Um Dia Perfeito / A Perfect Day

3.5 out of 5.0 stars

Por um bom tempo depois que vimos Um Dia Perfeito/A Perfect Day, produção espanhola de 2015 de Fernando León de Aranoa, fiquei pensando no título de um livro hoje pouquíssimo conhecido, Misérias e Grandezas do Nosso Futebol, e no deslumbrante verso do Caetano, “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”.

Nada a ver com o nosso futebol, nem propriamente com a força da grana – mas com as expressões de coisas antípodas, a grandeza e a miséria, a capacidade de erguer e de destruir coisas belas.

Um Dia Perfeito é um extraordinário filme que mostra como poucos essa convivência chocante, apavorante, da grandeza com a miséria, a habilidade humana de construir e destruir.

É daquele tipo de filme que deixa você, durante muito tempo, ruminando, questionando, fazendo aquelas perguntas que sabemos que não têm sentido fazermos, porque não vamos encontrar a resposta nunca:

Como é que é possível? Como pode?

Como podem existir seres humanos que iniciam uma guerra, incitam milhares de pessoas à guerra – e ao mesmo tempo seres humanos absolutamente abnegados, que dedicam a vida a ajudar aos outros? Como é possível que haja torturadores, assassinos, esquartejadores, gente que se dedica a espalhar minas pelo chão, para explodir e matar a primeira pessoa que pisar ali, seja quem for – e ao mesmo tempo haver médicos, enfermeiros, e voluntários que trabalham incansavelmente, loucamente, em ONGs, enfrentando todo tipo de perigo, para ajudar gente que nunca viu na vida?

Como é que pode, meu Deus do céu e também da Terra?

Essa coisa de fazer “aquelas perguntas que sabemos que não têm sentido fazermos, porque não vamos encontrar a resposta nunca” é mais uma citação, como as que fiz ao título do livro e ao verso do Caetano. Está numa canção de Kate Wolf, a cantora-compositora que só vim a conhecer já na meia-idade e que agora está no panteão dos meus maiores ídolos. Ela faz também uma citação – repete alguns versos de uma outra canção.

A letra diz mais ou menos assim: há uma história velha, conhecida, uns versos familiares; para tudo há um tempo, para cada propósito há uma época, um tempo para amar, para ficar juntos. Um tempo para fazer perguntas que não podemos responder, embora a gente pergunte do mesmo jeito.

Um Dia Perfeito é um filme que nos deixa fazendo as perguntas para as quais não há respostas – mas a gente faz assim mesmo.

Como é que pode, meu Deus do céu e também da Terra, existir o assassino, o torturador, e ao mesmo tempo o médico, a enfermeira, o voluntário?

Como pode a humanidade ser capaz ao mesmo tempo de tanta grandeza e tanta miséria? De criar e destruir tanta coisa bela?

A ação se passa nos Bálcãs, no final da guerra

Bem no início de Um Dia Perfeito um letreiro nos dá o onde e o quando: “Em algum lugar dos Bálcãs – 1995”.

Em 1995 estava finalmente acabando a guerra dos Bálcãs, um dos mais brutais, violentos, horrendos conflitos do século XX, repleto de episódios da mais absoluta desumanidade, da mais pavorosa crueldade, execuções em massa, estupros em massa, tortura – e uma plantação de minas terrestres como em pouquíssimos lugares do mundo houve. Algo semelhante, talvez, apenas ao crime de espalhar minas terrestres que houve na guerra que se seguiu à independência de Angola.

Com o agravante de que todo aquele horror não ocorria num país miserável da África, o pobre continente tornado miserável pelos males do colonialismo, e sim nos Bálcãs, no coração do Velho Continente, o berço da civilização tida como “a mais avançada das mais avançadas” civilizações, para citar Caetano mais uma vez.

E pior ainda: num lugar que havia sido, durante décadas, comunista – o sonho, a utopia da sociedade justa, igualitária, solidária.

Agora, neste momento, ao fazer esta anotação, me lembrei de um episódio ocorrido com minha filha, em 1992, quando o Império Soviético havia ruído, e a guerra dos Bálcãs estava acontecendo, chocando todas as pessoas que tinham sensibilidade e algum conhecimento dos fatos. Para elaborar um trabalho de fim do ensino médio, a respeito exatamente do comunismo, ela teve a honra de entrevistar Roberto Freire, que naquele ano transformava o antigo Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, em PPS, Partido Popular Socialista. E o grande político demonstrou seu absoluto choque com o que estava acontecendo na ex-Iugoslávia. Como é que pode estar havendo essa quantidade de horrores exatamente nos Bálcãs?, ele perguntava para si mesmo, diante da garota que terminava o colegial, a idade em que é preciso, é fundamental acreditar em um sonho, uma utopia, uma esperança.

Como pode a humanidade ser capaz ao mesmo tempo de tanta grandeza e tanta miséria? De criar e destruir tanta coisa bela?

Como é que pode, meu Deus do céu e também da Terra?

As perguntas para as quais não há respostas – mas a gente faz assim mesmo.

A canção a que a canção de Kate Wolf se refere, a que fala de “para tudo há um tempo, para cada propósito há uma época, um tempo para amar, para ficar juntos”, é, naturalmente, “Turn! Turn! Turn!”, que o comunista Pete Seeger escreveu nos anos 60, e que todos os jovens que nos anos 60 sonhavam com um mundo melhor, e até achavam que poderiam transformar este mundo em um mundo melhor, ouviram sonhando e sonhando.

E é uma canção fascinante, porque a letra do comunista Pete Seeger se baseia numa passagem da Bíblia – o Cântico dos Cânticos, as palavras atribuídas a Salomão, o rei de Israel, filho de David, o que derrotou o gigante Golias.

Talvez esta anotação esteja parecendo um tanto distante do filme, mas não é, não, de forma alguma. Tudo o que estou abordando aqui tem relação direta com o filme.

E mais: quando a ação chega ao fim, quando estamos infelizmente chegando ao fim daqueles 106 minutos de maravilhoso cinema, vamos ouvir uma outra canção de Pete Seeger.

É de chorar de emoção.

Tudo estava muito, mas muito ruim – e piora

Um Dia Perfeito é um filme absolutamente internacional, global.

De maneira fascinante, não é uma co-produção de vários países, ao contrário de tantos filmes internacionais, globais, que têm sido feitos nas últimas décadas. Tenho colocado aqui neste 50 Anos de Filmes co-produções de quatro, cinco, seis países. A Perfect Day – apresentado assim, nos créditos, com tudo escrito em inglês, este Esperanto que pegou – é uma produção espanhola. O diretor Fernando León de Aranoa, ele também autor do roteiro, com a colaboração de Diego Farias, é espanhol de Madri – mas o resto é uma mixórdia danada.

Entre os atores principais, há um espanhol, Benício Del Toro, fazendo o papel do porto-riquenho Mambrú; um americano, Tim Robbins, no papel do americaníssimo B.; uma francesa, Mélanie Thierry, no papel de Sophie Richard; uma ucraniana, Olga Kurylenko, como Katya; e um bósnio, Fedja Stukan, como Damir.

O porto-riquenho Mambrú, o americano B. e a francesa Sophie são voluntários de uma ONG de ajuda humanitária trabalhando na Bósnia quando a guerra se aproxima do fim. O bósnio Damir foi contratado pela ONG como tradutor. A organização – fictícia – tem o nome de Aid Across Borders. Os realizadores preferiram usar um nome fictício, em vez de o de uma ONG existente, concreta.

Apesar do título, a ação se passa em um período de dois dias. Um dia inteiro, longo, uma longa noite, e depois o dia seguinte.

E chamar aquilo de “um dia perfeito” é – evidentemente – uma ironia, uma gozação, uma piada. Assim como tantos bons filmes que mostram exatamente o contrário do que dizem seus títulos, como, só para dar uns poucos exemplos, Tudo Bem (1978), de Arnaldo Jabor, Estamos Todos Bem (1990), de Giuseppe Tornatore, A Cidade Está Tranquila (2000), de Robert Guédiguian, Estão Todos Bem (2009), de Kirk Jones, Tudo Vai Ficar Ficar Bem (2015), de Wim Wenders, Aqui em Casa Tudo Bem (2018), de Gabriele Muccino.

Tudo, tudo, absolutamente tudo vai muito mal para aquele grupo de voluntários que estão ali na Bósnia dilacerada pela guerra para ajudar às pessoas.

Tudo dá errado.

O principal evento da história, o fato em torno do qual gira boa parte da ação, é que jogaram o corpo de um homem gordo num poço de água do interiorzão da Sérvia.

O poço é a única fonte de água para pessoas daquele lugar – e, caso o corpo não seja retirado logo, a água ficará impura, poluída, condenada, inútil.

Aquele grupo de pessoas vindas de várias partes do mundo vai tentar retirar o corpo.

Bem no início da narrativa, Mambrú e Damir estão içando o corpo – mas acontece que a corda que estão usando é velha, gasta, e se rompe, e o corpo cai de volta no fundo do poço.

Ao longo de boa parte da ação, Mambrú, Damir, B. e Sophie vão tentar achar uma corda. Não será nada fácil. Muito antes ao contrário. Muitíssimo ao contrário.

Como é da vida, como bem sabemos nós, brasileiros, que depois da inacreditável Dilma tivemos essa coisa ainda mais inacreditável que é o Capitão das Trevas e da Morte, o que é horroroso sempre pode ficar ainda pior – e então chega àquele lugar perdido no meio da Sérvia a deslumbrantemente bela Katya.

Katya vem como enviada da chefia da ONG, para observar, inspecionar, e depois relatar o que viu – para que se decida se aquelas unidades devem continuar a receber recursos, ou não. Se a organização deve continuar bancando o trabalho daquelas unidades ou não.

Uma agente do “internal affairs”, diz B., lá pelas tantas. Internal affairs é a expressão inglesa para o que chamamos de corregedoria.

Chegar um corregedor quando você está enfrentando um problema danado de ter que tirar um cadáver de dentro de um poço de água já seria uma coisa desagradabilíssima.

Mas as coisas podem sempre piorar muito mais. Basta lembrar que depois de Lula e Dilma veio Bolsonaro.

E então temos que a maravilhosa Katya tinha tido um caso com Mambrú. Ela era jovem, principiante na ONG Aids Across Borders, ele era um veterano, experiente. Namoraram. Ele não contou para ela que tinha uma namorada, Sarah. Quando ela descobriu, ficou furiosa – rompeu com ele e mandou cartas para Sarah descrevendo tintim por tintim como tinha sido o caso dos dois.

Com paciência, Mambrú havia conseguido tranquilizar Sarah, reconstruir a relação. Estavam indo bem, embora Sarah ainda tivesse ciúmes da bela Katya.

Reencontrar Katya era tudo que o pobre Mambrú não queria.

Até porque – conforme o espectador vai vendo – Katya, embora estivesse envolvida com um antigo namorado, ainda arrastava as belíssimas asinhas por Mambrú.

O diretor conseguiu se dar bem no fio da navalha

Um Dia Perfeito mistura drama – meu Deus, e bota drama nisso – com um leve, suave tom de sátira, de comédia. Até mesmo, como tentei mostrar logo aí acima, de comédia romântica.

Misturar drama pesado com tom leve, de sátira, de comédia, é como andar sobre o fio de navalha. É perigosíssimo.

Cada um reage de sua maneira, é claro. Acho, por exemplo, que A Vida é Bela (1997), de Roberto Begnini, é uma bobagem horrorosa – mas, para mim, Ser ou Não Ser (1942), de Ernst Lubitsch, e os filmes feitos a partir de Primavera Para Hitler (1967), de Mel Books, são engraçadíssimos, ótimos, deliciosos – e todos são comédias que falam sobre o mesmo tema terrivelmente sério, o nazismo, o fascismo, os campos de concentração.

Para mim, Fernando León de Aranoa saiu-se maravilhosamente bem ao caminhar sobre o fio da navalha. Ficou do lado de Lubitsch, de Brooks – o lado contrário àquele em que caiu Begnini.

Não conheço muita coisa desse realizador. Creio que só havia visto um filme dele – um extraordinário filme sobre o desemprego na Espanha no início do milênio, Segunda-Feira ao Sol – em que o papel principal é do outro dos gigantes do cinema espanhol das últimas décadas, Javier Bardem.

É um diretor diante de quem devemos tirar o chapéu.

Cria e nos apresenta personagens fortes, interessantes, gente de três dimensões, como costumavam dizer os críticos americanos – para diferenciar de personagens que a rigor não são pessoas, são apenas desenhos, esquetes, tipos esquemáticos.

Uma das sequências que mais me impressionaram foi aquela em que todos os personagens centrais estão paralisados numa estrada rural porque diante deles há uma vaca, que pode estar cheia de bombas. Mambrú dá a ordem para que todos passem a noite ali, até poderem analisar melhor que atitude tomar, o que fazer.

Estão ocupando dois jipes. Tudo é tenso.

A belíssima Katya, que havia ficado pouco tempo trabalhando no campo, no front, e logo havia subido no organograma da ONG, e ficado mais no escritório, questiona B. sobre por que, afinal de contas, ele resolveu fazer aquilo na vida – trabalhar como voluntário num serviço duro, perigoso, a rigor até mesmo desumano. Por que não preferiu uma vida normal? Porque, é claro – ela mesma induz a resposta –, é um ser antissocial, um anormal, um desajustado, absolutamente incapaz de ter uma vida normal, uma mulher, filhos, um cachorro, uma casa.

É uma sequência de fazer chorar.

Para aceitar aquela vida de perigo, sempre em condições precárias, em meio a guerras, epidemias, terremotos, gigantescas tragédias, não dá para ser uma pessoa normal. Para passar a vida ajudando aos outros, para chegar a esse nível de altruísmo, só sendo de alguma maneira esquisito, estranho, meio doido.

É isso que parece querer dizer esse filme fascinante.

E quem escreveu a história sabe do que está falando.

Quando vimos o filme, não tínhamos informações sobre ele, muito menos sobre a origem da história – quis ver apenas por causa do diretor e dos atores.

Saber que o roteiro se baseia num romance escrito por uma mulher que é médica e se dedica a ações humanitárias só me fez gostar ainda mais do filme.

Não há muitas informações sobre ela – pelo menos numa busca um tanto rápida na internet. Chama-se Paula Farias, é espanhola – mas não encontrei a data nem o local em que nasceu. Uma rara (e pequena) biografia que encontrei diz que Paula Farias é médica, consultora humanitária e escritora, e passou “a maior parte de sua vida dedicada à ação humanitária”. Foi voluntária num dos barcos do Greenpeace, e depois se juntou aos Médicos Sem Fronteiras. Nessa grande ONG, tem coordenado equipes que atendem pessoas em emergências em desastres naturais, epidemias e conflitos armados como o do Afeganistão, Kosovo, Iraque, Congo e Darfur, entre outros. Entre 2006 e 2011, foi presidente da Médecins Sans Frontier.

Paralelamente, passou a escrever, e tem alguns livros publicados. Um deles se chama Dejarse Llover, que deu origem ao filme de Fernando León de Aranoa. Vi que o livro já foi traduzido para algumas línguas, mas não foi lançado ainda no Brasil.

Atenção: aqui há um spoiler.

Se, por acaso ou mero descaso (para citar outra canção, esta do Chico), algum leitor tiver chegado até aqui e não tiver visto ainda o filme, peço a ele o favor de parar de ler agora mesmo.

O filme está na Netflix (ou pelo menos estava em agosto de 2020.

O que vou contar agora é um spoiler.

Quando o filme está nos 45 do segundo tempo, ouvimos Marlene Dietrich cantar “Where Have All the Flowers Gone?”, de Pete Seeger.

É belíssimo, é emocionante, é babante – e o prazer do espectador é muito maior se ele for surpreendido, se ela não tiver sido avisado disso.

Ouvir “Where Have All the Flowers Gone?” no final deste filme já seria uma maravilha mesmo se fosse com o pior cantor do mundo.

Com Marlene Dietrich, então, é um escândalo, um absurdo de beleza.

Marlene Dietrich é uma lição para todos.

É a prova mais bela de que o patriotismo é uma absoluta idiotice.

Quando a Alemanha foi tomada por aquela coisa abjeta que é o nazismo, Marlene Dietrich permaneceu fiel não ao país, mas ao que é certo. Não apenas mudou-se para os Estados Unidos com o também usou o uniforme americano durante a Segunda Guerra, para entreter as tropas aliadas e assim fazer a sua parte na luta contra o nazismo.

Há trocentas boas gravações de “Where Have All the Flowers Gone?” O fato de León de Aranoa ter escolhido a de Marlene Dietrich para encerrar a narrativa de seu filme é prova de seu discernimento, seu bom gosto.

E, ao final, o que fica é que tudo é um absurdo incompreensível.

A mesma raça que é capaz de criar uma Paula Farias, um Caetano Veloso, um Floriano Peixoto Corrêa, o autor de Grandezas e Misérias do Nosso Futebol (por mero acaso meu tio, irmão da minha mãe), uma Kate Wolf, um Pete Seeger, um Fernando León de Aranoa, é a mesma raça capaz do horror do horror do horror.

Como pode?

Anotação em agosto de 2020   

Um Dia Perfeito/A Perfect Day

De Fernando León de Aranoa, Espanha, 2015

Com Benicio Del Toro (Mambrú),

Tim Robbins (B),

Olga Kurylenko (Katya),

Mélanie Thierry (Sophie),

Fedja Stukan (Damir) e Eldar Residovic (Nikola, o garoto), Sergi López (Goyo, o chefe da ONG), Nenad Vukelic (o avô de Nikola), Morten Suurballe (oficial da ONU), Ben Temple (assistente do oficial da ONU), Frank Feys (oficial da ONU junto do poço), Ivan Brkic (dono da loja), Antonio Franic (soldado),

Goran Navojec (motorista bósnio da ONG), Dragica Stojkovic (a senhora das vacas)

Roteiro Fernando León de Aranoa, com a colaboração de Diego Farias

Baseado no romance “Dejar-se Llover”, de Paula Farias

Fotografia Alex Catalán

Música Arnau Bataller

Montagem Nacho Ruiz Capillas

Casting Timka Grin, Camilla-Valentine, Isola

Produção Fernando León de Aranoa, Jaume Roures, Canal+ España, Mediapro, Orange, Reposado Producciones, Televisió de Catalunya (TV3), Televisión Española (TVE).

Cor, 106 min (1h46)

Disponível na Netflix em agosto de 2020

***1/2

 

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