O Segredo do Rio / El Secreto del Río

4.0 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em 10/2024.)

É uma beleza, uma maravilha O Segredo do Rio, minissérie mexicana de 2024. Uma ode à amizade, à solidariedade, ao respeito às diferenças, um emocionante memorial contra os preconceitos, o machismo. Uma trama envolvente, rica, interpretações impressionantes, um visual acachapante – mas, sobretudo, uma obra feita com imensa, infinita sensibilidade.

Coisa finíssima. Uma gema rara.

Me ocorreu, entre um e outro dos oito episódios da série: é fantástico que a trama tão bem urdida, tão cheia de situações impactantes, tantos personagens críveis, bem construídos, não seja a adaptação de um grande romance da literatura latino-americana. Poderia perfeitamente ser. Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, Juan Rulfo, Carlos Fuentes – sou capaz de chutar que os grandes autores todos gostariam de ter escrito essa história que Alberto Barrera criou diretamente para a minissérie que a Netflix viria a exibir.

Alberto José Barrera Tyszka. Aprendo agora que este sujeito – autor de seis romances, três volumes de contos, três de não ficção e 14 histórias originais de telenovelas produzidas na Argentina, Colômbia, México e Venezuela – não é mexicano, e sim venezuelano, de Caracas, da classe de 1960. Impressionante! Como pode ter feito uma trama tão mexicana, tão enraizada no interiorzão do México?

Bem… Talento é talento. E não é necessário ser mulher para escrever sobre mulheres, nem negro para escrever sobre negros, etc, etc, etc. E os valores que O Segredo do Rio defende – todos aqueles valores corretos, de respeito às diferenças – afinal são universais.

A série tem, no entanto, um elemento que é muito especificamente mexicano. Mais especificamente ainda da região do Istmo de Tehuantepec, no Estado de Oaxaca, no sul do México – o local em que se passa a história dos amigos Manuel e Erik. É ali, e só ali, que, desde muito, muito tempo, há muitos séculos, existem três gêneros de seres humanos: os homens, as mulheres e as muxes.

Ao contar a história da amizade de Manuel e Erik, O Segredo do Rio trata – maravilhosamente bem – da questão dos gêneros. Dos machos que – muitos deles – não suportam a existência dos maricóns, bichas, veados, frescos, e são capazes de todo tipo de violência contra eles. Das pessoas que nascem em corpo de homem mas se sentem mulheres, desde sempre, desde a infância – como o garoto Manuel. E fala das muxes, esses seres que não se definem nem como homens nem como mulheres.

Um menino enviado pela mãe para ficar com a avó

O garoto Manuel nascera na região do Istmo, mas não havia sido criado lá: quando estava com cerca de um ano, a mãe, Carmen (Vicky Araico), havia se mudado de seu povoado natal para longe. No começo da narrativa – logo após a sequência de abertura, que mostra o fato que dá o título da série, El Secreto del Río – vemos Manuel, um garoto de uns 10 anos de idade, chegando de ônibus ao povoado em que nascera, e onde se passará toda a história. Havia sido enviado pela mãe para passar as férias ali, com a avó materna, Rafaela (Mercedes Hernández), uma senhora que é a bondade em pessoa, uma descendente dos zapotecas, um dos povos originários da terra que veio a ser o México.

Manuel não tinha a menor idéia disso, mas, na verdade, não era apenas para passar as férias que a mãe o havia enviado para ficar com a avó. Com câncer, em estado grave, Carmen não queria que o filho a visse sofrer, e precisava se internar. Podia confiar na mãe – Rafaela saberia perfeitamente cuidar do garoto. E havia ainda uma vantagem em que Manuel fosse para lá: o filho de sua grande amiga Luísa (Iazua Larios), Erik (Mauro Guzmán), tinha exatamente a mesma idade do seu próprio filho. Os dois não se lembravam, é claro, mas haviam convivido muito quando bebês.

Carmen não contava era com o fato de que Jacinto, o marido de sua amiga Luísa, o pai de Erik, era um desse do tipo mais nojento, mais vomitativo de machista preconceituoso, que, ao bater os olhos no garoto Manuel, achou que menino tinha jeito de maricón. E que, desde o primeiro momento, iria se colocar contra a aproximação entre Erik e Manuel.

Como sempre faço, vou relatar bastante da trama – procurando evitar, naturalmente, qualquer tipo de spoiler. Mas, antes de mais nada, é preciso falar das muxes, esses seres dos quais Manuel nunca ouvira falar – assim como, creio, chuto, uns 98% dos espectadores que estão vendo e vão ver esta bela minissérie.

O garoto fica mesmerizado ao ver uma muxe

Na primeira vez que Manuel vê uma muxe, estamos com apenas 8 minutos do primeiro dos 8 episódios da série. E, uau, que sequência!

Rafaela, a avó, combinara com Manuel que ele faria as entregas das comidas que ela cozinhava. O povoado era pequeno, ele não teria dificuldade alguma. E então, quando estamos aí com 7 minutos e pouco do primeiro episódio, o garoto está no mercado da cidade, fazendo entregas, quando surge Solange, uma figura grande, volumosa, vestido roxo, imensos brincos dourados, imensa fita rosa forte nos cabelos. Ela chega ao local chegando, imensa, alegre, cumprimentando todo mundo pelo nome, misturando zapoteca com espanhol.

Manuel fica mesmerizado.

Uma vendedora comenta alguma coisa com a colega do lado, olhando para ele. Manuel explica que não fala zapoteca, e a moça então fala em espanhol: – “Parece que nunca viu uma muxe!”

Vamos à Wikipedia:

“Muxe é um termo zapoteca que faz referência ao gênero que define uma pessoa de sexo masculino que assume papéis femininos em qualquer dos âmbitos social, sexual e/ou pessoal. Na região zapoteca do istmo de Tehuantepec estima-se a existência de 3 mil muxes.

“As pessoas muxe correspondem à parte da diversidade sexual e de gênero, encontrando seus equivalentes em termos como travestis, mulheres transgênero e mulheres transexuais. Alguns muxes se identificam como homens gay e sua identidade de gênero é masculina. Há variedades dentro da comunidade muxe.

“Os zapotecas ocupavam uma posição na Mesoamérica como uma das civilizacões mais antigas e avançadas. Alguns dos primeiros exemplos de grande arquitetura neste continente foram desenhados e erguidos por eles. O termo muxe pode ser usado inclusive como um sinônimo da palavra transexual.”

Enciclopédia é enciclopédia. O estilo é esse. O estilo jornalístico, claro, é diferente. Eis a abertura de um belo texto jornalístico, assinado por Ola Synowiec, publicado no site em português da BBC em fevereiro de 2019:

” – Qual tratamento você prefere: feminino ou masculino?”, perguntei a Lukas Avendaño, que vestia calças durante o dia, mas à noite usava uma tradicional anágua preta com flores bordadas. Conversávamos em espanhol, que, assim como o português, distingue o gênero de substantivos e pronomes.

“Prefiro que me chame de ‘meu amor'”, respondeu, sorrindo.

Na região de Istmo de Tehuantepec, no Estado mexicano de Oaxaca, há três gêneros: feminino, masculino e muxes. Essa terceira classificação é reconhecida e celebrada desde os tempos pré-hispânicos. E, nessa região onde a maioria das pessoas fala a língua indígena zapoteca, minha pergunta fazia pouco sentido.

” – Em zapoteca, assim como no inglês, não há gênero gramatical. Há apenas uma forma para todas as pessoas. Por isso muxes nunca tiveram de se perguntar se são mais homem ou mais mulher”, acrescentou Avendaño.”

“Há homens e mulheres, e há algo no meio”

         Muxes, como se vê pela abertura da reportagem da BBC, são cultos – ou cultas. Cultes, jamais, porque não entro nessa besteira.

Vou transcrever mais um trecho da reportagem de Ola Synowiec na BBC. Porque, meu, é muito fascinante essa cultura milenar, pré-colombiana, que tem três gêneros…

Lá vai:

         “Somos o terceiro sexo”, completou Felina, que, diferentemente de Avendaño, trocou seu nome de batismo masculino, Ángel, pelo apelido. “Há homens e mulheres, e há algo no meio, que sou eu.”

Eu participava da Vela de Las Intrepidas, uma celebração anual de muxes, realizada a cada novembro em Juchitán de Zaragoza, uma pequena cidade em Istmo de Tehuantepec. Notava que seus estilos eram bem diversificados.

Havia muxes que, como as tehuanas (mulheres de Istmo de Tehuantepec), vestiam a mesma roupa ricamente bordada inspirada no visual de Frida Kahlo. Outras usavam vestidos de estilo ocidental ou se apresentavam como drag queen. E havia ainda aquelas com roupas masculinas, mostrando seu status apenas com uma maquiagem simples e as unhas pintadas.

“É difícil descrever quem é muxe. É basicamente qualquer pessoa que nasceu homem mas não age como tal”, afirmou Avendaño.

“O que conhecemos, ‘sob os olhos ocidentais’, como ‘travesti masculino para feminino’, ‘transexual masculino para feminino’, ‘gay afeminado’ ou ‘gay masculino’ parece estar incluído na categoria de ‘muxe’, desde que haja também um forte componente de identidade étnica”, escreveu o antropólogo Pablo Céspedes Vargas no artigo “Muxes at work: between community belonging and heteronormativity in the workplace (“Muxes no trabalho: entre o pertencimento de comunidade e a heteronormatividade no espaço de trabalho”).

De maneira similar, Avendaño enfatizou que ‘muxe’ é um termo zapotec e que não pode ser entendido sem se compreender sua cultura. Isso porque o conceito de muxe existe apenas em Istmo de Tehuantepec, onde são parte importante da comunidade.

A série abre com a sequência que dá o título

Solange, a primeira muxe que Manuel vê na vida, que o deixa mesmerizado, é um personagem fundamental na trama de O Segredo do Rio. Eu diria que Solange é o quarto personagem mais importante da série, depois dos dois amigos Manuel e Erik e de Paulina, a garotinha da mesma idade dos dois, simpática, fofa, que forma com eles um belo trio.

Por mero acaso, ou por coincidência, tanto faz, Paulina (Lisa Rivas) é filha de Orlando (Humberto Busto), o chefe do destacamento de polícia ali do vilarejo.

Orlando vai investigar, com esmero, cuidado, as circunstâncias da morte de Sérgio (Fernando Cuautle), bem no dia de seu casamento com Ana (Teté Espinoza), a irmã de Luísa e tia de Erik.

As circunstâncias da morte de Sergio são o que dá o título da série. El Secreto del Río. The Secret of the River. Das Geheimnis des Flusses, como me informou Inês, minha filha hoje quase tedesca, quando indiquei a série para ela. Il Segreto del Fiume, na língua de Antonioni, Fellini, Visconti e De Sica.

Acontece na primeira sequência da série. Logo de cara, seguindo aquele grande achado que eu chamo de narrativa laço e alguns críticos de cinema de “in media res”, o latinório para “no meio das coisas” – abrir com um momento de clímax, para fisgar de uma vez o espectador, e em seguida voltar no tempo e relatar o que aconteceu antes, o que levou até aquele ponto. O que no jornalismo se chama lead – o mais importante no primeiro parágrafo. O que, na literatura – já que falei dos gigantes latino-americanos -, não há qualquer outro como o de García Márquez em sua obra-prima: “Muitos anos mais tarde, diante do pelotão de fuzilamento, Aureliano Buendía se lembraria do dia em que seu avô o levou para conhecer o gelo”.

Um garotinho corre no meio de um bananal – a câmara o mostra de costas, em plano geral. Surge no mesmo lugar um homem que caminha tropegamente. Corta. Close-up do garotinho, que mexe com a mão direita em uma pulseira feminina no pulso esquerdo.

– “Manuel?”, pergunta uma voz de homem. – “Manuelito?”

Plano geral – o homem trôpego se aproxima do local em que Manuel está sentado, uma espécie de boca de uma caverna, um rio passando por ali.

Plano geral – um outro garoto vem chegando, enquanto a voz em off de Manuel grita: – “Eu não quero. Socorro! Não! Me solta!”

O garoto que chega – veremos depois que se chama Erik – tem o olhar assustado com o que vê. E o que ele vê é mostrado em tomada bem rápida: o adulto está segurando Manuel no colo, forçando para que fiquem juntos.

Erik pega um galho de árvore caído no chão, aproxima-se de Sérgio que segura Manuel. Os dois garotos lutam contra o homem. O homem tropeça numa pedra, cai para trás, para dentro do rio. Uma tomada sub-aquática mostra a nuca dele batendo numa pedra, o sangue manchando a água.

Os dois garotos, chocados, sem acreditar no que está acontecendo, olham para o rio, ´para o homem que tentou estuprar Manuel morto, no fundo do rio. Fade out, tela negra por milésimos de segundo, surge o título em letras brancas – El Secreto de lo Río.

Não há créditos iniciais – apenas o nome da série. Corta, close-up do rosto do garotinho Manuel, em um ônibus, rumo ao povoado de sua avó Rafaela.

Os dois meninos vão ficando cada vez mais próximos

O garoto Erik demora um pouco para se aproximar do recém-chegado Manuel, apesar de sua mãe e a avó do outro incentivarem o convívio dos dois. Erik nota que Manuel não é como os outros meninos: não gosta de jogar beisebol ou futebol, tem um jeito diferente de andar, de gesticular, de mexer com as mãos. Parece mesmo um maricón, como diz Jacinto, o pai. Mas, com o tempo, os dois vão se aproximando, ficando amigos.

Quando começa o novo período escolar, Manuel é matriculado na escola do vilarejo, e passa a frequentar a mesma classe de Erik e de Paulina, a garotinha simpática que Erik quer namorar. Como infelizmente seria de se esperar, Manuel sofre bullying dos colegas machistinhas, liderados por um bostinha chamado Bráulio (Jorge Briseño). Só Erik e Paulina o defendem.

Erik ensina o novo amigo a se defender e usar os punhos e as mãos os outros como um boxeador. Solange, a muxe, que a essa altura já se aproximou de Manuel, ensina os dois garotos a usarem os pés numa eventual briga – e, lá pelas tantos, o projeto de homofóbico Bráulio e seus amigos levam uma baita surra de Erik e Manuel.

Chega então o dia do casamento de Sergio e Ana, a tia de Erik. A festa é enorme, envolve todo mundo do vilarejo. Os homens bebem demais. Sergio, bêbado, vai atrás de Manuel, que tinha ido até o rio que passa perto da cidadezinha.

Quando o sujeito bêbado parte para agarrar o garoto, chega Erik, acontece o acidente, a morte.

No meio do choque, os garotos concluem que, se contarem a verdade, poderão ser acusados de ter provocado a morte do sujeito. Juram não contar nada para ninguém – e voltam para a festa.

Há um detalhe, um problema, um enrosco sério: Manuel estava usando uma pulseira que era da sua mãe – e, de volta à festa, percebe que perdeu a pulseira, muito provavelmente no lugar em que foi atacado por Sergio.

Depois de dias de buscas pelo noivo bêbado desaparecido, o corpo é encontrado. Orlando, o chefe da polícia do lugar, encontra a pulseira. E, nas fotos feitas durante a festa, ele vê o objeto no pulso de Manuel.

Há todo um suspense aí – a série coloca o espectador curiosíssimo para saber se Orlando vai chegar a elucidar o caso da morte, se os garotos serão descobertos.

A amizade dos dois garotos vai ficando cada vez mais forte.

A mãe de Manuel morre, e o pai machista aparece

Carmen, a mãe de Manuel, morre.

O espectador já havia sido informado de que o pai do garoto não gostava nada dele. Havia abandonado a mulher e o filho, casado de novo, tido dois outros filhos.

Rafaela, a avó, tem muito medo de que o ex-genro – um sujeito bruto, boçal, machista, homofóbico – queira pegar o filho, agora que a mãe está morta.

Jacinto, o pai de Erik, sempre incomodado com a amizade do filho com o menino que para ele era um maricón, comete o crime de telefonar para o pai de Manuel e dizer que o garoto está ali, sim, vivendo com a avó.

O sujeito viaja até lá e exige que Rafaela entregue a ele o menino.

Isso acontece perto do fim do quarto dos oito episódios da minissérie. Àquela altura, suspirei fundo e comentei com a Mary que não teria estômago para ver a tortura a que aquele brutamontes submeteria o filho na sua versão furiosa de “cura gay”. Mary, sempre mais esperta do que eu, sacou tudo. Disse que a série não iria entrar nessa – haveria um corte no tempo.

Batata.

Um letreiro informa: “Vinte anos mais tarde”.

O eventual leitor que não viu a série ainda deveria parar de ler por aqui. Não vou revelar o final da trama, é claro – mas, a rigor, a rigor, a rigor, qualquer relato sobre a segunda parte da história é um tanto de spoiler.

Atenção: quem não viu a série deveria parar por aqui

Ao mesmo tempo, acho que não poderia deixar de dizer, nesta anotação, que há esse salto no tempo. É fundamental fazer o registro.

Tomo o máximo de cuidado para evitar revelar o que seria absolutamente spoiler.

No comecinho do quinto episódio, Manuel chega de volta ao vilarejo. Não é mais Manuel – é Sicarú, uma bela, atraente mulher, o papel de Trinidad González, modelo famosa, requisitada, que já foi capa da revista Elle. Sicarú vive faz muitos anos nos Estados Unidos, com um companheiro que ama, Adrian (Romanni Villicaña).

Haverá toda uma subtrama policial, envolvendo um garotinho, Emiliano (Kaarlo Isaac), que é mantido preso exatamente na casa que havia sido de Rafaela, a avó – cuja propriedade Sicarú vinha reivindicar. A polícia do local agora é chefiada por Bráulio – sempre machista, homofóbico, e muito mais.

Mas, naturalmente, o principal dessa segunda parte da série é o reencontro do ex-Manuel agora Sicarú com o grande amigo que não via havia 20.

Erik (agora interpretado por Diego Cava) está casado, e bem casado, com Paulina (Yoshira Escárrega).

Paulina fica felicíssima em rever o antigo amigo, agora mulher. Erik a princípio se retrai.

Pronto. Não creio que tenha propriamente apresentado spoilers.

E, tendo chegado até aqui, posso dizer: são lindíssimos os vários momentos em que convivem na tela Erik e Sicarú e os garotos que eles haviam sido, duas décadas antes.

O criador e roteirista Alberto Barrera e os diretores Ernesto Contreras, Alba Gil e Alejandro Zuno usam e abusam dessa licença poética linda – os dois adultos vendo-se como eram quando crianças.

É sempre bom lembrar que essa espetacular sacada cinematográfica, adultos vendo-se quando crianças, e o espectador vendo as crianças e os adultos, foi usada por Ingmar Bergman em Morangos Silvestres, de 1957. Woody Allen, um discípulo do mestre sueco, também soube usar essa sacada.

Mas não importa, absolutamente não importa que o recurso não seja novidade. As sequências em que Sicarú e Erik adultos convivem com Manuel e Erik crianças são belíssimas.

Um elenco homogeneamente muito bom

Ernesto Contreras dirigiu quatro episódios; Alba Gil e Alejandro Zuno dirigiram duas cada um.

Fico sempre impressionado com essa coisa de as séries terem vários diretores – e no entanto parecem ter sido obra de uma pessoa só. É preciso haver uma absoluta colaboração entre eles. É preciso que nenhum deles queira aparecer, impor seu estilo pessoal. É preciso que haja humildade, e solidariedade, na busca de um resultado homogêneo, escorreito.

Esses três diretores conseguiram. Não dá para diferenciar um episódio dirigido por um de um dirigido por outro. Todos têm o mesmo estilo, homogêneo.

E os três diretores conseguiram a maravilha de reger o trabalho de um grande elenco que ficou admirável. Não há atuação ruim ali – muito ao contrário.

Um resultado fantástico, já que há ali, entre atores testados, experientes, várias crianças – e uma estreante. Trinidad González, a intérprete de Sicarú que havia sido Manuel, nunca trabalhara antes como atriz. Era uma modelo bastante requisitada, famosa, quando, aos 24 anos, foi escolhida para o papel.

Não creio que seja machismo, porco-chauvinismo, homofobia, transfobia o espectador que não conhece Trinidad González se perguntar se aquela atriz bonita, atraente, é transgênero ou não. Mary achou que não era, que era pessoa nascida mulher. Eu achei que era transgênero – como outra mexicana, Nava Mau, que interpreta Teri na minissérie Bebê Rena, do mesmo ano deste O Segredo do Rio, 2024. Desta vez fui eu que acertei.

“Eu vivi uma infância rara, uma infância muito solitária por não ser compreendida como criança trans”, ela contou em uma entrevista à Vogue México. “Minha família é muito católica, de tal forma que criar-me com este vínculo religioso, mas rechaçando-me a mim mesma, era distanciar-me das pessoas e me esconder um pouco.”

“Não deixo de pensar na Trinidad de 9 anos se estivesse vendo isso. Penso nela e me comove até as lágrimas imaginá-la cheia de orgulho, de nos ver, sorrirmos e saber que com isso basta”, escreveu nas redes sociais.

O nome da pessoa que faz Solange, a muxe absolutamente especial, que tem importância imensa na trama, é tão surpreendente quanto ela mesma: La Bruja de Texcoco.

Nasceu na Cidade do México, em data que não divulga, e foi batizado como Octavio Mendonza. É cantora, compositora, instrumentista e bailarina, e sua marca registrada é misturar a música folclórica mexicana com os mais diversos gêneros, e nas suas apresentações usa máscaras, lantejoulas e huipiles (a vestimenta tradicional mais comum usada por mulheres indígenas do México), num visual alegre, colorido. Foi a primeira artista trans a se apresentar no Festival Vive Latino em 2020, e já fez shows na França, Alemanha, Espanha, Portugal e Países Baixos.

Sua filmografia como atriz ainda é bem pequena. Antes de interpretar Solange em O Segredo do Rio, participou de um curta-metragem em 2021 e de quatro episódios da série de TV Tenho Que Morrer Todas as Noites.

Depois desta série, é bem possível que venham muitos novos convites para a TV e o cinema. E o mesmo se pode dizer de Trinidad González, após sua estréia como Sicarú.

Bem. Deixei para o fim – propositalmente, é claro – o ator que interpreta Manuel, o garoto com alma de mulher.

Todo o elenco desta série está muito bem, repito – mas o garoto que faz Manuel foi o que mais nos impressionou, a mim e à Mary. É daquelas interpretações marcantes, fantásticas, para figurar na lista dos melhores atores mirins da história, ao lado, só para dar uns poucos exemplos, de Patty Duke em O Milagre de Anne Sullivan (1962), Tatum O’Neal em Lua de Papel (1973), Haley Joel Osment em O Sexto Sentido (1999).

Meu Deus do céu e também da Terra – como conseguiram fazer aquele menino atuar com todo o jeito, o gestual, os modos, os olhares de uma menina?

Fizemos essa pergunta várias vezes, enquanto víamos a série.

Felizmente, tenho o costume de só ler sobre os filmes e/ou séries depois de vê-los.

E aqui vem o grande spoiler.

Se algum eventual leitor tiver chegado até aqui sem ter visto a série, não deve, não pode continuar.

Spoiler, spoiler, spoiler, spoiler, spoiler

O ator que faz Manuel é uma atriz.

E a gente já a havia visto em O Último Vagão, produção de 2023, dirigida pelo mesmo Ernesto Contreras que foi o responsável por quatro dos oito episódios de O Segredo do Rio. Sobre ele, escrevi que “é daqueles filmes carregados de boas intenções e feitos na medida certa para emocionar as pessoas de bem. Fala de educação, da necessidade da educação, de injustiça social, da generosidade e da solidariedade que existe entre as pessoas pobres, de vida difícil, dura.”

E, um pouco adiante: “Não é só para os filmes de Hollywood que funciona aquela lei de que é preciso sempre haver um female interest, uma figura feminina para dar charme à história, e então temos que na escola da professora Georgina há uma garotinha linda, simpática, maior gracinha, chamada Valeria (o papel de Frida Sofía Cruz Salinas, outra criança absolutamente encantadora).”

Frida Sofía Cruz Salinas nasceu em 12 de agosto de 2011, menos de dois anos antes da minha netinha. Estava, portanto, com 13 anos em 2024, quando interpretou Manuel neste O Segredo do Rio.

Estreou em 2021 em um curta-metragem, Olote, em que interpreta Julia, uma criança que vive em uma cidade que é palco da guerra contra o tráfico de drogas. Depois veio O Último Vagão – e em seguida a garota fez O Segredo do Rio.

Bem diferentemente de Trinidad González, que é modelo profissional, e de La Bruja de Texcoco, que é músico, para Frida Sofía a arte dramática é a primeira opção. A garotinha estudou entre 2016 e 2018 no Centro de Educación Artística do México, que, segundo o site norte-americano The Direct, “é umas das instituições de maior prestígio no país”, por onde passaram “alguns dos maiores atores da indústria mexicana de cinema”.

Por sua interpretação da garotinha Valeria em O Último Vagão, Frida Sofía foi indicada ao prêmio de melhor performance infantil do Diosas de Plata, dado desde 1963 pela Associação Mexicana dos Jornalistas de Cinema.

Fico curioso para ver como será a carreira de O Segredo do Rio nas premiações que virão nos próximos meses. A minissérie foi lançada em 9 de outubro de 2024. Não sei como minha amiga Márcia Pinheiro ficou sabendo do lançamento, mas o fato é que logo que ela indicou a série no Facebook fomos atrás.

Ainda bem. Que beleza de trabalho.

Anotação em outubro de 2024

O Segredo do Rio/El Secreto del Río

De Alberto Barrera (criador, roteirista), México, 2024.

Direção Ernesto Contreras (4 episódios), Alba Gil (2 episódios),

Alejandro Zuno, (2 episódios)

Com

20 anos atrás  Nos dias de hoje Personagens
Frida Sofía Cruz Salinas Trinidad González (Manuel/Sicarú)
Mauro Guzmán Diego Cava (Erik)
Lisa Rivas Yoshira Escárrega (Paulina)

Mercedes Hernández (Rafaela, a avó de Manuel), La Bruja de Texcoco (Solange, a muxe especial), Iazua Larios (Luísa, a mãe de Eric), Jorge A. Jiménez (Jacinto, o pai de Erik), Fernando Cuautle (Sergio, o irmão de Luísa), Teté Espinoza (Ana, a noiva e depois viúva de Sergio), Humberto Busto (Orlando, o chefe de polícia e pai de Paulina), Nova Coronel (Ambar, muxe), Jorge Briseño (Bráulio, o garoto homofóbico). Jero Medina (Bráulio adulto), Vicky Araico (Carmen, a mãe de Manuel), Saak (Alejandro, o motorista que namora Silvia), Giselle Kuri (Silvia, a visitante que procura o pai), Carlos Patrick Casanova (Gutiérrez, o policial correto),

Lady Kero (Marina, muxe), Kaarlo Isaac (Emiliano, o garoto salvo por Sicarú), Romanni Villicaña (Adrián, o namorado de Sicarú), David Montalvo (Felipe)

Argumento e roteiro Alberto Barrera (criador)

Fotografia César Gutiérrez Miranda

Música Gus Reyes, Andrés Sánchez

Montagem Jorge Macaya

Produção Jorge Eduardo Ramírez, Perro Azul.

Cor, cerca de 360 min (6h)

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