Hebe: A Estrela do Brasil, de 2019, dirigido por Maurício Farias, com Andrea Beltrão no papel-título, não é uma biografia de Hebe Camargo. É bem diferente, nesse sentido, de outros filmes mais ou menos recentes que contam as histórias de grandes personalidades da cultura brasileira, como Chacrinha – O Velho Guerreiro (2018) ou Gonzaga – De Pai Pra Filho (2012).
A biografia de Hebe, isso a mesma equipe fez, paralelamente ao filme, numa minissérie de 10 episódios – o mesmo diretor, os mesmos atores, a mesma roteirista, Carolina Kotscho.
Hebe: A Estrela do Brasil, o filme, é um recorte da vida dessa mulher que foi uma das personalidades mais marcantes da história da televisão brasileira nestes seus primeiros 70 anos. Um capítulo. Um pequeno trecho. Focaliza um momento específico, determinado, da vida de Hebe, entre 1985 e 1987.
E é um momento interessantíssimo, rico. E também pouco conhecido hoje, ou, no mínimo, menos conhecido do que deveria.
Sou prova disso.
A Hebe Camargo que Hebe: A Estrela do Brasil mostra é muito, mas muito diferente da Hebe Camargo que ficou na memória das pessoas. A diferença é tão grande, tão abissal, que assusta. Cheguei a achar, enquanto via o filme, que estava diante de um embuste, uma falsificação.
E não é embuste, falsificação, coisa alguma.
O que me pareceu à primeira vista um defeito do filme é a rigor uma grande qualidade. Hebe: A Estrela do Brasil traz à tona aquela Hebe, aqueles fatos que a cercaram, bem no início da Nova República, o primeiro governo civil após 21 anos de ditadura militar, que tanta gente desconhece, ou de que não se lembra.
Como é aquela frase? “De 15 em 15 anos, o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos.” O grande Ivan Lessa é o autor – parece…
Hebe era tida como uma direitista, uma reacionária
A imagem que a imensa maioria das pessoas bem informadas deste país tem de Hebe é de que ela era – além de uma inegavelmente competente apresentadora de TV, uma comunicadora de imenso talento, força, carisma – uma tremenda de uma direitista, uma reacionária, amiga e admiradora de Paulo Salim Maluf, esse sujeito que personificava, até alguns anos atrás, a direita babante, a porção mais retrógrada da política brasileira. Babante, retrógrada e corrupta.
A Hebe que o filme Hebe mostra é uma danada de progressista porreta, uma mulher pra frentíssima, uma lutadora incansável contra a censura, contra os preconceitos, a favor dos direitos dos LGBTs.
Ao longo dos 112 minutos do filme, me peguei exclamando algumas vezes coisas do tipo: – “Mas, diabo, transformaram a Hebe numa guerreira progressista!”
Nem Mary, que em 1987 cobria a Constituinte em Brasília para O Globo, nem eu, que na época editava Cultura na revista Afinal, nos lembrávamos de que Ulysses Guimarães – o Senhor Diretas, o Anti-Candidato, o homem que todos nós admirávamos porque tinha nojo, nojo, nojo da ditadura e era o símbolo da luta contra o regime militar – havia entrado com processo contra Hebe Camargo porque ela falou mal dos deputados e senadores.
Me consola um tanto saber que não fomos os únicos, Mary e eu, a nos surpreendermos com aquela Hebe tão Passionária. Sim, não fomos os únicos, como demonstra o texto de Luiz Carlos Merten no Estadão de 30 de julho de 2020:
“Desde sua primeira apresentação – no Festival de Gramado, no ano passado –, o filme foi muito criticado. O roteiro de Carolina Kotscho foca a trama nos anos 1980, quando Hebe já era apresentadora estrela e desafiava a censura do regime militar pela liberalidade com que abordava questões de gênero no programa. Carolina foi acusada de falsificar a realidade para mostrar uma Hebe guerreira da democracia, quando ela, por sua ligação pessoal com o malufismo, seria o oposto. Em Gramado, a roteirista chegou a provocar: ‘Não tem uma frase (da Hebe) que seja invenção minha.”
O Brasil não é um país fácil. Definitivamente, não é para principiantes.
Poderá haver até mesmo quem seja capaz de acusar Hebe: A Estrela do Brasil de ter um certo lulo-petismo em seu DNA. O nome Kotscho está aí: Carolina é filha de Ricardo Kotscho, jornalista admirado por todos os jornalistas, que, em 2003 a 2004, foi secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência, e juntou para sempre seu nome ao de Luiz Inácio Lula da Silva, de quem se tornou amigo pessoal.
Mas a verdade é que o filme mostra uma Hebe bem mais complexa, menos simplista, do que a imagem que eu e boa parte do Brasil fazíamos.
Mostra uma Hebe um tanto surpreendente. Uma surpreendente estrela num país sem dúvida alguma surpreendente.
Hebe não protestou contra a censura da ditadura
O país é tão surpreendente, complexo, difícil, que o grande Luiz Carlos Merten cometeu um equívoco grosso em seu texto no Estadão: ao contrário do que ele afirma, Hebe não desafiou a censura do regime militar. Na verdade, Hebe jamais desafiou o regime militar, que sempre apoiou.
Já na abertura do filme é dito que a ação se passa em 1985. Na primeira sequência, fala-se a data exata em que Nair Bello está entrevistando Hebe na Rádio Excelsior de São Paulo, e, com isso, irritando o dr. Magalhães, do governo federal – 29 de maio de 1985.
Hebe está falando com Nair Bello – e, naquele exato momento, o dr. Magalhães, do governo federal, está ameaçando Walter Clark, então diretor da TV Bandeirantes, de tirar a concessão da emissora, caso Hebe continuasse falando aquelas coisas no ar.
Walter Clark, o sujeito genial que foi um marco, um dos responsáveis por criar o que hoje é a Rede Globo de Televisão, é interpretado por Danilo Grangheia. O dr. Magalhães lembra a Walter Clark que as emissoras de TV abertas são concessão do poder público. – “Isto é uma ameaça, dr. Magalhães?”, pergunta Walter Clark. – “É um fato”, responde o funcionário do governo.
E em seguida Walter Clark vai dar uma bronca em Hebe Camargo, pedir que ela manere o linguajar. E Hebe, naquela abertura do filme, dá uma imensa exibição de que é uma ponta de lança contra a censura, a favor da liberdade de expressão, e blá-blá-blá, e tal e coisa.
Quando o filme está ali com uns 40 minutos, mais ou menos, Hebe Camargo, cansada de ser advertida para se conter, para não falar de veados, bichas, anuncia para o Brasil, ao vivo, que não vai mais trabalhar para a TV Bandeirantes.
Joga o microfone no chão!
Cena de grande impacto.
É fantástico, é o show da vida: Hebe Camargo, a libertária, a Passionária da televisão brasileira, ergue os punhos e enfrenta a diabólica censura…
Do regime militar? Da ditadura que prendeu, torturou, matou, censurou, mandou para o exílio, botou censor dentro das redações dos jornais que ousavam não seguir a censura prévia, não abordar os temas proibidos?
Nâni, nâni. Nada disso.
Entre 1964 e o início de 1985, enquanto durou a ditadura militar, não se tem qualquer registro de que Hebe Camargo tenha protestado contra coisa alguma.
É fantástico, é o show da vida: ela só passou a protestar depois que assumiu a Presidência da República, em 15 de março daquele ano de 1985, um sujeito que não era general.
É bem verdade que José Sarney não era propriamente o presidente da República que o país esperava, mas, diabo, o candidato que havia derrotado o dos milicos – exatamente o dr. Paulo que Hebe Camargo tanto admirava – tinha morrido, e então fazer o quê? Restava ao país José Sarney.
E é contra o governo de José Sarney que Hebe Camargo protesta.
É contra o governo civil que Hebe Camargo se insurge em seu programa, primeiro na Bandeirantes, depois no SBT.
O filme não mostra isso claramente. De forma alguma. Tanto que um repórter e crítico tão competente quanto Luiz Carlos Merten se confundiu e afirmou que Hebe “desafiava a censura do regime militar”.
Andrea Beltrão parece ter incorporado Hebe
Andrea Beltrão está uma perfeita Hebe Camargo. Parece que baixou a Hebe nela – um tanto assim como baixou Chacrinha em Stepan Nercessian em Chacrinha – O Velho Guerreiro, de Andrucha Waddington.
Há aí todo um belíssimo trabalho para que a atriz encarne Hebe. As jóias – o uso exagerado de um porrilhão de jóias. O cabelo. E, claro, há o talento e a experiência da atriz. Em muitos momentos do filme Andrea Beltrão se parece muito mais com Hebe Camargo do que com Andrea Beltrão.
É uma caracterização de fato admirável. É o grande ponto alto do filme, na minha opinião.
Há, é claro, pontos fracos. Não está nada bem o resto do elenco. Berra-se demais, ao longo de todos os 112 minutos do filme.
Diacho: ninguém berra o tempo absolutamente todo na vida.
Bebe-se e fuma-se demais, ao longo de todos os 112 minutos do filme. Tentativa óbvia, óbvia demais, de contornar as más interpretações. A necessidade de ter um copo de bebida ou um cigarro, ou os dois, nas mãos é a prova mais clara de que o diretor e os atores não sabem o que fazer com as mãos.
Alguns pequenos exemplos de pontos ruins, que não foram bem resolvidos:
Entre a emissora e sua casa, na sequência inicial, Hebe leva um minuto inteiro para atravessar um túnel. O túnel da Nove de Julho, o único que existia em São Paulo no final dos anos 80, é umas 20 vezes menor do que aquele que o filme mostra.
Bate-se vigorosamente em alguma porta fechada, ao longo do filme, umas seis, sete, oito vezes.
Vemos duas vezes festas do filho de Hebe, Marcello (Caio Horowicz), com os empregados da gigantesca casa. Duas vezes, festas parecidas, repetitivas.
Hebe e duas amigas cantam – horrorosamente, desafinadissimamente, ofensivamente – no Terraço Itália. Nas mesas, as pessoas conversam naturalmente, como se não houvesse aquele ruído ensurdecedor das chatas. É uma sequência dolorosa de se ver.
Lélio, o marido (o papel de Marco Ricca), dá uma tremenda baixaria numa boate lotada. Ninguém dá a menor bola, ninguém presta atenção – como se fosse possível haver uma baixaria envolvendo Hebe Camargo e ninguém notar! Essa é outra sequência bastante dolorosa de se ver.
O hospital público em que está o cabeleireiro Carlucho (Ivo Müller), internado com Aids – muito provavelmente o Hospital das Clínicas – é imaculadamente limpo, limpíssimo. Mais perfeito que um Albert Einstein, um Sírio Libanês. É um detalhinho – mas é um detalhinho que demonstra muito. Como um western em que a roupa do mocinho ou do bandido que viajou a cavalo durante dias está limpinha, recém saída do departamento de figurinos do estúdio.
O filme nunca deixa claro que a ditadura já havia acabado
Talvez o principal defeito do filme seja a questão de que ele não deixa claro, em momento algum – muito antes ao contrário – que Hebe Camargo não estava se insurgindo contra a censura do regime militar.
O filme não deixa claro que ela estava se insurgindo contra o governo civil que veio após a ditadura. Que ela estava criticando o Congresso e os políticos que estavam escrevendo a nova Constituição – embora jamais tivesse criticado os políticos durante o regime militar.
No mínimo, no mínimo, pode-se dizer que o filme deu uma simplificada nas coisas.
É uma saída fácil mostrar a protagonista da história como uma Passionária, uma heroína da luta contra a censura, da luta a favor dos veados, dos fracos e dos oprimidos, Robin Hood da telinha.
É uma saída fácil simplificar as coisas.
A Hebe que o filme mostra é a Hebe real
Mas não ajuda muito num país tão complexo, tão complicado.
O filme não faz nenhuma tentativa de contextualizar as coisas, de ajudar o espectador a se situar diante do que acontecia no país naqueles meados de anos 80.
Dá de barato que todos os espectadores estão cansados de saber quem é Hebe Camargo, qual era sua importância na História da TV brasileira.
Bem… Sei lá. Talvez os filmes não tenham a obrigação de contextualizar a realidade que vão mostrar.
Mas é fascinante verificar como a Hebe que o filme mostra é a Hebe real.
Eu não me lembrava disso, mas a verdade é que, ali por 1985, remando contra todas as marés, de maneira corajosa, maravilhosa, Hebe expôs seguidamente na TV a questão da homossexualidade – um item até então tabu. Entrevistou pessoas ligadas à defesa de homossexuais; a antropóloga Rosely Roth, que era na época representante do Grupo de Ação Lésbica Feminista, foi entrevistada por Hebe duas vezes, e ficou impressionada com a amplitude da repercussão das entrevistas. “A abertura dada pela Hebe às minorias que não têm acesso à mídia deveria ser repetida por todas as pessoas ligadas aos meios de comunicação”, declarou ela na época.
A apresentadora promoveu dois debates sobre homossexualidade, em seu programa na Bandeirantes. Levou para ser entrevistada a polêmica, boca-suja Dercy Gonçalves e a transexual Roberta Close – e o filme mostra essa entrevista em longa sequência, com Dercy representada por Stella Miranda e Roberta Close, por Renata Bastos (na foto acima).
Mas foram suas declarações contra a classe política, os congressistas, que renderam a ela ao mesmo tempo as maiores dores de cabeça e a atenção da imprensa mais séria, mais sisuda. Antes presença apenas nas colunas das revistas e jornais dedicadas a artistas de TV, Hebe teve uma fase em que brilhou nas páginas de política, com a decisão de Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara dos Deputados, de processá-la. Em 1987, Hebe esteve nas páginas amarelas da Veja, no programa Roda Viva da TV Cultura e na capa da Afinal, a semanal de informação que teve vida breve, entre 1984 e 1988.
Na excelente – e bem longa – reportagem de capa da Afinal de 18/8/1987, de autoria de Antônia Chagas, Hebe diz: “Agora que todo mundo está falando que eu mudei, comecei a prestar atenção. Não é que mudei mesmo? As pessoas estão estranhando porque antigamente meu programa era mais show. Eu entrevistava artistas, conversava sobre a vida deles em casa e, como aquilo era um tabu, era justamente o que me interessava. Mas de repente estou vivenciando todo tipo de problema, ouço todo tipo de conversa e acho que o País nunca esteve numa crise tão aguda como agora. Então não posso usar um veículo tão importante como é a televisão sem falar dessas coisas. Mudei e talvez tenha mudado em função da mudança de tudo. Mudou a vida, mudou o sistema político do país. Talvez pela maturidade eu me sinta mais segura naquilo que eu digo. E eu não tenho comprometimento político nenhum, nunca fui de pedir favores para ninguém e me sinto com direitos adquiridos para poder dizer o que penso como cidadã. Devo ter algum direito de expressar isto pois vivemos em uma democracia, como falam, e me arrisco a testar essa democracia.”
Uma peça, uma figura, a tal da Hebe Camargo. Fascinante, complexa – como seu país.
Anotação em agosto de 2020
Hebe: A Estrela do Brasil
De Maurício Farias, Brasil, 2019
Com Andrea Beltrão (Hebe Camargo)
e Marco Ricca (Lélio Ravagnani, o marido), Danton Mello (Cláudio Pessutti, o sobrinho e assistente), Caio Horowicz (Marcello Camargo Capuano), o filho), Ivo Müller (Carlucho, Luiz Carlos Trote, o cabeleireiro), Danilo Grangheia (Walter Clark), Gabriel Braga Nunes (Décio Capuano, o ex-marido), Selma Egrei (Ignês Capuano), Cláudia Missura (Nair Bello), Karine Teles (Lolita Rodrigues), Daniel Boaventura (Sílvio Santos), Fernando Eiras (Joesley Castro Magalhães), Felipe Rocha (Roberto Carlos), Otávio Augusto (Chacrinha), Stella Miranda (Dercy Gonçalves), Lucca Eberhardt (Ricky Martin), Bruno Albuquerque (Robi Draco Rosa), Gustavo Klein (Patrício Bisso, personificando Olga Del Volga), Rael Barja (Roger Moreira), Renata Bastos (Roberta Close), Sérgio Rufino (Giba Um), Lúcio Mauro Filho (Ulysses Guimarães), Zedu Neves (Paulo Maluf), Andréa Bassit (Sílvia Maluf)
Roteiro Carolina Kotscho
Fotografia Inti Briones
Música Branco Mello e Emerson Villani
Montagem Joana Collier e Fernanda Franke Krumel
Direção de arte Luciane Nicolino
Figurinos Antônio Medeiros
Produção Heloisa Jinsenji, Renato Klarnet, Carolina Kotscho, Fernando Nogueira, Lucas Pacheco, Claudio Pessutti, Clara Ramos, Loma Filmes, Globo Filmes.
Cor, 112 min (1h52)
**1/2
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