada pela Mary, que pegou o filme na estante de cinema asiático da locadora sem que tivéssemos qualquer referência, qualquer informação sobre ele, para experimentar, mesmo. É preciso experimentar, se quisermos decobrir coisas novas. Às vezes há descobertas fascinantes. Às vezes, é claro, há decepções.
Nos créditos iniciais, ficamos sabendo que é uma co-produção franco-curda – um letreiro informa que o filme foi feito com “o apoio do governo regional do Curdistão iraquiano e de seu primeiro-ministro, o senhor Nechervan Barzini”.
O filme abre com um casal num carro, andando por uma pequena estrada no interior da França; sabemos que é França porque o rádio do carro traz – em francês – notícias sobre a invasão do Iraque pelas tropas americanas do governo Bush, em 2003. É uma bela sacada do diretor, autor e roteirista Hiner Saleem – através do que ouve do locutor da rádio, o espectador se situa, entende o contexto.
O locutor conta que no mundo todo há protestos contra a guerra de Bush, mas há quem a apóie: numa entrevista em Paris, um jovem curdo deu a seguinte declaração: “Sabemos que os Estados Unidos são imperialistas. Mas queremos nos ver livres de Saddam Hussein. Ele nos impôs 35 anos de tirania.” E prossegue, com uma ironia final: “Adoraríamos ser libertados pela França, pela Suíça, pela Escandinávia, mas ninguém apareceu”.
O rádio continua falando sobre as atrocidades cometidas pela ditadura de Saddam contra os curdos, que habitam o Nordeste do Iraque: no final dos anos 80, o governo iraquiano matou 182 mil curdos e destruiu 5 mil vilarejos.
O casal, que a essa altura já percebemos que é curdo, pára o carro, desce. O homem – mostrado de costas pela câmara – olha para o campo à sua frente. A mulher se aproxima dele. É uma tomada longa. Comentei com Mary: “Bem, agora o casal vai voltar para o Curdistão liberado. Ou então vai ter um flashback”.
Vem um flashback; um letreiro nos avisa que estamos em meados de 1988, semanas antes do massacre de Halabja.
Veremos uma exibição de violência da soldadesca iraquiana contra os curdos. Depois de algum tempo, a narrativa vai se fixar em um jovem curdo, Ako (Nazmi Kirik), que vive num pequeno vilarejo; ele é casado com uma bela mulher, Selma (Belçim Bilgin), tem um filhinho de uns seis, sete anos. Quer fugir dali, sair do Iraque, escapar do horror, mas Selma diz que não se muda enquanto seu pai ainda estiver vivo.
Naturalmente, Ako e Selma são o casal que anos mais tarde, em 2003, está na França, ouvindo o noticiário sobre o invasão do Iraque pelas forças americanas.
Um conhecido convida Ako para se juntar aos grupos guerrilheiros curdos que combatem o Exército de Saddam; ele não aceita – mas logo depois é convocado para servir no próprio exército iraquiano, e enviado para o front na guerra contra o Irã.
A câmara do diretor Hiner Saleem não gosta muito de se movimentar. Na imensa maior parte dos planos, ao longo de todo o filme, ela fica estática. Nada contra – é o estilo do cara.
Uma situação insana, louca, e uma narrativa descosturada
O problema é que a narrativa é bastante solta, descosturada, descozida. E mais ainda: o roteirista e diretor optou por um tipo de narrativa que beira o surreal. Para mostrar uma realidade louca, ilógica, insana – um curdo lutando numa guerra com a qual ele não tem nada a ver –, Hiner Saleem cria uma história louca, ilógica, insana.
E é por isso que a frase da Mary define bem o filme: ele promete. Seria uma ótima oportunidade para vermos um relato sobre uma realidade distante de nós. Mas o que o filme entrega é pouco, muito pouco. Uma grande pena.
Não que o filme seja muito ruim. Não é. Tem qualidades, sem dúvida. Faz uma denúncia forte contra a ditadura de Saddam Hussein, e isso é importante, porque muita gente, ao se colocar contra a invasão do Iraque pelas forças americanas e inglesas, ficou a favor de Saddam, tornou-o um herói – coisa que, definitivamente, ele não é.
(E me lembrei agora que essa discussão perpassa a narrativa de Sábado, o extraordinário, genial romance de Ian McEwan; toda a ação do livro se passa no dia 15 de fevereiro de 2003, um sábado que foi marcado por gigantescos protestos contra a iminente invasão do Iraque.)
O filme mostra muito bem a violência das pequenas autoridades, das pessoas simples, humildes, que, uma vez providas de um uniforme, em especial nos regimes ditatoriais, transformam-se em tiranos infernais. (E aí me lembro que a jornalista Marta Goes escreveu uma peça exatamente sobre isso, chamada exatamente Pequenas Autoridades.)
E mostra também os riscos, o perigo, o absurdo do culto às personalidades. As cenas em que aparecem estátuas de Saddam Hussein sendo transportadas pelas poeirentas estradas de um desértico interior do Iraque são muito bonitas visualmente – e servem de alerta contra esse fenômeno terrível que é o culto à personalidade. Nós, brasileiros, deveríamos tomar especial cuidado com esse perigo.
“Nós, curdos, não temos infância”
Bem, esta é a minha avaliação. Mas vamos a informações.
Hiner Saleem nasceu no Curdistão iraquiano, em 1965. O iMDB não dá muitas informações sobre sua biografia, mas cita duas frases dele que ajudam a compreender o que ele mostra em seus filmes:
“Nasci adulto, porque nós, curdos, não temos infância.”
“Guerra é uma coisa impopular, eu entendo isso, mas Saddam destruiu um país, provocou a morte de milhões. Ele trouxe os americanos. Ele queria nos varrer do mapa.”
Aparentemente, Saleem – como seu personagem – exilou-se na França. Seu primeiro filme foi produzido na França, em 1998: Vive la mariée… et la libération du Kurdistan (Viva a noiva… e a libertação do Curdistão). Quilômetro Zero, de 2005, seu quinto filme, foi selecionado para a mostra competitiva do Festival de Cannes – o que em si já é uma premiação.
O AllMovie, um site maravilhoso, pisou no tomate ao falar do filme: diz que ele mostra a história de um soldado turco!
A Turquia entra um pouquinho no filme, é verdade. A região curda do Iraque fica próxima à fronteira da Turquia, e há uma grande população curda naquela região turca; os personagens centrais irão chegar perto da fronteira com a Turquia. E a bela atriz que faz Selma, Belçim Bilgin, é turca, nasceu em Ancara, em 1983. Parece que foi modelo antes de se tornar atriz; trabalhou em outro filme do diretor, Dol, de 2007. Tem um site oficial, cheio de belas fotos: http://www.belcimbilgin.com/. Ela é um colírio, neste filme duro, pesado. Trabalhar bem, não trabalha, não – mas é linda.
Quilômetro Zero/Kilomètre Zéro
De Hiner Saleem, França-região curda do Iraque, 2005
Com Nazmi Kirik (Ako), Eyam Ekrem (o motorista), Belçim Bilgin (Selma), Ehmed Qeladizehi (Adnan)
Argumento e roteiro Hiner Saleem
Produção Memento Films
Cor, 86 min
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