(Disponível na Netflix em janeiro de 2023.)
Dois Verões, no original Twee Zomers, minissérie belga da região de Flandres, de 2022, é um brilho. Uma beleza. Cinema de gente grande.
É um thriller, uma história com mistério, suspense e várias surpresas, reviravoltas – mas está a anos-luz de distância de tantos filmes e séries sobre serial killers, mafiosos, bandidões. É um drama sobre pessoas mais próximas do “normal”, do comum, de gente como a gente, do que dos criminosos, que são uma percentagem bem pequena da humanidade mas costumam ser mais retratados no cinema do que gente parecida com o eventual leitor e comigo mesmo, com nossos amigos, nossos familiares.
É uma história sobre um grupo de amigos – e, nisso, Dois Verões me faz lembrar maravilhas como O Reencontro/The Big Chill (1983), O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas/St. Elmo’s Fire (1985), Grand Canyon (1991), Para o Resto de Nossas Vidas/Peter’s Friends (1992), Juventude (2008).
Um grupo de amigos que se reencontra depois de muitos anos, e tem a oportunidade de reavaliar suas vidas, o que foi feito de seus sonhos de juventudes – como Retorno a Ítaca/Retour à Ithaque (2014), que o francês Laurent Cantet dirigiu com base em romance do cubano Leonardo Padura.
Um grupo de amigos que vai passar alguns dias de verão juntos, num belo lugar à beira mar – assim como acontece no díptico de Guillaume Canet Até a Eternidade/Les Petits Mouchoirs (2010) e Estaremos Sempre Juntos/Nous Finirons Ensemble (2019). Neste segundo filme de Canet, os mesmos personagens do primeiro se reencontram após um grande lapso de tempo, também junto do mar, como havia sido mostrado no filme anterior. Um dos amigos havia morrido – exatamente como acontece nesta série belga aqui.
A série tem bastante a ver com o díptico de Guillaume Canet. Mostra exatamente o que diz o título, Dois Verões, Twee Zomers, em duas épocas bem distantes – só que ele embaralha as duas reuniões do grupo de amigos. A narrativa vai e volta no tempo, mostrando, simultaneamente, alternadamente, os eventos no verão de 1992, quando os amigos estavam todos com cerca de 20 anos, e os eventos no verão de 2022, quando estão chegando aos 50.
O encontro dos jovens amigos em 1992 é numa belíssima casa de campo no interior da região de fala neerlandesa da Bélgica. O reencontro daquelas pessoas de meia-idade em 2022 é numa ilha particular de beleza esplendorosa no Mediterrâneo, ao largo da Côte d’Azur – mas a primeira sequência da minissérie começa do outro lado do continente que fica do outro lado do Oceano Atlântico.
A minissérie – são seis episódios de cerca de 45 minutos cada, 4h30 no total, não muito maior que o Cleópatra (1963) de Joseph L. Manckiewicz com Elizabeth Taylor, Rex Harrison e Richard Burton – abre com o letreiro “Vale do Silício”. Vemos uma mansão daquelas de bilionários, e, nela, o primeiro dos muitos personagens da trama que ficaremos conhecendo, Peter (Tom Vermeir), vê uma mensagem que acaba de chegar a seu celular.
É um filmetinho feito em câmara amadora, em que uma moça está sendo estuprada por dois rapazes. Logo após o filmete, chega ao celular de Peter a mensagem: “Isso foi há 30 anos. É hora da vingança. Pague tantos bitcoins até meio-dia de segunda-feira ou o vídeo viraliza.”
O vídeo havia sido feito após uma noite de muita bebida, maconha e pílulas, naquela casa de campo no verão de 1992.
Para garantir que o espectador não conseguirá parar de ver a série, o primeiro episódio termina com uma jovem juíza de instrução, a dra. Salima Mitonga (Jennifer Heylen, na foto abaixo), em seu gabinete em Bruxelas, estudando um novo caso policial que chegou a suas mãos, envolvendo um grupo de pessoas que havia se reunido para um fim de semana festivo numa ilha particular no Mediterrâneo.
Nove personagens, 16 atores diferentes
No momento em que recebe a mensagem chantagista, Peter está sendo chamado pela mulher, Romée (An Miller), para sair de casa, ou então correriam o risco de perder o vôo.
Bilionários do Vale do Silício, portanto donos de uma muitíssimo bem sucedida empresa de tecnologia, Peter e Romée haviam alugado uma ilha junto da Cote d’Azur e convidado para o fim de semana os amigos de infância e adolescência, aqueles lá que haviam se reunido 30 anos antes no interior belga, e eles não viam fazia muito tempo.
E aí o espectador tem um problema. Na verdade, dois. Ele precisa compreender quem é quem naquele grupo de oito pessoas que vão passar o fim de semana juntos na ilha do Mediterrâneo – e também identificar quem é quem daquele grupo no outro verão, o de 30 anos atrás.
Não é uma tarefa muito fácil.
Em 1992, eram oito pessoas – cinco rapazes, três moças. Em 2022, são oito pessoas – quatro homens, quatro mulheres. Um dos rapazes originais havia morrido, lá mesmo, no primeiro dos dois verões mostrados na história. Uma mulher que não estava no grupo original faz parte do que se reúne no segundo verão, o de 2022.
Temos então um total de nove personagens. Sendo que cada um de sete deles é representado por dois atores – um jovenzinho na faixa dos 20 anos, outro aí na meia-idade, beirando os 50. Nove personagens, 16 atores diferentes.
Pode haver espectador que ache confuso.
Na verdade, os roteiristas Paul Baeten Gronda e Tom Lenaerts, os diretores Tom Lenaerts e Brecht Vanhoenacker e o grande número de atores fazem uma beleza de trabalho, e as coisas vão rapidamente sendo compreendidas pelo espectador.
E, se houver alguma dúvida, diabo, basta voltar um pouco o filme para resolver a questão.
Mogli amava Saskia que namorava Peter e depois Luk…
Em 1992, os anfitriões da reunião de 2022, Peter e Romée, ainda não eram um casal. Peter estava no final do namoro com Saskia, moça linda – que, exatamente naqueles dias, começava a namorar Luk, o irmão mais novo de Peter.
Luk, uns dois anos mais jovem que o resto da turma, vinha se tratando de um câncer, estava completamente careca. Tinha uma filmadora daquelas de fita minicassete que se usava muito na época, e filmava tudo, sem parar, quase compulsivamente.
Luk e Saskia se casaram, tiveram um filho, Jens, com grave deficiência física. Alguns anos antes da nova reunião, o casal se separou, de forma harmônica, sem grandes problemas; dividiam a guarda e os cuidados com o filho – que, para o fim de semana dos pais na ilha paradisíaca, ficou com o avô materno.
Luk estava casado novamente, com uma moça bem mais nova, Lia.
O rapaz que, em 1992, era o mais pobre do grupo, Stef, chamado por todos os amigos pelo apelido Mogli, havia se dado muito bem na vida; ficara rico, tinha feito carreira na política e, em 2022, era ministro do governo belga. Era solteiro. Na verdade, lá atrás, na juventude, tinha sido bem apaixonado pela bela Saskia.
Completavam o grupo Didier e Sofie, casados havia muitos anos – já em 1992 Didier era apaixonado pela garota. Tinham tido dois filhos, agora adultos; tinham enfrentado momentos de crise no casamento, mas agora, em 2002, estavam bem.
Sofie era a moça que, desacordada depois de noite de loucuras, em 1992, havia sido atacada sexualmente por Peter e por Mark, enquanto Didier filmava tudo com a câmara de Luk. (Peter alegaria que apenas fingira ter feito sexo, para não desagradar aos amigos, e que apenas Mark havia de fato abusado da amiga desmaiada.)
Mark havia morrido dias depois, na mesma casa em que o grupo se reuniu naquele verão de 1992.
Registrar o nome do ator logo após a primeira citação do nome do personagem é uma regra que considero obrigatória. Não a obedeci nos parágrafos acima porque eram muitos nomes – afinal, são, como já disse, nove personagens importantes, e citar ali os nomes dos atores, dois para cada um da maioria dos casos, atrapalharia bastante a leitura.
Mas apresento abaixo os nomes dos atores. Mesmo não sendo conhecidos, eles precisam ser registrados. Regra é para se cumprir.
Personagem | Em 1992 | Em 2022 |
Peter Van Gael | Lukas Bulteel | Tom Vermeir |
Romée Tanesy | Marieke Anthoni | An Miller |
Didier Verpoorten | Bjarne Devolder | Herwig Ilegems |
Sofie Geboers | Louise Bergez | Inge Paulussen |
Luk Van Gael | Tijmen Govaerts | Kevin Janssens |
Lia Donkers | Sanne-Samina Hanssen | |
Saskia Van Dessel | Tine Roggeman | Ruth Becquart |
Stef Van Gompel, o Mogli | Vincent Van Sande | Koen De Bouw |
Mark | Felix Meyer |
Um fim de semana de tensão, desespero
Os nomes desses 16 atores aparecem nos créditos iniciais em cada um dos seis episódios da minissérie. Como tem acontecido em muitos filmes e séries, talvez na maioria deles, os créditos iniciais surgem depois de uma ou duas sequências de abertura de grande impacto. Não são longos – na verdade, são bastante curtos. Os nomes dos atores e dos principais nomes da equipe surgem enquanto vemos, numa montagem rápida, pequenas tomadas de momentos das duas reuniões dos amigos – momentos de grande alegria, os personagens dançando, cantando, brincando, pulando na piscina…
Toda aquela esfuziante alegria das tomadas rápidas dos créditos iniciais faz um gigantesco contraste com a imensa maior parte do que acontece na reunião de 2022 na ilha paradisíaca.
O que teoricamente deveria ser um encontro feliz, saudável, de velhos amigos, naquele lugar especialmente belo, se torna uma longa, interminável sessão de tortura com a mensagem chantagista que Peter recebe pelo celular. Depois de algum tempo, ele mostra a mensagem para os amigos – primeiro para Stef, que, por ser político, ministro de Estado, seria o mais prejudicado de todos caso o vídeo fosse tornado público.
Mas a tensão, a tristeza, o desespero em que aquele grupo de pessoas vai mergulhar não se esgotam com a ameaça de chantagem com o vídeo de 30 anos antes. A cada momento surgem revelações de segredos até então escondidos.
O roteiro escrito por Paul Baeten Gronda e Tom Lenaerts é obra de mestre. Os conflitos vão surgindo da forma mais natural possível – e o espectador é levado a se envolver com a trama, com aquelas pessoas que cometeram erros, alguns deles muito graves, mas não são gente má, perversa.
Hum… Acho que há uma pessoa de fato de mau caráter na história, mas é uma só. E não é o caso de dizer quem é – seria spoiler. (Na foto, da esquerda para a direita, as atrizes que interpretam Saskia, Romée e Sofie.)
Um elenco uniformemente bom, talentoso
Tudo na série é muitíssimo bem realizado. Todos os quesitos técnicos estão perfeitos – fotografia, montagem, direção de arte, figurinos. A música – de Dominique Pauwels – me impressionou; os solos de piano são de grande beleza.
As interpretações todas são homogeneamente competentes. Impressionante: 16 atores com papéis importantes, e todos muito bem.
Foi impossível não lembrar de outra série belga da região de Flandres, de fala neerlandesa, Doze Jurados/De Twaalf, de 2019. Quando vi a série, anotei: “São muitos personagens importantes, pelo menos duas dezenas – e todos os atores que os interpretam estão nada menos que ótimos. Como é possível, meu Deus do céu e também da Terra, que haja tanto ator profissional com aquele talento na região da Bélgica que fala neerlandês?”
Pois bem: a pergunta fica ainda mais inquietante depois de ver Dois Verões, e verificar que, de um total de quase 40 atores que trabalham nessas séries, apenas dois estão no elenco de ambas. Koen De Bouw, que faz Stef, o Mogli, em 2022, em Doze Jurados faz o pai da ré, a acusada de matar não apenas a sua maior amiga como também a sua própria filhinha de uns 4 anos de idade. E Tom Vermeir, que interpreta Peter em 2022, na outra série faz um dos doze jurados, o dono de empresa de construção civil.
Detalhinho: Koen De Bouw é feio que nem a fome, e Tom Vermeir é um sujeito bonitão.
Agora, bonita mesmo é essa Ruth Becquart, que faz Saskia madura. Danada de mulher bonita. Nascida na cidade Brecht, tem mais de 50 títulos no currículo. Passo os olhos pelos títulos e não reconheço nenhum.
Um outro detalhe – este importante. A canção que toca nos créditos iniciais é “On n’oublie rien”, com Jacques Brel, dele e seu parceiro costumeiro, Gérard Jouannest. (Foi a Mary que foi atrás para checar, o que é inesperado, já que sou eu em geral que presta especial atenção às canções usadas nos filmes.) Para uma série belga, nada como uma canção de um belga – mesmo que seja um de fala francesa que fez carreira na França.
A escolha da canção é perfeita para os créditos iniciais de uma série em que os personagens estão lembrando o tempo de tudo de algo acontecido muito tempo atrás: “On n’oublie rien de rien / On n’oublie rien du tout / On n’oublie rien de rien / On s’habitue. c’est tout” – não se esquece de nada, não se esquece de absolutamente nada, a gente se acostuma, só isso.
Anotação em janeiro de 2023
Dois Verões/Twee Zomers
De Tom Lenaerts e Brecht Vanhoenacker, Bélgica, 2022
Com Tom Vermeir (Peter Van Gael em 2022), Lukas Bulteel (Peter Van Gael em 1992), An Miller (Romée Tanesy em 2022), Marieke Anthoni (Romée Tanesy em 1992),
Herwig Ilegems (Didier Verpoorten em 2022), Bjarne Devolder (Didier Verpoorten em 1992), Inge Paulussen (Sofie Geboers em 2022), Louise Bergez (Sofie Geboers em 1992),
Kevin Janssens (Luk Van Gael em 2022), Tijmen Govaerts (Luk Van Gael em 1992), Sanne-Samina Hanssen (Lia Donkers em 2022),
Ruth Becquart (Saskia Van Dessel em 2022), Tine Roggeman (Saskia Van Dessel em 1992), Koen De Bouw (Stef Van Gompel, o Mogli, em 2022), Vincent Van Sande (Stef Van Gompel, o Mogli, em 1992),
Felix Meyer (Mark, em 1992), Jennifer Heylen (juíza de instrução Salima Mitonga, em 2022), Verona Verbakel (Nora, a escrivã), Simon Verbruggen (Jens), Gerd De Ley (o avô de Jens)
Argumento e roteiro Paul Baeten Gronda e Tom Lenaerts
Fotografia Brecht Goyvaerts, Laurens De Geyter
Música Dominique Pauwels
Montagem Mathieu Depuydt
Direção de arte Kurt Loyens
Produção Kristoffel Mertens, Sofie Rooseleer, Panenka.
Cor, cerca de 270 min (4h30)
***1/2