(Disponível no Cine Antiqua do YouTube.)
O jovem escritor estava batucando furiosamente na máquina de escrever, sentado no deck de sua casa-barco, quando um belo carro parou junto do cais e desceu um homem que ele não reconheceu. Era Jean Renoir, o filho do grande pintor impressionista Pierre-Auguste, e, naquele ano de 1931, já tido como um ótimo diretor de cinema. O escritor admirava seus filmes, apenas não reconheceu a pessoa.
Renoir queria comprar os direitos de um dos romances policiais do jovem, publicado naquele mesmo ano, La Nuit du Carrefour. O jovem aceitou na hora, no que, segundo o site enciclopédico IMDb, foi provavelmente o caso de acordo para venda dos direitos de filmagem mais rápido e mais direto da História do cinema. E ficariam amigos para toda a vida os dois homens – o diretor Jean Renoir e o belga radicado em Paris Georges Simenon.
La Nuit du Carrefour era o sétimo dos 75 romances de Simenon com o comissário Maigret (há também 28 contos). O filme, no Brasil A Noite da Encruzilhada, nos Estados Unidos e no Reino Unido Night at the Crossroads, foi o primeiro a trazer aquele que se tornaria um dos personagens mais marcantes da literatura do século XX – o primeiro de uma lista gigantesca que hoje beira os 200.
Parece coisa de cinema a cena de Renoir descendo do carro e indo se encontrar com Simonon em sua casa-barco, mas ela aconteceu de fato, e está relatada no IMDb. A única coisa que eu acrescentei foi o advérbio “furiosamente”, mas ele não é gratuito, de forma alguma. Georges Simenon escrevia na velocidade de um raio. Ao todo, o cara escreveu 193 romances e 158 contos, além de um imenso número de artigos para jornais e revistas usando, além do seu próprio nome, 27 pseudônimos. Somente naquele ano de 1931, em que ele completou 28 de idade, foram lançados 11 romances com o comissário Maigret.
Nascido em Liège, Bélgica, em 1903, Georges Joseph Christian Simenon morreu aos 86 anos, em 1989, em Lausanne, na Suíça, onde passou os últimos anos da vida. Seus livros foram traduzidos e editados em 44 países, e venderam mais de 500 milhões de exemplares. Dele disse André Gide em 1939: “Simenon é um romancista de gênio, e o mais verdadeiramente romancista que temos em nossa literatura hoje”.
De Jean Renoir, François Truffaut disse simplesmente: “Jean Renoir é o maior cineasta do mundo”.
Do encontro desses dois imensos artistas, era de se esperar uma beleza de obra. O filme que Renoir fez, no entanto, não me pareceu muito especial – mas minha opinião é o que menos importa.
Um comerciante de jóias é assassinado
Para interpretar o comissário Maigret, Renoir chamou seu irmão mais velho, Pierre. Primogênito do grande pintor, Pierre Renoir nasceu em 1885 e começou a carreira de ator em 1911; Jean, o quarto dos cinco filhos de Pierre-Auguste Renoir, é de 1894, e escreveu o primeiro de seus 40 roteiros em 1927. Foi o próprio diretor que escreveu o roteiro e os diálogos deste A Noite da Encruzilhada.
Vou usar a sinopse do livro de Simenon que está na Wikipedia. Vai sem aspas, para me desobrigar a ser literal:
Os fatos acontecem na França dos anos 1930. Na estrada de Paris a Étampes, a três quilômetros de Arpajon, encontra-se a Encruzilhada das Três Viúvas. Ali existem apenas três edificações. Uma é uma villa habitada por um aristocrata dinamarquês, Carl Andersen, e uma mulher que ele diz ser sua irmã, Else. A segunda é a casa de um agente de seguros e sua mulher, os Michonnet. A terceira é do garagista Oscar e sua mulher. Em um domingo, Michonnet descobre que seu carro desapareceu da garagem e no lugar dele está o carro que pertence a Andersen. Ele vai até a villa de Andersen e vê que lá está o seu próprio carro, e dentro dele está o corpo de Goldberg, um comerciante de jóias de Anvers. O comissário Maigret é encarregado do caso. Primeiro ele interroga, em sua sala, o dinamarquês Andersen. Depois vai até o local com seu auxiliar Lucas, e se instala em um albergue perto da encruzilhada, em Avrainville.
Maigret conversa com todos os moradores das três casas da Encruzilhada das Três Viúvas. E fica atraído por Else, “por seu comportamento misterioso, por seu charme e pela atmosfera conturbada em que ela se envolve”, segundo a Wikipedia.
É isso. Boa sinopse essa da grande enciclopédia participativa.
“Comportamento misterioso, charme, atmosfera conturbada”. Li uma dezena de livros de Simenon, mas não este A Noite da Encruzilhada, e então não sei como é essa moça Else no livro. No filme, não creio que o roteiro e a direção de Renoir nem a atuação de Winna Winifried (na foto abaixo) tenham conseguido criar uma personagem especialmente marcante, forte. Eu, pelo menos, não consegui entender nada sobre a personalidade da moça – e ela é muito importante na trama. Há momentos em que ela parece apenas uma dondoca boba; em outros, parece que quer seduzir o comissário de polícia; em outros, parece meio louca, meio drogada.
Winna Winifried, nascida em Copenhagen em 1914, estava portanto com apenas 18 anos, embora pareça na verdade bem mais velha. Foi uma descoberta do próprio Renoir, mas sua carreira não iria longe. Faria mais sete filmes, até 1940, e desapareceria do mundo do cinema.
Quanto a Pierre Renoir, o primeiro dos tantos e tantos comissários Maigret do cinema, sabe-se que teve a aprovação o próprio criador do personagem. Consta que Simenon, apesar de não ter ficado satisfeito com o filme como um todo, gostou da interpretação de Pierre Renoir.
Depois dele, interpretariam o inspetor, entre muitos outros, os grandes astros Jean Gabin e Gérard Depardieu.
Um clima sombrio, enevoado, soturno, denso
A principal característica deste La Nuit du Carrefour parece ser, sem dúvida alguma, o clima, o ambiente criado por Jean Renoir – uma atmosfera soturna, densa, pesada, amarga, com um gosto de coisa corrompida, estragada. Uma coisa sombria, enevoada, enlameada. Sim: enlameada, tanto concretamente quanto figurativamente. Chove naquela lugar que tem até o nome triste, sombrio, Encruzilhada das Três Viúvas. Chove, e há, constantemente, uma neblina espessa que impede as pessoas de verem com clareza o que está à sua frente.
O filme não teve uma acolhida entusiástica por parte da crítica, ao que tudo indica nem na época do lançamento nem com o passar do tempo. Como afinal é um Renoir, La Nuit du Carrefour não foi malhado, espinafrado – mas as avaliações sobre ele, tanto de grandes críticos quanto de espectadores que escrevem no IMDb, por exemplo, fazem reparos.
Algumas avaliações falam, embora com cautela, que o roteiro não foi muito bem construído, que não ficam muito claros detalhes sobre a investigação do crime por parte de Maigret, que o espectador não compreende muito bem como o comissário chegou à conclusão sobre aquela quadrilha que agia ali na Encruzilhada e matou o comerciante de diamantes e depois a mulher dele.
E foi exatamente isso que eu senti, e Mary, ao meu lado, também: as coisas não ficam claras. A trama não é apresentada com nitidez, precisão. De forma alguma. Muito antes ao contrário.
Surgiu a versão de que, para a montagem final, ficou faltando um rolo, uma bobina de filme. O grande Jean Tulard, entre outros, aceita essa informação como verdade.
Vou transcrever logo adiante algumas opiniões – mas antes gostaria de registrar que, exatamente por causa de toda aquela atmosfera que tentei descrever aí acima, aquela coisa sombria, dark, noir, há quem aponte que este La Nuit du Carrefour já trazia elementos que viriam a ser fundamentais na criação do filme noir – o gênero que Hollywood lançaria nos anos 1940, fortemente influenciado pelo expressionismo alemão dos anos 1920 e pelos romances policiais hard boiled de Dashiell Hammett e Raymond Chandler.
Um estudioso do cinema francês, Don Malcolm, afirmou que este filme é o primeiro exemplo autêntico de filme noir.
Um filme “tateante”, diz Truffaut, fã número 1
Em 1967, foi realizado um “Festival Renoir” na Casa da Cultura de Vidauban, no Sudeste da França, não muito longe de Cannes, e para escrever a apresentação do festival convidaram François Truffaut – afinal, o cineasta havia sido crítico de cinema e era um apaixonado pelos filmes do mestre. Foi do início desse texto que tirei aquela frase citada acima. É assim que Truffaut começa seu texto “Um festival Renoir”:
“Isso não é o resultado de uma sondagem, é um sentimento pessoal: Jean Renoir é o maior cineasta do mundo. Esse sentimento pessoal é compartilhado por muitos cineastas e, por sinal, não é Jean Renoir o cineasta dos sentimentos pessoais?”
Em seu texto, Truffaut passa em revista diversos filmes do mestre; sobre este La Nuit du Carrefour, faz apenas uma menção – bastante reveladora, creio: “A idéia de infalibilidade aplicada à obra de Renoir, desprovida de qualquer simulação, não parece abusiva, quer se trate de um filme tateante, como La Nuit du Carrefour, ou inteiramente bem-sucedido, como La Carrosse d’Or.”
Eis o que diz o Guide des Films de Jean Tulard:
“Um comerciante de diamantes holandês é assassinado no lugar conhecido como a Encruzilhada das Três Viúvas. O comissário Maigret investiga. Quem é culpado? Um garagista, um agente de seguros ou a perturbadora Else? A mulher do comerciante é também morta. Maigret desmascara uma quadrilha de traficantes da qual a musa não é outra senão Elsa.
“Uma das primeiras adaptações de Simenon. Ele próprio não amou o filme. A atmosfera de chuva e névoa é criada com perfeição, e Pierre Renoir, irmão de Jean, é um Maigret verossímil, Apenas a história permanece um pouco incompreensível, por causa da perda de uma bobina.”
Aos gênios se perdoa tudo, até o fato de a história ficar “um pouco incompreensível”…
Achei estranho o guia de Tulard dizer “uma das primeiras adaptações de Simenon”, em vez de cravar que foi a primeira. Isso se explica, creio, pelo fato de que, naquele mesmo ano de 1932, foi lançado também um outro filme baseado em livro do autor, Le Chien Jaune, dirigido por Jean Tarride, com Abel Tarride no papel do comissário Maigret. O livro O Cão Amarelo, assim como A Noite da Encruzilhada, foi lançado em 1931. Foram portanto dois os livros de Simenon que saíram em 1931 e foram adaptados para o cinema já no ano seguinte.
Na página de Trivia do IMDb sobre o filme há este item:
“Vários críticos em 1932 notaram que pareciam faltar algumas cenas que eram necessárias, e discutiram se o filme havia sido cortado ou não. Algumas fontes sugeriram que algumas cenas rodadas no local escolhido para as filmagens haviam se perdido no caminho até o laboratório em Paris. Quando essas discrepâncias foram descobertas, Jean Renoir já estava trabalhando em outro filme, e filmar algumas cenas de novo era impossível. Anos mais tarde, depois da morte de Renoir, George Simenon afirmou que Renoir na época das filmagens estava profundamente infeliz, e bebendo muito (seu primeiro casamento havia acabado fazia pouco), e ele teria simplesmente negligenciado a filmagem de certas cenas.”
(Renoir morreu aos 84 anos em 1979, em Los Angeles; Simenon, como já foi dito, morreu 86 anos, em 1989, em Lausanne.)
O clima que deu o tom para os filmes noir
Eis um trecho do que escreveu sobre o filme no IMDb um leitor que se assina LobotomousMonk9, e dá a seu comentário o título de “Elucidação através da névoa”: “Carrefour tem sido considerado um precursor do filme noir, e é possível concordar que o filme é todo sobre atmosfera. Renoir usa tomadas longas para explorar o espaço. Há uma preocupação no que diz respeito à construção de profundidade na mise-en-scène. Grupos de personagens são organizados de forma interessante. (…) A noite enevoada e a pouca luz oferecem uma interessante justaposição à possibilidade de elucidação da trama do filme. Alguns comentaram que é impossível A Noite na Encruzilhada fazer sentido (sem todas as cenas filmadas), mas talvez mesmo em uma versão completa o filme continuasse a desafiar qualquer leitura lógica e direta.”
Um outro leitor do IMDb, dbdumonteil13, escreveu: “Um usuário (do próprio IMDb) escreveu que o filme é ‘inepto’. Ele não está completamente errado. Mas não é por culpa de Renoir. É preciso que o espectador saiba que uma bobina foi definitivamente perdida, e que isso pode explicar alguns furos na trama (o comportamento da personagem de Winna Winifried, por exemplo). A trama não é essencial. A atmosfera de uma área rural úmida, em que a névoa cai toda noite, importa mais. Há também um estudo de xenofobia – embora o final (um tanto incompreensível, de qualquer forma) tenda a negar sua existência.”
Xenofobia, racismo. Sim, essas questões estão lá. Os moradores ali do lugar, a Encruzilhada das Três Viúvas – os Michonnet, o garagista Oscar e sua mulher – estão sempre realçando o fato de que Carl Andersen e a estranha Else são dinamarqueses, “estrangeiros”. E há uma certa insistência em dizer que a vítima, o comerciante de jóias, Goldberg, é judeu.
Mas creio que isso não é tão importante no filme. Na minha opinião, as duas características mais marcantes de La Nuit du Carrefour são as evidentes falhas na narrativa, que tornam a compreensão da trama a rigor impossível, e, de outro lado, o talento do cineasta para criar aquela atmosfera, aquele clima que deu o tom para o filme noir.
Além, é claro, da importância histórica de ser o primeiro filme com o comissário Maigret.
Quem gosta de cinema vai gostar de ver. E o filme está no YouTube, grátis como um passeio no parque.
Anotação em agosto de 2023
A Noite da Encruzilhada/La Nuit du Carrefour
De Jean Renoir, França, 1932
Com Pierre Renoir (comissário Maigret)
e Winna Winifried (Else Andersen), Georges Térof (Lucas, o auxiliar de Maigret), Georges Koudria (Carl Andersen), Dignimont (Oscar, o garagista), G.A. Martin (Granjean), Michel Duran (Jojo), Jean Gehret (Emile Michonnet), Boulicot (policial), Max Dalban (o médico), Roger Gaillard (o açougueiro), Jean Mitry (Arsène), Jane Pierson (madame Michonnet), Manuel Raaby (Guido), Lucie Vallat (Michelle, a mulher de Oscar)
Roteiro, adaptação e diálogos Jean Renoir
Baseado no livro de Georges Simenon
Fotografia Georges Asselin, Marcel Lucien
Montagem Marguerite Renoir
Desenho de produção William Aguet
Produção Europa Films.
P&B, 75 min (1h15)
**1/2
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