Hoje bem pouco lembrado, Day of the Outlaw, no Brasil Quadrilha Maldita, que o húngaro radicado nos Estados Unidos André de Toth lançou em 1959, é um belo western. Um belo filme.
Como tantos outros belos westerns, Day of the Outlaw usa as convenções deste que é um dos mais antigos gêneros do cinema e o gênero mais essencialmente americano para ir além dele.
Alguém disse que o western pode ser absolutamente tudo – pode-se usar o western para ilustrar qualquer tese, qualquer teoria. No western cabe tudo – da tragédia grega a Shakespeare.
Day of the Outlaw usa todas as convenções do gênero – mas também se insurge contra algumas delas. Por exemplo: ignora aquela regra não escrita, mas sempre seguida, de que no Velho Oeste as mulheres ou são quase santas ou são putas ou quase. Helen Crane, a principal personagem feminina (o papel de Tina Louise), tem um caso fora do casamento, comete uma infidelidade. São raríssimas as mulheres casadas, nos westerns, que são infiéis ao marido. Dá para contar nos dedos de uma só mão. Consigo me lembrar da personagem de Barbara Stanwyck em Um Pecado em Cada Alma/The Violent Men (1955), e de mais nenhuma.
Outro item em que Day of the Outlaw se insurge contra as convenções do western: o protagonista do filme, Blaise Starrett (o papel de Robert Ryan), não é inteiramente um mocinho. Claro, também não é um bandido – mas não é, de forma alguma, um mocinho. Já matou vários homens – bandidos, segundo ele. É tido como um homem que tem um passado de pistoleiro. E, quando o filme começa, as pessoas da pequenina cidade que serve os fazendeiros da região temem que ele vá matar mais uma vez.
Mais ainda: ao longo de todos os 92 minutos do filme, Blaise não dá um tiro sequer.
Mas o pior de tudo, o ponto em que Day of the Outlaw mais se distancia das características do gênero, é que o protagonista – esse Blaise Starrett que não é flor que se cheire, de forma alguma – acaba escolhendo na vida a opção absurda, louca, insana, inimaginável, naquela época, naquele meio, de não mais recorrer às armas.
Ao fim e ao cabo, Day of the Outlaw é a história de como um homem aprende com as experiências. De como é possível aprender, evoluir, crescer, mudar.
Uma impressionante canção de Donovan Leich dos anos 60 diz que muitas vezes os homens morrem nada mais sábios do que nasceram.
O filme de André de Toth mostra o contrário. Que é possível aprender, evoluir, crescer, mudar.
Isso que o filme de 1959 mostra poderia dar ânimo às tantas pessoas esperançosas que foram perdendo muitas das esperanças ao longo destes últimos anos que têm sido tão duros, tão terríveis, para cada um, para as comunidades, para os países, para o planeta.
O cowboy ameaça matar o fazendeiro
A ação se passa em um inverno extremamente rigoroso de uma das últimas décadas do século XIX, em um lugar que é literalmente o fim do mundo – há uma trilha que só vai até a pequenina cidade, não prossegue a partir dela, conforme é bem enfatizado em um dos diálogos marcantes do filme. “A trilha termina nesta cidade. Não há lugar nenhum para ir, a não ser voltar”, diz Blaise.
A cidadezinha, no Norte de Wyoming, se chama Bitters – um nome bastante apropriado, já que bitter significa amargo. Tem uma única rua e os estabelecimentos básicos para atender aos fazendeiros em torno – um armazém, um posto dos Correios, uma estrebaria, um hotel-saloon, uma barbearia, um veterinário. A população ali naquele núcleo é em torno de 20 pessoas.
Blaise Starrett (o papel, repito, de Robert Ryan) é dono de uma grande fazenda de gado. Duas vezes por ano ele leva parte de seu rebanho para vender em algum lugar ao Sul, e para isso precisa atravessar a fazenda de um colono chamado Hal Crane (Alan Marshal).
Blaise não tolera esse Hal Crane – e por vários motivos. Criador de gado, cowboy, literalmente, tem antipatia, desprezo pelos homesteaders – os colonos, vindos em geral do Leste, com título de propriedade de terra garantido pelo governo, como incentivo à conquista dos amplos territórios do Oeste.
E ficou sabendo que Hal encomendou um grande carregamento de arame farpado para cercar suas terras – o que impedirá Blaise de passar com seu gado por elas.
O arame farpado é o pretexto para Blaise, no momento em que a narrativa começa, estar querendo enfrentar Hal.
Mas, na verdade, há um outro motivo para ele odiar o colono: Hal é casado com a mulher mais bela da região, Helen (o papel, repito, de Tina Louise). Blaise e Helen tiveram um caso no passado – mas ela se casou com o outro.
Na primeira sequência do filme, Blaise está cavalgando em direção à cidadezinha de Bitters junto com seu fiel capataz, Dan (o papel de Nehemiah Persoff), no meio da paisagem tomada pela neve espessa. No momento em que eles chegam perto de uma carroça que chegou até Bitters com o arame farpado, Dan estava pedindo ao patrão para ser razoável. Ao que Blaise responde: –
– “Cansei de ser razoável. Eu disse a Crane o que aconteceria se ele pusesse aquelas cercas.”
E Dan: – “Blaise, já passamos juntos por muita coisa difícil, e estive com você o tempo todo. Mas uma cerca de arame farpado é uma desculpa esfarrapada para transformar a mulher de Crane em viúva. No que você ficou pensando durante o inverno – na cerca de arame de Crane, ou na bela mulher dele?”
No momento exato do duelo, chegam os bandidos
Quando Blaise e Dan chegam ao armazém de Vic (Donald Elson), a filha adolescente do comerciante, Ernine (Venetia Stevenson), oferece um café para eles, num pequeno cômodo ao lado do grande salão. Sentada à mesa da saleta está Helen Crane.
Ali, naquele lugar, e mais tarde no único hotel da cidade, onde todos se hospedam para passar a noite, Helen pede ao ex-amante que deixe o marido dela em paz. Mas Blaise parece teimoso feito uma mula, e está decidido a provocar um enfrentamento com Hal Crane – um sujeito que nunca soube usar armas.
Na manhã seguinte, a cena está armada: de um lado, Hal e dois amigos – amadores nessa coisa de atirar. Do outro, Blaise Starrett, um sujeito com amplo passado de mestre no uso do revólver. Estão no bar do hotel, prontos para sacar.
No momento exato em que vai haver o confronto – estamos com exatos 19 minutos dos 92 de duração do filme -, entram em cena Jack Bruhn (o papel do grande Burl Ives, grande em todos os sentidos) e seu bando de ladrões e assassinos. Os fora-da-lei do título original. A quadrilha maldita do título escolhido pelos exibidores brasileiros.
O momento é seriíssimo, grave, pesado – mas o roteirista Philip Yordan, um mestre, um ás, não se conteve e escreveu um diálogo que é ao mesmo tempo maravilhoso mas irônico, quase brincalhão.
Blaise, enquanto os bandidos de Bruhn vão recolhendo as armas de todos os presentes: – “Podemos ajudá-los em algo, forasteiros?”
Bruhn, com aquele corpanzil todo de Burl Ives: – “Procurávamos um lugar tranquilo”.
Blaise: – “Estávamos resolvendo um problema particular”.
E Bruhn: – “Me desculpem. Não gosto de entrar sem convite em uma festa”.
É um pouco adiante nessa conversa com o chefe da quadrilha que acabou de chegar à cidade que Blaise diz a frase já citada: – “A trilha termina nesta cidade. Não há lugar nenhum para ir, a não ser voltar”.
Ao que Bruhn responde: – “O caminho de volta está fechado”.
Não é bem que o caminho de volta estivesse fechado. É que por ele vinha, perseguindo a quadrilha de Bruhn, todo um destacamento da Cavalaria dos Estados Unidos. Bruhn, ele mesmo um ex-capitão do Exército da União, que lutara contra os confederados do Sul na Guerra de Secessão, antes de se dedicar ao negócio mais rentável de assaltar, havia liderado seu bando no roubo do carro-forte que levava o dinheiro para o pagamento dos soldos dos militares do território.
A intenção do chefe da quadrilha era descansar por uma noite ali naquela cidadezinha perdida naquele fim de mundo, antes de prosseguir na fuga da Cavalaria que vinha atrás deles. E aproveitar para fazer com que o médico da cidade retirasse uma bala que havia se alojado no seu peito, pouco acima do coração.
Os bandidos dele queriam aproveitar a parada para encher a cara de uísque e comer as mulheres do lugar.
Chefe rígido, exigente, Bruhn determina que seus homens não façam nem uma coisa nem outra.
A ordem não é bem recebida, é claro.
O roteiro de Philip Yordan, a direção segura de André de Toth, o bom elenco, tudo faz com que o espectador tema, a partir do momento em que a quadrilha toma conta do lugar, que as ordens de Bruhn sejam descumpridas – e aquele punhado de brutamontes assassinos parta para cima das poucas mulheres da cidade.
Há um elemento a mais de perigo: a cidade não tem médico – tem apenas um veterinário, Doc Langer (Dabbs Greer), um bom homem, mas obviamente nada preparado para fazer uma cirurgia para extrair a bala do peito do grandalhão Bruhn.
E Blaise e todos os demais da cidade percebem bem rapidamente que, sem Bruhn para segurá-los, aqueles homens se transformarão em feras assassinas.
E o filme de fato consegue passar para os espectadores uma sensação de medo, temor, pavor. É impressionante.
Uma cidade inteira presa e apavorada
O cinema americano fez bons filmes sobre bandidos que invadem uma casa e transformam a vida da família em um absoluto, pavoroso inferno. Quatro anos antes deste Quadrilha Maldita, em 1955, William Wyler dirigiu Horas de Desespero/The Desperate Hours, em que três bandidos fogem da prisão e invadem a casa de uma família. O líder dos bandidos era interpretado por Humphrey Bogart. A mesma história, de Joseph Hayes, seria refilmada em 1990 por Michael Cimino, com Mickey Rourke como o bandido que inferniza a vida de uma família; o filme teve o mesmo título do anterior no Brasil, e quase exatamente o mesmo no original – Horas de Desespero/Desperate Hours.
O grande Humphrey Bogart também interpretou um bandidão que invade um restaurante isolado no meio do deserto e aterroriza as pessoas que estão ali em outro belo filme dos anos de ouro de Hollywood, A Floresta Petrificada, que Archie Mayo dirigiu em 1936.
Lembrei desses filmes, depois que terminei de ver Quadrilha Maldita, mas seguramente há outros com o mesmo tema. A única diferença é que, aqui, os bandidos tomam conta de uma cidade inteira, e submetem toda a população – pequena, é verdade – à tortura do pavor com o que poderá vir a acontecer de pior a cada hora, a cada minuto.
André de Toth é um diretor de mão firme; fez bons policiais, bons filmes noir – e bons westerns. Dele diz o Dicionário de Cinema – Os Diretores, de Jean Tulard: “Ocupou um lugar significativo no cinema húngaro como roteirista e como realizador antes de fugir para Londres em 1940. Começou em 1943 uma nova carreira em Hollywood como especialista em filmes de ação. Thriller, espionagem, western, aventuras exóticas, fantástico, ele abordou todos os gêneros com sucesso.” E encerra: “Tornara-se o quarto dos três mosqueteiros caolhos de Hollywood, junto com John Ford, Raoul Walsh e Fritz Lang”.
Não conhecia essa moça Tina Louise. Nascida em 1934, em Nova York, estava portanto com apenas 25 aninhos quando interpretou essa Helen Crane – uma personagem rica, interessante, uma mulher que se arrepende de ter casado com o homem errado, ama o outro, mas, por dever, por querer fazer o que é o tido como certo, se sacrifica e permanece ao lado do marido.
Tem uma filmografia extensa, de 85 títulos, e ainda em 2019 estava no elenco de Tapestry, um drama que aparentemente não foi exibido no Brasil. Numa passada pela lista de seus filmes, só reconheci As Esposas de Stepford, a primeira versão, de 1975, dirigida por Bryan Forbes (haveria uma refilmagem em 2004, dirigida por Frank Oz, que no Brasil teve o título de Mulheres Perfeitas).
“Excelente western, com esplêndidas imagens”
O filme foi uma produção de uma empresa pequena, Security Studios. A distribuição ficou a cargo da United Artists, razão pela qual o livro The United Artists Story fala dele. E fala bem:
“Day of the Outlaw foi um western desolador e poderoso, passado numa paisagem de inverno de Wyoming. O diretor Andre de Toth construiu uma alegoria tensa e melancólica sobre o bem e o mal a partir de um roteiro de Philip Yordan (baseado no romance de Lee Wells). Começava com uma confrontação entre um rude fazendeiro de gado, Robert Ryan, e um pequeno rancheiro, Alan Marshal, cuja esposa, Tina Louise, havia tido um caso com Ryan. Eles são interrompidos pela chegada de seis foras-da-lei chefiados por Burl Ives. Eles mantêm a comunidade isolada sob terror durante dois dias enquanto Ives tem uma bala removida de seu pulmão.”
Em seguida, o livro conta, em duas frases, o final da história.
Leonard Maltin deu 2 estrelas em 4 para o filme, ao qual dedicou uma única linha: “Forte western melodrama sobre o fora-da-lei Ives e bando dominando uma cidade isolada do Oeste.”
O Guide des Films de Jean Tulard premia com 3 estrelas em 4 o filme que na França foi distribuído como La Chevauchée des Bannis, a cavalgada dos banidos: “Excelente western série B: bom roteiro, boas interpretações (a oposição Ryan-Ives e as caras apavorantes dos bandidos, com menção especial a Jack Lambert, que interpreta Tex, de fato um dos mais ferozes dos monstros) e esplêndidas imagens (os cavalos que se afundam na neve).”
É isso aí. Um grande western, um grande filme.
Anotação em outubro de 2020
A Quadrilha Maldita/Day of the Outlaw
De André de Toth, EUA, 1959
Com Robert Ryan (Blaise Starrett),
Burl Ives (Jack Bruhn),
Tina Louise (Helen Crane)
e Alan Marshal (Hal Crane, o marido de Helen), Venetia Stevenson (Ernine, filha do dono do armazém), David Nelson (Gene, o jovem do bando), Nehemiah Persoff (Dan, o auxiliar de Blaise), Jack Lambert (Tex, do bando), Frank DeKova (Denver, do bando), Lance Fuller (Pace, do bando), Elisha Cook Jr. (Larry Teter), Dabbs Greer (Doc Langer, o veterinário), Betsy Jones-Moreland (Mrs. Preston), William Schallert (Preston), Helen Westcott (Vivian), Donald Elson (Vic, dono do armazém), Robert Cornthwaite (Tommy), Michael McGreevey (Bobby, o garoto irmão de Ernine), George Ross (Clagett), Arthur Space (Clay),
Paul Wexler (Vause, do bando), Jack Woody (Shorty, do bando)
Roteiro Philip Yordan
Baseado em romance de Lee E. Wells
Fotografia Russell Harlan
Música Alexander Courage
Montagem Robert Lawrence
Produção Security Pictures, distribuição United Artists. DVD Versátil.
P&B, 92 min (1h32)
Disponível em DVD,
***1/2
Título na França: La Chevauchée des Bannis. Em Portugal: Homens de Gelo.
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