O Rei do Show é um filme absolutamente feérico, exuberante. Os números de canto-e-dança são muitos – e maravilhosamente executados. É um show de sons, cores, luzes, com montagem rápida, alucinante como os mais perfeitos clipes musicais dos anos 80 e 90. A história é fantástica, beira o onírico, o improvável – parece uma fantasia dos estúdios Disney. E, no entanto, é verdadeira.
No visual e nos números musicais tão feéricos, exuberantes, The Greatest Showman, produção caprichada de 2017, me fez lembrar de grandes musicais das últimas décadas, como Chicago (2002) e Moulin Rouge (2001), um pouco de Nine (2009), algumas das sequências de danças com grande quantidade de figurantes em Rocketman (2019).
Bem, acho que é preciso me explicar melhor, já que musicais antigos também tinham sequências com dezenas de figurantes – basta lembrar dos célebres números de incrível visual imaginados por Busby Berkeley.
Boa parte da força de The Greatest Showman vem dos números musicais em que há um grande número de figurantes, tomadas rápidas, montagem acelerada, tudo com uma encenação a mil por hora, de tirar o fôlego. Um troço hip hop, moderno, up to date. Belo, sim, muitíssimo bem encenado – mas quase exaustivo, de tanta agilidade, tanta rapidez, tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo.
Mais que um musical da Broadway, mais que um musical já moderno como Chicago, é algo parecido como o teatro de vaudeville a 360 quilômetros por hora. O circo a 400 quilômetros por hora.
Acho que agora minha tentativa de descrição ficou mais próxima do que é o filme.
Creio que dá para dizer que The Greatest Showman tem um visual que seria assim uma mistura de um filme de circo, como O Maior Espetáculo da Terra (1952), o clássico de Cecil B. DeMille, com um pitada de Monstros/Freaks (1932), de Tod Browning, as cores do Moulin Rouge de Buz Luhrmann, e um pouco de Walt nos Bastidores de Mary Poppins (2013), de John Lee Hankcock – tudo batido no liquidificador, misturado, e colocado pra tocar em rotação acelerada.
Em boa parte do filme, as tomadas são tão rápidas, a montagem é tão acelerada, que nada menos de seis profissionais assinam a montagem do filme, algo que eu não me lembrava de ter visto antes.
O sujeito que inventou o termo show business
E essa foi uma bela forma que os realizadores escolheram para contar um pouco da vida de P.T. Barnum, um visionário, sonhador, idealista, às vezes completamente alucinado de quem eu jamais tinha ouvido falar, e é tido, pura e simplesmente, como o cara que inventou o show business tal qual ele passou a ser conhecido a partir do final do século XIX.
O filme optou por não chamar a atenção do espectador para isso, mas há relatos de que foi P.T. Barnum o camarada que cunhou, que inventou, que pela primeira vez usou a expressão “show business”.
Imagine só o eventual leitor. Há controvérsias a respeito de quem exatamente usou pela primeira vez a expressão “nouvelle vague”, ali pelo final dos anos 1950, quando aquele bando de críticos dos Cahiers du Cinéma – François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Eric Rohmer – começou a fazer seus próprios filmes. Sobre quem inventou o nome “neo-realismo’, quando, na segunda metade da década de 1940, Vittorio De Sica, Cesare Zavattini, Roberto Rossellini e outros começaram a fazer filmes fora dos estúdios, nas ruas das cidades italianas empobrecidas ao final da Segunda Guerra.
Imagine a curiosidade sobre a origem do termo show business! Em 1946, Irving Berlin lançou em um musical da Broadway a canção “There’s No Business Like Show Business”, que depois viraria o título do musical de 1954 de mesmo nome, no Brasil O Mundo da Fantasia. Mas P.T. Burnum viveu entre 1810 e 1891. Irving Berlin era um garotinho de 3 anos de idade na Rússia czarista quando o sujeito que criou o termo passou desta para melhor.
Lá pela metade do filme, há uma sequência – interessantíssima, fascinante, absolutamente distante da mais remota proximidade do realismo – em que P.T. Burnun (o papel do australiano Hugh Jackman) tenta convencer Phillip Carlyle a se associar a ele no circo. Carlyle (interpretado por Zac Efron) era um rapaz de família riquíssima e escrevia peças para o teatro “sério”. Burnun queria cooptar o sujeito bem nascido, de família da alta sociedade, como parte de sua tentativa de fazer seu circo ganhar o respeito dos ricos, dos jornais, dos críticos.
E então Barnum-Hugh Jackman – enquanto ele e Carlyle-Zac Efron bebem dezenas e dezenas de shots de uma aguardente que não consegui identificar, provavelmente bourbon, em tomadas frenéticas, de não mais que 5 segundos cada, e com um bando de extremos, radicais plongées – diz a frase. Diz que Carlyle talento para “show business”.
Segundo o IMDb, a sequência filmada originalmente era mais longa do que a que acabou na montagem final. Na sequência que acabaria sendo cortada, Carlyle respondia que não sabia o significado da expressão “show business” – ao que Barnum replicava que ele havia acabado de inventar o termo.
Ainda segundo o IMDb, esse diálogo inteiro aparece em um dos trailers do filme – embora tenha sido cortado na montagem final.
Uma vida mostrada como exemplo da luta de classes
Os roteiristas Jenny Bicks e Bill Condon montaram a história de P.T. Burnun como um exemplo típico da luta de classes. Depois de um número musical espetacular de abertura, vemos P.T. Burnun criança (o papel de Ellis Rubin), um pobretão, filho de costureiro, já apaixonado por Charity (Skylar Dunn), a filhinha adorável de um milionário sem coração.
Remando revolucionariamente contra os desejos do pai, a jovem Charity desde sempre corresponde ao amor do jovem P.T. E ainda não se passaram sequer 10 minutos dos 105 do filme quando há um corte no tempo e um P.T. já jovem adulto e interpretado por Hugh Jackman se apresenta diante do mui cruel e racista e classsista milionário e diz que vai levar a filha dele e dar a ela uma vida mais que digna.
Charity adulta é interpretada pela gracinha da Michelle Williams.
Novo corte de tempo, e temos agora o casal P.T. e Charity com duas filhas lindas, absolutas gracinhas, de aí uns, sei lá, difícil determinar, talvez 7 e 8, ou 8 e 9, ou 9 e 10 anos de idade, Caroline e Helen, interpretadas por Austyn Johnson e Cameron Seely.
A vida é dura e a empresa em que P.T. estava trabalhando – uma companhia marítima – acaba falindo.
Sonhador, criativo, o sem emprego P.T. consegue um empréstimo em um banco e cria um museu.
Não rola: ninguém vai ao museu.
Uma das filhinhas sugere que ele bote lá dentro pessoas vivas – pessoas que façam os outros quererem pagar ingresso para ver. E então P.T. sai à procura de tipos esquisitos. A palavra “freaks’ – anormais, aberrações, pessoas monstruosas – é mencionada. Na Nova York de meados do século XIX que já era como a São Paulo de hoje, igual ao mundo todo, como bem definiu Caetano Veloso, P.T. acha uma mulher barbada, um anão, um gigante, um par de albinas, um par de trapezistas negros. E mais um bando de pessoas esquisitas.
E os coloca em um espetáculo. Um show. Show business.
O circo vira um extraordinário sucesso de público, transformando P.T. num ricaço – mas um fracasso de crítica. Os jornais falam mal do circo. Gente do povo protesta contra aquela exibição de “aberrações”.
Um novo-rico que veio do nada, P.T. quer porque quer a aprovação dos críticos – e, sobretudo, dos ricos, da sociedade.
É nesse ponto da história que entra aquele Phillip Carlyle de quem já se falou.
Mais adiante, entrará também uma sueca que era tida como uma cantora extraordinária, prodigiosa, uma tal Jenny Lind. Jenny Lind vem na pele da sueca Rebecca Ferguson (na foto abaixo) – e, diacho, que sueca linda e talentosa é essa Rebecca Ferguson, de filmes como A Garota do Trem e Florence: Quem é Esta Mulher?, ambos de 2016, Boneco de Neve (2017). Prossegue aquela linhagem fantástica de atrizes suecas lindas importadas por Hollywood, Greta Garbo, Ingrid Bergman, Ann-Margret, Lena Olin…
Um projeto pessoal do ator Hugh Jackman
Consta que The Greatest Showman só existe pela insistência de Hugh Jackman. Foi um projeto pessoal do ator australiano, que quis porque quis transformar em filme a vida dessa pessoa extraordinária, depois de estrelar tantas destas superproduções para adolescentes baseadas em histórias em quadrinhos, X-Men – O Filme (2000), X-Men Origens: Wolverine (2009), mais aquele Austrália (2008) de Baz Lurhmann que meu fígado rejeitou aos 5 minutos de projeção.
É verdade que esse P.T. Barnum não parece, de forma alguma, uma pessoa propriamente “normal”, uma pessoa comum, como eu ou você – mas, diacho, ele existiu! Foi uma pessoa real – embora o filme seja essa coisa fantástica, inacreditável, uma perfeita fantasia à la Disney.
Hugh Jackman levou nada menos que nove antes para conseguir fazer o filme. Levou o projeto para vários estúdios de Hollywood – e, segundo disse em entrevistas, citadas pelo IMDb, encontrou uma absoluta falta de vontade de investir dinheiro em um musical original.
Em algum momento, Jackman chamou para o seu projeto de contar parte da história desse fantástico P.T. Barnum a dupla Benj Pasek-Justin Paul, os autores das canções de La La Land, o musical de 2016 que surpreendeu o mundo inteiro ao vencer nada menos que seis Oscars.
As 11 canções que a dupla criou para The Greatest Showman são belas, fortes. Pasek e Paul não tentaram nem de longe procurar uma sonoridade mais próxima ao que se produzia e ouvia em meados do século XIX, a época em que se passa a ação; muito diferentemente disso, fizeram canções bem pop, algumas de fato próximas do hip hop. Coisa moderna, ao gosto das platéias de hoje.
A 20th Century Fox deu a luz verde para o projeto, associada a três outras produtoras. Foi uma produção com orçamento, se não bilionário, ao menos bastante confortável, de US$ 84 milhões.
Há um fato interessante aí. A direção – não pesquisei o suficiente para saber se há alguma explicação clara para isso – foi parar nas mãos de um sujeito que jamais havia dirigido um longa antes, um tal Michael Gracey. Michael Gracey havia dirigido três curta-metragens entre 2003 e 2008; nos 20 anos antes da experiência de dirigir essa produção cara, o rapaz tinha trabalhado em animações e como supervisor de efeitos visuais.
Diacho: apesar de iniciante, inexperiente, fez um belo trabalho. É bom, tem talento.
The Greatest Showman não é apenas um filme de grande beleza visual. Além de mostrar nas telas essa pessoa fantástica que foi P.T. Burnum, ele acaba sendo um libelo, um panfleto em defesa das pessoas que têm aparência diferente da maioria – e, assim, uma abençoada e muito bem-vinda apologia da diversidade, do respeito às minorias todas.
Burnun foi de fato recebido pela rainha Victoria
Embora contada de uma forma tão feérica, tão fantasiosa, a história realmente se baseia em fatos e personalidades reais. Os personagens que fazem parte do circo de P.T. Burnum no filme existiram de fato – a mulher barbada, o gigante, o homem inteiramente tatuado, o anão.
Apenas dois personagens do filme são fictícios: o já citado Phillip Carlyle, interpretado por Zac Efron, e a linda trapezista mulata, Anne Murray, por quem Carlyle se apaixona. O papel de Anne Murray coube a Zendaya, jovem nascida outro dia mesmo, em 1996, em Oakland, Califórnia, e um tremendo sucesso desde sua participação em um seriado do Disney Channel, No Ritmo/Shake It Up (2010-2013).
Anne Murray e o caso de amor dela com Phillip Carlyle são inteiramente fictícios. Mas o personagem de Carlyle se baseia numa pessoa real, James Anthony Bailey, que foi sócio de P. T. Burnun no circo, o Ringling Brothers and Barnum & Bailey Circus.
Um dos episódios mais fantásticos entre tantos episódios fantásticos do filme é a sequência em que P.T. Burnum, Phillip Carlyle e boa parte da trupe do circo são recebidos pela Rainha Victoria.
Pois é: há aí um exagero, sim – mas até esse episódio fantástico se baseia em fato real. P.T. Burnum foi realmente recebido em audiência pela monarca que reinava sobre o então gigantesco, monstruoso Império Britânico. Mas ele não foi acompanhado por vários membros da trupe – estava em companhia apenas de Tom Thumb, o anão (que, no filme, é interpretado por Sam Humphrey).
Ah, sim: isso não aparece no filme, mas P.T. Burnum foi recebido na Casa Branca pelo presidente Abraham Lincoln.
O filme teve uma carreira bem diferente do padrão nas bilheterias. Foi lançado mundialmente perto do Natal de 2017 – exatamente na mesma época de Star Wars: Episode VIII – The Last Jedi. O filme da franquia criada por George Lucas estourou de imediato e rendeu US$ 1,3 bilhão no mundo inteiro, enquanto este aqui parecia que seria uma decepção. A maioria das grandes produções – nota o IMDb – costuma atingir sua melhor posição nas bilheterias nas quatro primeiras semanas após o lançamento, e, depois da quarta semana, começa a cair. The Greatest Showman, no entanto, se manteve em boas posições durante várias semanas, até crescendo ao longo desse período.
Rendeu US$ 434 milhões – não perto das maiores bilheterias da História, mas um excelente resultado.
Merecido sucesso. É um delicioso filme.
Anotação em junho de 2020
O Rei do Show/The Greatest Showman
De Michael Gracey, EUA, 2017
Com Hugh Jackman (P.T. Barnum)
e Michelle Williams (Charity Barnum), Zac Efron (Phillip Carlyle), Zendaya (Anne Wheeler, a trapezista), Rebecca Ferguson (Jenny Lind, a cantora sueca), Austyn Johnson (Caroline Barnum, filha de P.T e Charity), Cameron Seely (Helen Barnum, filha de P.T e Charity), Keala Settle (Lettie Lutz), Sam Humphrey (Tom Thumb, o anão), Yahya Abdul-Mateen II (W.D. Wheeler, o irmão de Anne), Eric Anderson (Mr. O’Malley), Ellis Rubin (Barnum criança), Skylar Dunn (Charity criança), Daniel Everidge (Lord of Leeds), Radu Spinghel (O’Clancy)
Roteiro Jenny Bicks e Bill Condon
Baseado em história escrita por Jenny Bicks
Fotografia Seamus McGarvey
Música John Debney e Joseph Trapanese
Canções Benj Pasek-Justin Paul
Montagem Tom Cross, Robert Duffy, Joe Hutshing, Michael McCusker, Jon Poll, Spencer Susser
Casting Tiffany Little Canfield, Bernard Telsey
Produção Bona Film Group,
Chernin Entertainment, TSG Entertainment, Twentieth Century Fox.
Cor, 105 min (1h45)
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