3.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Cidadão Boilesen é um belo, rico, ótimo documentário. Mais ainda: é um documentário necessário, imprescindível para quem quiser se informar sobre um dos períodos mais tristes da história do Brasil, os anos de chumbo, os piores anos da ditadura militar.
O filme do jornalista Chaim Litewski apresenta e comprova a tese de que o regime instituído com o golpe de 1964 só existiu e se manteve graças à ajuda e à participação de uma parte do que se convencionou chamar de sociedade civil: políticos, empresas, empresários e banqueiros.
O filme disseca a participação de Henning Boilesen, presidente do Grupo Ultra, na formação e no financiamento da Oban, a Operação Bandeirantes, o aparelho repressor montado pelas Forças Armadas e pela polícia de São Paulo no final dos 60, início dos anos 70 – mas, mais que isso, mostra que ele, Boilesen, foi apenas um dos empresários que deram o apoio logístico e financeiro ao aparato que torturou e matou dezenas e dezenas de brasileiros opositores do regime.
Litewski e sua equipe fizeram um trabalho de pesquisa admirável, ao longo de 15 anos; agindo como jornalistas investigativos e historiadores sérios e abnegados, fuçaram documentos no Brasil, nos Estados Unidos, na Dinamarca, o país natal de Boilesen. Entrevistaram dezenas de pessoas – políticos, empresários, militares, policiais, diplomatas, jornalistas, torturadores, torturados, familiares, gente que conviveu com Boilesen na intimidade.
O filme agrupa imagens de cinejornais e telejornais da época, dos entrevistados e de filmes mais recentes que reconstituíram episódios da época da ditadura e da luta armada, como Pra Frente, Brasil, Lamarca e O Que é Isso, Companheiro, mais reproduções dos jornais da época e de documentos – inclusive do governo americano, que era informado a respeito das atividades de Boilesen pelo consulado em São Paulo.
É um trabalho de fôlego, feito – isso é absolutamente visível no filme – com muita garra, determinação, empenho, quase com obsessão.
Sujeito afável, mulherengo – e sádico
Henning Boilesen nasceu em Copenhagen, em 1916, em uma família pobre – o pai era um pintor que trabalhava na construção civil. Era boa-pinta, e deu a sorte de conhecer a filha de um cônsul dinamarquês no Brasil, numa viagem dela à terra de origem; casaram-se lá, e Boilesen chegou ao Brasil em 1938, aos 22 anos de idade. Deu-se bem, e no final dos anos 60, presidia o Grupo Ultra, em São Paulo.
Nos depoimentos colhidos para o filme, mostra-se que Boilesen era um sujeito simpático, afável, mulherengo, expansivo, com facilidade para fazer amigos – alguns entrevistados dizem que ele parecia mais um caloroso brasileiro que um frígido nórdico. Um dos amigos mais chegados era o delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos mais violentos homens da repressão à oposição ao regime militar. Vários depoimentos mostram também que aquele empresário de jeitão afável tinha especial predileção pela dor alheia: chegou a assistir a diversas sessões de tortura nos porões do Dops e da Oban.
Boilsesen foi um angariador de fundos para a Oban: passava o chapéu entre os colegas empresários e recolhia deles cheques para financiar as operações do aparelho repressor. O filme dá o nome de dois empresários paulistas que se recusaram a dar dinheiro para financiar a Oban – José Mindlin, do grupo Metal Leve, e Antônio Ermírio de Moraes, do grupo Votorantin. De fato, as biografias dessas duas personalidades saem engrandecidas com o filme.
Na outra ponta – e nisso o filme demonstra grande coragem –, sai bastante enxovalhado o nome da empresa Folha da Manhã, que edita o jornal Folha de S. Paulo. O filme mostra, escancaradamente, uma verdade que é de conhecimento de qualquer pessoa que tenha trabalhado na imprensa paulista nos anos da ditadura, mas que ficou esquecida, escondida da imensa maioria dos brasileiros: a Folha da Manhã não só apoiava a ditadura militar como fornecia apoio material aos homens da repressão, aos policiais e militares da Oban. Eu me lembro bem que o jornal Folha da Tarde era tido como o porta-voz oficial da Oban, no início dos anos 70. Depoimentos no filme mostram que os veículos – os caminhões e as kombis – que faziam a distribuição dos jornais Folha de S. Paulo e Folha da Tarde eram usados pela Oban em suas operações.
“Boilaesen é um ser quase ficcional”, diz o diretor
Transcrevo um trecho de uma reportagem assinada por Carlos Helí de Almeida, no JB Online:
“Há décadas os mistérios envolvendo a personalidade e a trajetória de Boilesen fascinavam Letewski, que, num primeiro momento, pensou em escrever um livro sobre o empresário. O jornalista chegou a recortar e guardar obituários publicados em jornais e revistas da época. Anos mais tarde, no entanto, soube da publicação de uma biografia do executivo na Dinamarca, intitulada Likvider Boilesen, de Henrik Kruger. Letewski desistiu de escrever um livro e começou a pensar num documentário biográfico sobre o dinamarquês.
“– Cada descoberta só fazia aumentar meu interesse pelo personagem. Boilesen é um ser quase ficcional, parece que viveu uma dicotomia tipo Jekyll e Hyde, noite e dia – compara o diretor, radicado em Nova York. – O interesse por ele me acompanhou por muitos anos. Em 1994 comecei a me organizar no sentido de realizar um documentário sobre Boilesen e seu tempo. O grande problema de qualquer pesquisador é saber quando parar, botar um ponto final na pesquisa. Isso só aconteceu dois anos atrás, quando recebi a pasta dele do SNI (Serviço Nacional de Informações).”
Mais adiante, o texto traz estas afirmações do diretor Letewiski:
“– De maneira alguma esse projeto deve ser visto, considerado ou percebido como revanchista ou revisionista. A idéia foi sempre incentivar o maior número possível de opiniões. Isso foi feito através de dezenas de entrevistas e fartamente ilustrado com cinejornais, arquivos de TV, filmes de ficção, documentários, arquivos oficiais e particulares e outros materiais iconográficos. Não partimos de conceitos pré-determinados. Os diferentes pontos de vista foram articulados e respeitados.”
E ainda:
“– Para ser absolutamente sincero, não tenho ideia do tipo de impacto que esse documentário possa causar na sociedade brasileira. Espero que sirva para que se estude mais profundamente o tema. Isso já seria uma grande vitória.”
Um filme que já repercute – e vai repercutir muito mais
O documentário em si já é uma grande vitória. E sua repercussão – tudo indica – será muito grande. Na verdade, já está sendo. Em abril deste ano de 2009, o filme foi exibido no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, e foi o vencedor da parte brasileira. Escreveu-se bastante sobre ele a partir daí, enquanto o filme era apresentado em outros festivais e em universidades – esteve no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo deste ano de 2009, a 33ª. No dia 27 de novembro, estreou em São Paulo, em uma das salas do Reserva Cultural, com apoio da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; no mesmo dia, o Estadão publicou uma página inteira sobre o filme, com texto do sempre bom Luiz Carlos Merten. É um destaque merecidíssimo – maior do que em geral merecem vários documentários brasileiros recentes, porque de fato é um filme mais importante do que muitos desses outros.
Não é fácil um documentário sobre tema sério, pesado, denso, obter espaço no circuito comercial, mas espero que Cidadão Boilesen consiga chegar a salas de todas as maiores cidades brasileiras.
Tive bem perto de mim um exemplo, uma prova de como Cidadão Boilesen deverá ser, sem dúvida alguma, muito falado, comentado. Meu irmão Floriano – sujeito muitíssimo bem informado, atento, que já chamei aqui, no comentário sobre O Advogado do Terror, de enciclopédia ambulante – viu o filme duas vezes, nos primeiros dias de exibição no Reserva Cultural. E, em e-mail para nosso irmão Geraldo, com cópia para mim, diz que ele, Geraldo, precisa ver o filme, tem que ver o filme, “excelente, magnífico”: “se o filme não estiver em cartaz no Paraná, venha vê-lo, com Eneida, aqui em São Paulo. Ofereço-me para ser acompanhante, cicerone e motorista de vocês”.
Não duvido nada: muita gente vai com certeza reagir ao filme de forma tão intensa quanto meu irmão. A vitória de Chaim Letewski já está garantida.
Cidadão Boilesen
De Chaim Litewski, Brasil, 2009
Roteiro Chaim Liteski
Fotografia Cleisson Vidal, José Carlos Asbeg, Ricardo Lobo
Montagem Pedro Asbeg
Música Lucas Marcier, Rodrigo Marçal
Produção Palmares
Cor e P&B,
***1/2
Quer dizer que a Folha de São Paulo, além de ter colaborado diretamente com o processo de torturas, ainda vem como esse papo de ‘ditabranda’?
Necessários, agora, documentários outros sobre os circuitos repressivos da ditadura. O caso-Dan Mitrione, v.g., e suas ligações com não só as “elites”, mas com inúmeros setores das classes médias, servidores civis da União, estados e municípios. A prisão dos nove chineses, logo em seguida ao golpe de 1964, e o prolongadíssimo processo de sua libertação e deportação, a cargo de Sobral Pinto e Danilo Santos. Há muita coisa a vasculhar e muita indiferença também sobre um período em que se revelou “ad nauseam” que brasileiros não são assim tão bonzinhos…