Em 1947, o diretor Delmer Daves reuniu o grande Edward G. Robinson, Judith Anderson, a que será sempre lembrada como a governanta de Manderley, em Rebecca (1940), e um grupo de atores bem jovens para fazer este A Casa Vermelha/The Red House.
O próprio Delmer Daves escreveu o roteiro, baseado em um romance de George Agnew Chamberlain publicado em 1943. Toda a trama se passa numa área rural da América profunda, em região e Estado que jamais são mencionados – uma boa maneira de dizer que a história poderia acontecer em qualquer lugar.
De forma singular, interessante, a ação começa focalizando os adolescentes da região – os dois adultos protagonistas, os irmãos Peter e Ellen Morgan, interpretados por Edward G. Robionson e Judith Anderson, demoram um pouquinho a aparecer.
Nos créditos iniciais, a trilha sonora excede. A trilha é do húngaro Miklos Rozsa (1907-1995), e Miklos Rozsa é grande, mas ele tem exatamente esse problema: ele é grande. Sua música é sinfônica, forte como os mais arrebatados, exacerbados terceiros movimentos dos concertos do romantismo. Perfeita para épicos – e não à toa são de Miklos Rozsa as trilhas de Ben-Hur (1959) e El Cid (1961), superproduções, épicos. Foi minha primeira surpresa com o filme – um Miklos Rozsa grande demais para, afinal, um filme que, segundo o IMDb, o site que sabe de tudo, é um drama, filme noir, mistério.
Filme noir?
Filme noir que começa com um narrador com voz em off falando de adolescentes?
Um narrador descreve solenemente aquela área rural
Nos créditos iniciais, entre os nomes de diversos atores coadjuvantes desconhecidos, vi o de Julie London, e fiquei intrigadíssimo. Falo de Julie London mais tarde.
Na verdade, o narrador de voz em off descreve a região antes de falar dos adolescentes. É um papo que não me pareceu muito interessante:
“Tempos atrás, os bosques cobriam Phinney Ridge. Mas hoje já não guardam nenhum mistério. Modernas estradas invadiram a escuridão, e levaram luz até lá.”
(Quando o locutor fala “modernas estradas”, vemos uma estradinha de pista dupla, daquele tipo cada vez mais raro no Estado de São Paulo, hoje cheio de estradas duplicadas. Mas tudo bem, o filme é de 1947.)
“Exceto no bosque de Oxhead, ao Sul. Se alguém entrar pelo caminho abandonado que o rodeia, seria como cruzar um muro fechando a porta em seguida. Antigas veredas o sulcam vagamente, entrecruzando-se e formando ângulos sem nenhuma razão. Só uma leva ao rancho Morgan. O rancho Morgan é fascinante como um castelo sobre o qual todos já ouviram falar, mas em que poucos entraram. Só se pode chegar lá através da estrada principal que passa ali perto. Ao Norte, cruza com a estrada que vai até o rancho dos Renton. Joe Ranton, como os outros rancheiros, está prosperando. Cultiva boas maçãs. A terra do vale é muito boa.”
Pensei em desistir. Tenho um pouco (para dizer o mínimo) de preguiça de histórias de áreas rurais. Mas fui em frente.
“Jovens dos arredores frequentam a escola, levados pelo ônibus escolar. Levam mais tempo para se graduarem que os garotos da cidade. Isso porque ajudam na semeadura e depois na colheita. São garotos muito saudáveis. E não há garotas mais belas em lugar algum.”
Vemos adolescentes entrando em um ônibus escolar dos anos 40, e o narrador pára de falar para todo o sempre.
E aí vemos, na última fila do banco, os três adolescentes que terão importância fundamental na história.
Duas garotas que se aproximam de estereótipos
Teoricamente, como estão para terminar o segundo grau, são adolescentes aí de 17, 18 anos. O rapaz está entre as duas garotas. Chama-se Nath Storm, e é interpretado por Lon McCallister, que é o segundo nome a aparecer nos créditos iniciais, logo após o de Edward G. Robinson e antes mesmo do da veterana e bem reconhecida Judith Anderson.
(A ordem dos nomes dos atores nos créditos iniciais dos filmes de Hollywood era algo de extrema importância; quanto mais famoso/a, mais o ator/a atriz aparecia nos primeiros lugares nos créditos – e fazia absoluta questão disso.)
À direita da tela, está Tibby Renton – o papel de Julie London (à esquerda na foto acima). Do outro lado dele está Meg Morgan – interpretada por Allene Roberts (à direita na foto acima), em seu absoluto primeiro papel no cinema.
Trata-se – o espectador logo verá – de um triângulo amoroso. Um triângulo amoroso de adolescentes numa área rural da América profunda. Pensei de novo em desligar, mas fui em frente.
Veremos que Nath é um bom, um ótimo garoto. Ele é tão bom que incentiva sua mãe viúva (interpretada por Ona Munson) a se casar de novo – ele sabe que ela tem uma queda por um senhor da região. Nath namora a moça mais bela do pedaço, Tibby – mas Meg também gosta muito dele.
Ao longo dos 100 minutos de A Casa Vermelha, veremos que Meg e Tibby são assim bem próximos dos estereótipos da boa garota e da garota não tão boa, respectivamente. Meg é mais tímida, certinha, sensível, fiel. Tibby é vaidosa, metida, cheia de si, segura demais de sua beleza – e volúvel.
No meio do bosque proibido… um casarão amaldiçoado!
A mãe de Nath, viúva, tem uma lojinha, um armarinho, mas aquilo não dá muito pouco dinheiro.
Já o pai de Meg, Peter Morgan-Edward G. Robinson, precisa de ajuda para tocar sua fazenda. E então Meg junta as coisas: a necessidade de Nath de ganhar um dinheirinho, a vontade de ficar próxima dele, a necessidade de Peter de ter um assistente – e o garoto começa a trabalhar durante as tardes na fazenda.
Estamos aí com uns 20 minutos e o filme ainda não mostrou exatamente a que veio. Mas começa logo a dizer.
Durante a vida inteira, a garota Meg foi ensinada pelos pais adotivos, Peter e Ellen, os dois irmãos solteirões, a não andar em um bosque que faz parte da fazenda deles.
O jovem Nath, é claro, fica logo todo curioso para conhecer aquele bosque proibido. Claro: se é proibido, o adolescente quer conhecer!
Nath e Meg começam a explorar o bosque proibido.
E aí, e só aí, quando o filme está chegando, sei lá, aos 30 minutos, escancara-se do que se trata: trata-se da velhíssima história do casarão amaldiçoado! A casa vermelha do título, que fica bem no meio do bosque proibido, é um casarão amaldiçoado!
Aí dá uma preguiça incrível, porque, diacho, casarão amaldiçoado, meu Deus do céu, já foi o tema de tantas dezenas, centenas, milhares de filmes…
Mas eu tenho um site de filmes, e, além disso, tenho fascinação absoluta pelos filmes de Hollywood dos anos 30, 40, 50. Então continuei a ver.
Mas que filme noir, que nada. Vale é por Julie London
Sim, mas aí vem a questão: exatamente por que a casa vermelha é amaldiçoada? Algum fantasma? De que tipo? Casas amaldiçoadas há demais, mas a origem da maldição pode ser tanta…
Claro que não vou fazer o spoiler total e contar o fim do filme.
Me intriga é que tenham dado a ele o rótulo de noir, que, na verdade, foi o que me levou a vê-lo. A Casa Vermelha está disponível como um filme noir no YouTube, numa área chamada Cine Antique.
E o IMDb referenda. Diz que o filme é drama, noir, mistério.
Noir o cazzo! Não tem absolutamente nada de noir.
É, a rigor, um thriller psicológico, como muito bem o define a Wikipedia.
Um thriller psicológico que na verdade se revela, lá pela metade, um filme de terror. Parente – titio, ou vovô – de tantas dezenas de filmes do cinema americano sobre casas que deveriam ser evitadas, mas são procuradas pelos personagens exatamente para que o filme possa existir.
Para mim, a coisa mais fascinante deste filme fraquinho é Julie London (a esquerda na foto acima).
Julie London (1926-2000) teve duas carreiras – como atriz e como cantora. Começou como atriz bem jovem em pequenos papéis nos anos 40. A Casa Vermelha foi seu sexto filme – no ano do lançamento, 1947, ela estava com 21 aninhos. (Nada a estranhar: era bastante comum no cinema americano atores de 21 anos ou até um pouco mais fazerem papel de adolescentes de 17, 18.)
Durante a Segunda Guerra, virou uma pin-up girl – atrizes cujas fotos de maiô eram carregadas pelos soldados e penduradas em seus armários ou onde fosse possível pendurar. Não poderia ser diferente – Julie tinha um corpo perfeito, escultural. E é fascinante vê-la aqui tão jovem: ela ficou muito mais bela mais tarde, aos 30, 40 anos!
Como o diretor Delmer Daves não é bobo nem nada, inseriu no roteiro um momento em que os adolescentes vão nadar num lago – ocasião para brindar o espectador com a visão de Julie London de maiô. E o povo do marketing da United Artists, que distribuiu o filme, também não é bobo nem nada, e botou a imagem sensual dela no cartaz do filme. Até na capa do filme em Blu-ray, uns 60 e tantos anos depois, ela continuava lá: veja a foto abaixo. O que, na verdade, é uma imoral propaganda enganosa, porque amplifica absurdamente a importância da personagem dela na trama do filme.
Com o tempo, Julie London foi recebendo papéis maiores, mais importantes. Em O Homem do Oeste, de 1958, por exemplo, tinha o segundo papel principal, logo depois do grande astro Gary Cooper. A mesma coisa em Irmão Contra Irmão, também de 1958, em que contracenava com outro galã, Robert Taylor.
Fez imenso sucesso na série de TV Emergency!, que teve 133 episódios e diversas temporadas entre 1972 e 1979.
Como cantora, sua carreira teve o ápice nos anos 1950; gravou cercade 40 álbuns de jazz e pop, com um voz quente, sensualíssima, muitos com fotos dela na capa em poses que encantavam a homarada mundo afora.
Para simplificar, correndo o risco de parecer tosco: um tesão de mulher, um tesão de cantora.
O protagonista tem um pouco de Norman Bates
Uma curiosidade: George Agnew Chamberlain (1879–1966), o autor do romance em que o filme se baseia, nasceu na cidade de São Paulo, onde seus pais missionários passavam uma temporada.
“Gritos na noite de uma casa abandonada numa floresta escura formavam o cerne assustador de The Red House”, diz o livro The United Artists Story. “O diretor e roteirista Delmer Daves recriou a atmosfera sombria da novela de George Agnew Chamberlain em que dois adolescentes curiosos (Lon McCallister e Allene Roberts) descobrem o horrível segredo escondido por anos na casa.”
Só se for assim no livro, porque no filme os dois personagens – a garota Meg Morgan e o rapaz que ela ama, Nath, não descobrem o horrível segredo coisa nenhuma. Quem revela o horrível segredo é o pai adotivo de Meg, Peter Morgan, o personagem de Edward G. Robinson que, à medida em que a narrativa avança, vai se demonstrando cada vez mais um psicopata, um louco perigoso.
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 para o filme – que ele, aliás, classifica corretamente como thriller e melodrama, nada de noir. “O título se refere a uma estranha e velha casa que contém muitos mistérios e fornece medo constante ao fazendeiro Robinson. Excitante melodrama com ótimo elenco.”
O Guide des Films de Jean Tulard revela todo o final de La Maison Rouge no primeiro parágrafo, o que faz uma sinopse da história. Coisa maluca! No segundo, o da apreciação crítica, o Guide diz: “Melodrama sombrio em que Robinson se dilacera, mergulhando às vezes no exagero. Fica-se imaginando o que Hitchcock poderia ter conseguido com essa história.”
É. Tem a ver… O personagem de Edward G. Robinson tem um quê de Norman Bates, o protagonista de Psicose.
Anotação em agosto de 2019
A Casa Vermelha/The Red House
De Delmer Daves, EUA, 1947
Com Edward G. Robinson (Pete Morgan), Lon McCallister (Nath Storm), Judith Anderson (Ellen Morgan), Rory Calhoun (Teller), Allene Roberts (Meg, a filha adotiva dos Morgan), Julie London (Tibby Rinton, a namorada de Nath), Ona Munson (Mrs. Storm, a mãe de Nath), Harry Shannon (Dr. Byrne, o médico), Arthur Space (o xerife)
Roteiro Delmer Daves
Baseado no romance de George Agnew Chamberlain
Fotografia Bert Glennon
Música Miklos Rozsa
Montagem Merrilll G. White
Produção Sol Lesser, Thalia Productions. Distribuição United Artists.
P&B, 100 min (1h40).
**
Fico abismado com a quantidade de filmes que o Sérgio vê.
Penso que a maior parte serão versões em DVD, outros talvez na televisão.
Aqui neste minúsculo país nem uma centésima parte destes filmes estão disponíveis, muitos deles nunca foram exibidos.
Estamos na Europa mas estamos na cauda.