Eis aí um filme estranho, esquisito, fora do padrão, fora da curva. Os títulos, tanto o original quanto o escolhido pelos exibidores brasileiros, fortes, dramáticos, na verdade melodramáticos, indicam bem o clima: Nightmare Alley, o beco do pesadelo. O Beco das Almas Perdidas.
Produção da 20th Century Fox de 1947, Nightmare Alley é muito possivelmente um dos filmes mais sombrios, tenebrosos, soturnos que Hollywood produziu naqueles anos do pós-guerra.
Adjetivos como mórbido, horripilante, insólito foram usados para qualificar o filme.
Trata de feira de diversões, aquele ambiente de gente esquisita, diferente, aberrações, freaks – e com adivinhação, malandragem, charlatanismo que se faz passar por magia, telepatia, poderes extra-sensoriais. Tem a absurda coragem de mexer com algo a rigor imexível, a honestidade dos psicólogos, a sagrada instituição da psicologia.
Consta que foi muito revirado pelo estúdio, depois que o diretor Edmund Goulding terminou o final cut, a montagem que ele considerava a final. Mesmo assim, mesmo depois que mexeram no original, o lendário Darryl F. Zanuck, o chefão da Fox, considerou o filme tão repugnante, tão desagradável, que deu ordens para que ele fosse retirado de cartaz algum tempo depois de sua estréia.
As platéias ficaram chocadas ao ver Tyrone Power, o super galã, o herói de filmes capa-e-espada e belos romances – A Marca do Zorro (1940), Sangue e Areia (1941), Um Yankee na R.A.F. (1941), O Cisne Negro (1942), O Fio da Navalha (1946) –, fazendo um inédito papel de vilão, um sujeito ruim, alpinista social, imoral, egoísta, mentiroso, infiel, vaidoso, ambicioso, sem qualquer caráter.
O autor do livro era fascinado por esse mundo estranho
E foi o próprio Tyrone Power, à época um dos maiores astros do estúdio, que quis aquele papel, cansado que estava de só fazer mocinhos bonzinhos e ansioso por interpretar um personagem denso em um drama pesado. Ele voltava a Hollywood depois de servir como piloto durante a Segunda Guerra Mundial, e pediu que a Fox comprasse os direitos de filmagem do romance de William Lindsay Gresham que acabava de ser publicado.
Lançada em 1946, o primeiro ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, Nightmare Alley foi a obra de maior sucesso de William Lindsay Gresham (1909-1962). Vejo agora, dando uma olhada na internet, que a vida desse autor tem coisas fascinantes, e gostaria de anotar aqui sobre elas mais tarde. Por enquanto, o importante é registrar que Lindsay Gresham sempre foi fascinado pelo universo que retratou em seu romance – o universo do que os americanos chamam às vezes de carnival, carny para os íntimos, ou sideshow, ou amusement park. As feiras ou parques de diversão – não os fixos, mas os que vão se apresentando de cidade em cidade. Bem semelhantes aos circos, a rigor – só que nessas feiras, parques, as atrações são em tendas, diversas tendas, e não embaixo de uma único e gigantesco toldo.
Criança ainda, Lindsay Gresham se apaixonou pelo parque de diversão de Coney Island, Nova York. Mais tarde, ficou amicíssimo de um ex-trabalhador de um desses parques, e ouviu dele um monte de histórias.
A fascinação por esse estranho, bizarro mundo de cospe-fogos, magos, advinhos, gigantes, feras, mulheres barbadas, resultou não apenas no romance Nightmare Alley como também em um relato de não-ficção que viria a ser publicado mais tarde, em 1954, Monster Midway: An Uninhibited Look at the Glittering World of the Carny (1954) – um desinibido olhar sobre o cintilante mundo do carnaval.
(A palavra carnival, carnaval, é usada algumas vezes no filme – nada a ver com a festa que conhecemos no Brasil, ou a de Veneza, ou mesmo a de Nova Orleans. Carnival, carny, aqui, significa essa festa dos parques de diversão.)
O monstro, um sujeito que come galinhas vivas
A pedido de Tyrone Power, a Fox pagou em agosto de 1946 a boa quantia de US$ 50 mil pelos direitos de filmagem do livro recém-lançado. Segundo conta do IMDb, isso daria em 2019 cerca de US$ 630 mil. Sim, uma boa grana.
Quem transformou o romance em um roteiro de cinema foi Jules Furthman (1888-1966), um sujeito cujo nome aparece nos créditos de 119 filmes como autor ou co-autor do roteiro ou da história original, entre eles O Grande Motim (1935), Uma Aventura na Martinica (1944), À Beira do Abismo (1946) e até Onde Começa o Inferno (1959).
O roteiro de Furthman faz o filme começar no meio de uma daquelas feiras de diversão americanas que a gente já viu em tantos filmes – desde os alegres, coloridos musicais, como State Fair, filmado em 1945 e depois em 1962, até dramas policiais em preto-e-branco, como o hitchcockiano Pacto Sinistro (1951).
No meio daquele mar de gente que caminha entre as tendas das diversas atrações, cada uma delas fazendo o possível para atrair a atenção das pessoas, está o protagonista da história, Stanton Carlisle – o papel de Tyrone Power, é claro –, uma bela espécime de homem que anda por ali de camiseta. Não camiseta T-shirt, dessas que hoje e sempre se usam, mas aquelas camisetas que, dos anos 50 para trás, eram vestidas embaixo das camisas. Underwear – pra se usar por baixo, sob. Uma espécie assim de cueca do peito. Os mais jovens não têm a menor idéia do que seja isso.
Stanton, Stan, caminha através da multidão e entre as vozes dos que anunciam cada uma das atrações. Uma das vozes que ficam mais claras para o espectador é a que anuncia a fera, o monstro, a besta que come animais vivos – venham ver, senhoras e senhores, respeitável público, o monstro que vai comer galinhas vivas, assim que as soltarmos na jaula dele.
Confesso que, até ver Nightmare Alley, não tinha ouvido falar no monstro, no sujeito esquisito, freak, aberração, que come galinhas e outros bichos vivos. Sim, os cospe-fogo, a mulher barbada, o/a advinho/a, o super fortão (está aí o Zampano de A Estrada da Vida/La Strada, 1954, de Federico Fellini, para não nos deixar esquecer), o mágico (está aí o Lorde Cigano de Bye Bye Brasil, 1980, de Carlos Diegues, para não nos deixar esquecer), quase toda a fauna a gente conhece bem. Mas eu não tinha idéia da existência do monstro.
O monstro – The Geek – tem grande importância neste Nightmare Alley.
Não há mágica ou mediunidade – é tudo uma farsa
Depois de passear um tempo pela feira – uma boa sacada do roteiro para permitir que a câmara dê uma geral por ali –, Stan se aproxima do lugar em que trabalha. Ele faz uma espécie de M.C., mestre de cerimônias, para o show de Zeena (o papel da bela Joan Blondell, nas duas fotos acima). Zeena é a vidente, a adivinha, a superdotada que consegue saber tudo sobre o presente, o passado e o futuro de cada um dos frequentadores da feira.
Agora bem penteado, usando um paletó espalhafatoso, Stan o mestre de cerimônias vai passando por entre as pessoas e pedindo a elas que escrevam alguma coisa num papel para que Zeena, a fantástica Zeena, adivinhe do que se trata. Ele coleta as mensagens e as entrega para a vidente. Em um recipiente bem à vista da platéia, Zeena queima as cartas – mas não todas. Algumas delas foram passadas subrepticiamente, sem que ninguém percebesse, para o terceiro artista do ato, Pete (Ian Keith). Pete fica sob o palco, invisível para a platéia – e, como o ponto no teatro, sussura para Zeena o que está escrito em cada carta.
As pessoas na feira ficam impressionadíssmas com a capacidade sobre-humana da vidente de adivinhar o que elas escreveram. Ao espectador do filme, tudo é apresentado de imediato, bem no início do filme: não há nada extra-sensorial, não há mediunidade, não há telepatia – é engodo, embuste, golpe, falsidade, mentira.
Pete, o cara que, escondido, dá as dicas para Zeena, é o marido dela. No passado, já tiveram dias de muita glória em teatros e hotéis. Depois perderam oportunidades, tiveram que passar em trabalhar em feiras de diversão; Pete se afundou na bebida.
Stan, o protagonista, o anti-herói da história, sempre disposto a fazer de tudo para subir, ascender, galgar posições, vai paquerar, encantar a bela Zeena – e ajudar Pete a beber cada vez mais. Pete acaba morrendo, e o próprio Stan fica se sentindo um pouco culpado pela morte do outro. Mas seu mau caráter é mais forte. Ele passa a encantar, seduzir a jovem Molly (Coleen Gray, na foto abaixo, mais uma atriz linda no elenco), que faz parte do número do Hércules, do Sansão da feira, Bruno (Mike Mazurki).
E daí a algum tempo Stan e Molly estão casados, embora contra a vontade dele, e executando o número que aprenderam com Zeena e Pete em hotéis, restaurantes – subindo na vida.
É quando aparece a terceira bela mulher da história, a psicóloga Lilith Ritter (o papel de Helen Walker). A princípio, os dois se estranham – mas rapidamente percebem que, juntos – a psicóloga que ouve os segredos, as intimidades de pessoas ricas, e o falso vidente, adivinho, o homem que tem o dom da telepatia, de saber os segredos, as intimidades dos outros –, formam uma dupla que pode ganhar muito, muito dinheiro.
“Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco, afinal.” O escritor William Lindsay Gresham conhecia bem essa verdade que Billy Blanco sintetizou no verso perfeito.
O filme ressurgiu na TV e depois em DVD
No final cut, a versão que o diretor Edmund Goulding considerou definitiva, havia cenas do tal Geek, o monstro, a aberração, todo coberto de sangue, rasgando galinhas vivas para comê-las, com penas e ossos e tudo.
Essas cenas – dizem que absolutamente nauseantes, tenebrosas, horripilantes – foram tiradas do filme, por ordem do chefão Darryl F. Zanuck. E nunca mais foram vistas.
O filme que Zanuck não queria que fosse mais visto, no entanto, ressurgiu na televisão americana em 1959, pouco depois da morte de Tyrone Power, de ataque cardíaco, em Madri, em novembro de 1958, quando tinha ridículos 44 anos de idade. Em 2005, foi lançado em DVD nos Estados Unidos, como parte de uma coleção de filmes noir da 20th Century Fox, e conseguiu enfim um sucesso que não teve na época do lançamento.
Os critérios para classificar um filme de noir são largos, variáveis. Na minha opinião, Nightmare Alley não deveria ser tido como um filme noir, pois não tem diversos dos elementos básicos do gênero – como a femme fatale e o pato que cai no conto dela, por exemplo. Mas, como é da época áurea do filme noir, como é preto-e-branco, como é duro, pesado, lúgubre, muita gente, muitas fontes, o IMDb inclusive, tasca nele o rótulo.
Entre os que consideram Nightmare Alley como filme noir está um especialista, A. C. Gomes de Mattos. Ele incluiu o filme em seu livro O Outro Lado da Noite: Filme Noir: “Drama com uma história original e atmosfera corrosiva, tocando em assuntos ousados na época (dipsomania, sexo pré-marital, pseudo-religião) e contendo elementos noirs (mulher fatal, protagonista cínico e amoral, degradação, venalidade, fotografia expressionista)”.
Gomes de Mattos considera a personagem Lilith, a psicóloga interpretada por Helen Walker (nas duas fotos abaixo), como uma mulher fatal. Eu não vejo nada de mulher fatal nela, mas ele é o especialista em filme noir, não eu.
O livro The Films of 20th Century começa o verbete sobre o filme falando da mudança radical de estilo na carreira de Tyrone Power, deixando de lado a imagem romântica e heróica para interpretar um vigarista. Depois de uma sinopse da história, conclui assim: “Nightmare Alley é um ótimo filme de horror gótico, oferecendo uma excelente atuação de Power. Ele considerava o filme um dos melhores trabalhos, mas o público em geral não concordou – e Power teve que retornar a seus papéis românticos.”
Hum… Nem sempre. Em seu último filme, o maravilhoso Testemunha de Acusação (1957), de Billy Wilder, com base na peça de Agatha Christie, ele faz o homem acusado de assassinar a viúva que era sua benfeitora.
Segundo os críticos, “fascinante”, “original”
Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4: “História mórbida mas fascinante do canalha de parque de diversões Power envolvido com a leitora de pensamentos Blondel, chantageando a psiquiatra Walker, e diversos tipos esquisitos neste melodrama altamente original. Uma visão fascinante da vida nos parques de diversão. Jules Furthman escreveu o roteiro, com base no romance de William Lindsay Gresham.”
Maltin comete dois errinhos aí – a personagem de Helen Walker é psicóloga, e não psiquiatra, e não chega a haver chantagem ali –, mas acho bem boa sua avaliação. Claro que no original fica melhor e menor: “fascinanting look at carny life”.
Pauline Kael, em geral chata, implicante, fez sobre o filme uma sinopse bem maior que a média e com bem mais elogios do que é o seu normal. Diz que a história começa no mundo do parque de diversões – the carnival world -, “onde a última palava sobre até onde um homem pode descer é representada pelo Geek, que arranca com os dentes cabeças de galinhas vivas; bêbados trêmulos aceitam esse trabalho em troca de uma garrafa por dia”. Diz que o filme é “perspicaz e absorvente” – embora mais adiante diga que “a técnica do diretor Edmund Goulding se mostra convencional, e até mesmo enfadonha”. Elogia os desempenhos de Joan Blondell, que faz Zeena, a vidente (“atuação exuberante e de intensa verossimilhança”), de Ian Keith, que faz o marido bêbado (ele “dá uma inesperada profundidade a seu pequeno papel”) e da linda Coleen Gray, que faz a jovem Molly (“uma de suas atuações mais vigorosamente conscientes”).
Define todo o elenco como “de primeira linha”, e, claro elogia o ator principal: “Power, que convenceu a 20th Century Fox a deixar que ele fizese o traiçoeiro charlatão, tira de sua boa aparência de irlandês moreno um efeito ambivalente”.
Raras vezes vi Dame Kael tão gentil.
O Guide des Films de Jean Tulard é sempre sensacional. Eis como ele avalia Le Charlatan, como o filme foi chamado na França: “Um filme insólito e quase fantástico, com um Tyrone Power na contra-corrente de seus papéis habituais. Soberba encenação de Goulding. Uma obra a se redescobrir.”
A arte imita a vida
Não tem a ver diretamente com o filme, mas é impossível deixar de registrar algumas informações sobre William Lindsay Gresham, o autor do livro Nightmare Alley. Depois de servir como paramédico ao lado dos republicanos na guerra civil espanhola, em 1937, passar um tempo num pavilhão para tuberculosos e tentar o suicídio, Gresham retornou aos Estados Unidos em 1939. Em 1942, casou-se com a poeta Joy Davidman. Tiveram dois filhos, mas o casamento não era nada feliz: Gresham se revelou um marido abusivo e alcoólatra.
Eventualmente, Joy tornou-se muito amiga do escritor e teólogo britânico C. S. Lewis, com quem se casaria depois de divorciar de Gresham.
A história do encontro da poeta americana judia e atéia e o escritor britânico cristão foi contada numa peça teatral escrita por William Nicholson, chamada Shadowlands. A peça foi transformada em filme em 1993, com o mesmo titulo (no Brasil, Terra das Sombras), dirigido por Richard Attenborough, com Anthony Hopkins como Lewis e uma especialmente linda e extraordinária Debra Winger como Joy.
A arte imita a vida.
Anotação em julho de 2019
O Beco das Almas Perdidas/Nightmare Alley
De Edmund Goulding, EUA,1947
Com Tyrone Power (Stanton Carlisle)
e Joan Blondell (Zeena), Coleen Gray (Molly), Helen Walker (Dra. Lilith Ritter, a psicóloga), Taylor Holmes (Ezra Grindle, o milionário), Mike Mazurki (Bruno, o grandão do circo), Ian Keith (Pete, o marido de Zeena), Julia Dean (Mrs. Peabody), James Flavin (Clem Hoatley), Roy Roberts (McGraw), James Burke (o xerife), Maurice Navarro (o cospe-fogo), Leo Z. Gray (o detetive), George Andre Beranger (o Geek, o monstro), Marjorie Wood (Mrs. Prescott), Harry Cheshire (Mr. Prescott)
Roteiro Jules Furthman
Baseado no romance de William Lindsay Gresham
Fotografia Lee Garmes
Música Cyril J. Mockridge
Direção musical Lionel Newman
Montagem Barbara McLean
Figurinos Bonnie Cashin
Produção George Jessel, 20th Century Fox.
P&B, 111 min (1h51)
***
Título na França: Le Charlatan.
Vai chover… ou cair granizo, na certa… mal acreditei quando vi que era este o filme comentado na sua página, e muito pasma fiquei de perceber – devo ter entendido errado! – que você por pouco não elogiava Tyrone Power. É, devo ter entendido errado.
Bem: este é um filme que ainda não encarei. Meses atrás tentei vê-lo, mas o início me pareceu tão chato que desisti. Qualquer hora tento de novo. Todos dizem que esse é o filme em que Power provou que é um bom ator. Como fã, eu já estava convencida disso sem precisar assistir (há outros na filmografia do ator que “provam” sua capacidade, se preciso). Resenha muito boa, parabéns!
Eu preciso falar sobre esse filme…
Vá lá que Power tenha uma ótima atuação, mas que coisa confusa é o filme! Parece que tentaram colocar um livro de 1,747 páginas em duas horas de filme, poderiam ter tomado umas aulas vendo “O Morro dos Ventos…” de Wyler, quando os roteiristas (não consultei quem são), pegaram um livro grande, tiraram um bom pedaço da parte maçante e fizeram uma maravilha.
O roteiro do filme é uma confusão dos diabos e os protagonistas, à exceção de Power, dispersam-se durante o filme.
Ah! Também não gosto da tentativa de definirem o filme como noir, mesmo nas partes mais escuras não parece ter havido uma intenção de “noarizar” o filme.
Por isso acho que o melhor Power é o de “A Marca do Zorro”, claro que “Testemunha de Acusação” é hors concours.