
(Disponível na Netflix em 12/2025.)
“Esta é uma história real sobre dois homens que o mundo esqueceu. Um foi o 20º presidente dos Estados Unidos. O outro atirou nele.”
Essas três frases são a abertura – e, meu, que maravilha de abertura! – da minissérie Death by Lightning, no Brasil Como um Relâmpago. É uma produção de 2025 com suntuosa reconstituição de época, cheia de caprichadas sequências com dezenas e dezenas de extras, e belas interpretações de todo o elenco, com destaque para os atores que interpretam os dois protagonistas, o presidente americano e o homem que atirou nele, Michael Shannon e Matthew Macfadyen.
“Dois homens que o mundo esqueceu.”
Duvido que algum eventual leitor saiba quem foi o 20º presidente dos Estados Unidos. Mary não se lembrava do nome dele, nem eu – e, diacho, não somos assim propriamente pessoas mal-informadas. Não é frescura, metideza, mas conheço bastante de História dos Estados Unidos, através de décadas de leitura e de centenas, centenas de filmes. Mas nunca tive a informação de que, além de Abraham Lincoln e John F. Kennedy, um outro presidente tivesse sido vítima de atentado fatal enquanto estava no poder.
E dá para apostar que a imensa maioria dos jovens americanos sai da escola sem saber dos personagens de Death by Lightning.
Sem dúvida, os realizadores desta bela série sabiam muito bem do que estavam falando quando decidiram que a primeira coisa que os espectadores veriam na tela seria esta frase, em letras brancas sobre fundo negro: “Esta é uma história real sobre dois homens que o mundo esqueceu”.
James Abram Garfield nasceu em 1831, em uma cabana de madeira no interior de Ohio, um dos cinco filhos de uma família pobre. Tornou-se pregador religioso, advogado, foi alto oficial da União contra os Confederados na Guerra Civil, e elegeu-se sucessivas vezes para a Casa dos Representantes, a Câmara dos Deputados americana, pelo seu Estado natal.
Não pretendia, de forma alguma, candidatar-se à Presidência – a série mostra isso exaustiva, detalhadamente. Por absoluto acaso, por uma conjunção de fatores circunstanciais, imprevisíveis, foi o escolhido na Convenção Nacional do Partido Republicano, em Chicago, em 1880, como o candidato do partido para enfrentar o democrata Winfield Hanckock.
Venceu por margem estreita, e assumiu a Presidência em 4 de março de 1881. Em 2 de julho – antes, portanto, de completar quatro meses na Casa Branca – foi atingido por um tiro disparado por um sujeito chamado Charles Guiteau.
James Garfield é interpretado por Michael Shannon (na foto logo abaixo). Charles Guiteau, por Matthew Macfadyen. As atuações dos dois são espetaculares – e é absolutamente impressionante como, com todo o trabalho das equipes de maquiagem e cabeleireiros, eles ficaram parecidos com as pessoas reais que interpretam.
Essa semelhança física é um dos muitos gols dos realizadores da série. Minissérie, para ser exato. São apenas quatro episódios, com cerca de 50 minutos cada.


Um louco varrido que passa da admiração incontida ao ódio cego
O tom da narrativa, evidentemente, é sério. Não se faz troça, graça, com assuntos como este – a convenção que escolhe um candidato à Presidência, as primeiras semanas do novo governo, enquanto, paralelamente, mostram-se as ações do homem que viria a atirar contra o presidente da República. Mas os realizadores se permitiram o uso, aqui e ali, do que eu entendi como ironia – e ironia é algo amargo, e não engraçado.
Ironia é o tom da primeira rápida sequência que vemos na tela, logo após aquelas três frases.
Letreiros explicam o quando e onde – e esse recurso, que sempre ajuda o espectador, será usado ao longo de todos os quatro episódios. “1969 – Museu Médico do Exército, Washington, D.C.” – lê-se, enquanto vemos um amplo, gigantesco galpão com prateleiras entulhadas de preciosidades que o público jamais vê.
(E, diante dessa visão de tesouros guardados em gigantesco depósito pertencente ao governo dos Estados Unidos, não há como a gente não se lembrar da última sequência – cheia de ironia triste, amarga – de Caçadores da Arca Perdida, com que Steven Spielberg nos brindou em 1981…)
Há agitação naquele depósito do museu. Parece estar havendo alguma reforma, algum remodelamento. Um funcionário obviamente em cvrgo de chefia manda os homens se apressarem – tudo deverá ser retirado, e com rapidez.
Um dos homens deixa cair uma caixa, e de dentro dela rola um vidro bem fechado – um vidro parecido com esses de maionaise Hellman’s, só que grande. Super big close-up de um sapato interrompendo a trajetória do vidro. O oficial pega o objeto, outros chegam perto para ver o que é aquilo. Super big close-up do vidro nas mãos do homem, e vemos que, sim, é um cérebro, flutuando em um líquido para mantê-lo conservado. Uma etiqueta explicita: “Charles J. Guiteau – BRAIN”, assim, em maiúsculas, como se fosse possível haver alguma dúvida.
E o oficial faz a pergunta, que, em português um tanto polido, é: – “Quem diabos é Charles Guiteau?”, e no original tem a sonora four-letter word – “Who the fuck is Charles Guiteau?”
Corta, e vemos Charles Guiteau-Matthew Macfadyen sendo acordado em sua cela por um guarda. O letreiro dá o quando e o onde: “1880 – As Tumbas – Cidade de Nova York”. Cortam o cabelo comprido do homem, botam nele um terno para que esteja apresentável diante da meritíssima autoridade que vai interrogá-lo sobre as fraudes de que é acusado.
O Charles Guiteau que os realizadores da série e o ator Matthew Macfadyen compuseram é um louco varrido, um doido de pedra – mas inteligente, esperto, bastante culto e extremamente hábil com as palavras, com vocabulário riquíssimo e boa oratória.
A série mostra que, quando criança e adolescente, ele sofria com castigos do pai rígido, exigente. Adulto, havia passado um tempo na Comunidade Oneida – uma seita religiosa que adotava o amor livre –, de onde saíra porque nenhuma mulher queria saber dele. A única pessoa que gostava do sujeito, e por ele fazia qualquer concessão, era sua irmã, Franny (Paula Malcomson), uma mulher de coração imenso.
Um louco varrido inteligente – e trambiqueiro. Vivia dando (ou tentando dar) golpes aqui e ali. Lá pelas tantas, hospeda-se na casa da irmã, contra a vontade do marido dela, George (Ben Miles) – e desaparece de lá depois de arrombar e esvaziar o cofre do cunhado.
Quando a Convenção Nacional Republicana acaba escolhendo James Garfield, Charles Guiteau vira um fanático admirador do político. Absolutamente fanático. Mais tarde, de repente, com a mesma absoluta, incontida paixão, passa a achar que Garfield é o causador de todos os males do mundo – e surge a idéia fixa de que vai matá-lo.


Os convencionais votaram 36 vezes até que houvesse maioria
Uma boa parte do primeiro dos quatro episódios se passa durante a Convenção Nacional Republicana. John Sherman (Alistair Petrie), um pré-candidato sério, bem intencionado, reformista, havia pedido a James Garfield que fizesse o discurso de lançamento oficial de sua candidatura – e Garfield aceitara com prazer. Tinha admiração por Sherman. Este, por sua vez, achava que não tinha chance de vencer a indicação na convenção, mas queria ao menos dividir um pouco os votos dos convencionais. Sua intenção era enfrentar o grupo representado por Roscoe Conkling (Shea Whigham), um senador por Nova York mostrado como corrupto, que apoiava Ulysses S. Grant para um novo mandato (o general que chefiara as tropas da União durante a Guerra Civil já havia sido presidente por dois mandatos, entre 1869 e 1877).
Garfield faz um discurso a favor de Sherman brilhante, forte, apaixonado, que provoca furor entre muitos convencionais.
No primeiro escrutínio, Grant tem o maior número de votos, mas não a maioria dos convencionais, necessária para a indicação do candidato do Partido Republicano à Presidência. James Blaine (o papel de Bradley Whitford), senador pelo Maine, ele também apresentado como um político respeitável, progressista, tem 282, John Sherman, 94. Dois ou três outros pré-candidatos têm uns poucos votos – e o próprio James Garfield recebe 1.
Novas votações vão sendo feitas, e ninguém atinge a maioria necessária. Vão pingando alguns votos a mais para Garfield, e ele se assusta, diz que não é candidato, que está ali para defender a candidatura de Sherman – mas não adianta. A cada novo escrutínio, vai crescendo o número de votos para ele.
Na 36ª votação ele obtém a maioria.

Garfield teria sido um grande presidente, mostra a série
A série mostra Charles Guiteau – como já foi dito – como um louco de pedra inteligente e trambiqueiro. Já James Garfield é desenhado pelos realizadores como um homem bom, íntegro, correto, bom marido, bom pai – ele e a mulher, Crete (Betty Gilpin, na foto abaixo), têm uma penca de filhos. E um político de excelentes posições – um progressista, defensor de reformas, batalhador pelos direitos dos negros.
Aliás, o preconceito racial de boa parte da sociedade naqueles anos pouco após a Guerra Civil. é um ponto bastante presente na série.
Vemos que Garfield enfrenta uma oposição cerrada, virulenta – não dos adversários democratas, mas dos próprios republicanos, da ala liderada pelo corrupto Roscoe Conkling.
A gente termina de ver a série com a idéia de que esse senhor James A. Garfield poderia ter sido um excelente presidente da República, assim na linha de um Franklin D. Roosevelt, um Barack Obama – se não tivesse cruzado seu caminho o doido varrido Charles Guiteau.
A série se baseia no livro de uma pesquisadora
O título original da série, Death by Lightning, morte por relâmpago, foi retirado de uma frase de carta que Garfield escreveu a John Sherman, a respeito de possíveis ameaças à sua vida: “Não há como se proteger de um assassinato, assim como não se pode se proteger de um raio, e é melhor não se preocupar com nenhum dos dois”.
Meu Deus… Parecia um presságio…

Death by Lightning foi criada e dirigida por nomes que eu não conhecia. Matt Ross, o diretor, da classe de 1970, tem 38 títulos como ator na filmografia, e 10 como diretor, inclusive Capitão Fantástico (2016), uma comédia dramática sobre paternidade e filhos adolescentes.
Mike Makowsky, o criador e autor do roteiro de todos os quatro episódios, é danado de jovem – nasceu em Nova York em 1991. Ganhou um Emmy pelo filme Má Educação/Bad Education, de 2019, do qual é co-autor do roteiro, ao lado de Robert Kolker.
Mike Makowsky se baseou no livro da jornalista e escritora Candice Sue Millard Destiny of the Republic, que tem o subtítulo A Tale of Madness, Medicine and the Murder of a President – uma história de loucura, medicina e o assassinato de um presidente. A autora tem três outros livros reconstituindo episódios históricos: The River of Doubt, sobre a expedição científica de Theodore Roosevelt e o marechal Cândido Rondon na Amazônia em 1913 e 1914; Hero of the Empire, sobre as atividades de Winston Churchill durante a guerra dos boers na África do Sul; e River of Gods, sobre a busca pela nascente do Rio Nilo.
O livro sobre James Garfield e Charles Guiteau foi lançado em 2011 e recebeu fartos elogios na imprensa americana. No Washington Post, uma resenha assinada por Del Quentin Wilber definiu: “Millard confeccionou uma narrativa atraente que explora alguns dos dias mais dramáticos da história da Presidência dos Estados Unidos”. O livro ganhou quatro prêmios, inclusive o Edgar Award de melhor livro sobre crime real.
A série que esse Mike Makowsky criou em cima do livro de Candice Sue Millard me encantou – pela história impressionante, fascinante, incrível, que merece ser divulgada, e também, é claro, pela qualidade da produção.
Fiquei muito impressionado como o roteirista e o diretor não evitaram grandes tomadas gerais que exigissem imenso cuidado de reconstituição histórica. Muito ao contrário: a série abusa dessas tomadas – e a beleza da reconstituição de época é impressionante.
O site RogerEbert.com, que preserva a memória do grande crítico, deu 3.5 estrelas em 4 à série. Eis o início do texto assinado por Richard Roeper:
“A minissérie dramática da Netflix Death by Lightning começa com um cérebro em uma jarra no chão enquanto “Everyday People” com Sly and the Family Stone está tocando no rádio. Se isso não agarra o espectador, não sei o que poderia agarrar.
“Estamos em 1969, no que na época era conhecido como o Museu Médico do Exército, enquanto uma equipe embala artefatos em um depósito. Uma caixa cai. Uma jarra empoeirada contendo um cérebro humano rola pelo chão. Um trabalhador examina aquilo e pergunta: ‘Who the f*** is Charles Guiteau?’
“É uma pergunta que faz sentido. Pergunte a alguém o nome de assassinos de presidentes, e eles certamente responderão com os nomes de John Wilkes Booth e/ou Lee Harvey Oswald. (Claro: os assassinos, respectivamente, de Lincoln e Kennedy.) Até os nomes de quase-assassinos como a discípula de Manson, Lynette “Squeaky” Fromme e John Hinckley Jr. são mais conhecidos do que o do delirante Charles Guiteau, que atirou no presidente James A. Garfield na estação de trem de Washington no dia 2 de julho de 1881, com Garfield sucumbindo a suas feridas 79 dias mais tarde.”
Cerca de um mês depois do lançamento mundial da série pela Netdlix, em 6 de novembro de 2025, ela estava com nota 7,7 em 10 no IMDb, média da nota dada por mais de 11 mil leitores do site.
No Rotten Tomatoes, a série tinha 91% de aprovação dos críticos e 86% entre os leitores do site.
Merece. É uma bela série.
Anotação em dezembro de 2025
Como um Relâmpago/Death by Lightning
De Mike Makowsky, criador, roteirista, EUA, 2025
Direção Matt Ross
Com Michael Shannon (James A. Garfield).
Matthew Macfadyen (Charles J. Guiteau)
e Betty Gilpin (Lucretia Garfield, Crete, a mulher de James Garfield), Shea Whigham (Roscoe Conkling, senador por Nova York), Bradley Whitford (James Blaine, senador pelo Maine), Nick Offerman (Chester A. Arthur, o coletor da alfândega do porto de Nova York, do grupo político de Roscoe Conkling), Paula Malcomson (Franny Scoville, a irmã de Charles Guiteau), Ben Miles (George Scoville, o marido de Franny), Alistair Petrie (John Sherman, o candidato apoiado por Garfield na convenção republicana), Laura Marcus (Mollie Garfield, a filha mais velha de James e Crete). Archie Fisher (Joe Brown). Stuart Milligan (George F. Hoar), David Nykl (Levi Morton), Richard Rycroft (Spurlock), Michael Carter (James Joy), Dominic Applewhite (W.A.M. Grier), Andrew Hefler (Tom Platt, senador por Nova York), Daniel Gosling (John Foster), Vondie Curtis-Hall (Frederick Douglass). Tuppence Middleton (Kate Chase Sprague), Bronagh Waugh (Myrna, a puta de Charles Guiteau),Barry Shabaka Henley (Blanche Bruce), Nicholas Woodeson (Charles D.A. Loeffler), Christine Grace Szarko (Susan Ann Edson), Daniel Betts (John Humphrey Noyes), Željko Ivanek (dr. Willard Bliss), Shaun Parkes (dr. Charles Purvis), Kyle Soller (Robert Todd Lincoln), Richard Rankin (Alexander Graham Bell)
Roteiro Mike Makowsky]
Baseado no livro “Destiny of the Republic: A Tale of Madness, Medicine, and the Murder of a President”, de Candice Millard
Fotografia Adriano Goldman
Música Ramin Djawadi
Montagem Anna Hauger, Joseph Krings, Joe Leonard. Michael Ruscio
Direção de arte Csaba Banyai, Matthew Hywel-Davies, Attila Illés. Zoltán Sárdi
Casting Nicole Abellera, Jeanne McCarthy
Figurinos Michael Wilkinson
Produção Olly Robinson, Hameed Shaukat, Bighead Littlehead
Pioneer Stillking Films, Slater Hall Pictures.
Cor, cerca de 200 min (3h20)
***1/2
