A Royal Night Out, no Brasil Uma Noite Real e também A Noite da Realeza, de 2015, é uma grande brincadeira. Não é um grande filme – mas é engraçado, divertido, e inova neste que é quase um subgênero, o dos Filmes Sobre a Família Real Britânica: não pretende contar uma história verdadeira, reproduzir fatos históricos.
Toma como base um ou dois fatos reais – e partir daí cria uma fantasia, uma história fictícia. Uma grande brincadeira.
Mostra as então jovens princesas Elizabeth e Margaret tendo uma noite de aventuras pelas ruas e por vários lugares de Londres – até mesmo um bordel.
Algo bem parecido com o que acontece com a princesa Ann, interpretada por Audrey Hepburn no maravilhoso clássico A Princesa e o Plebeu/Roman Holiday (1953) – com a extraordinária diferença de que Ann era uma princesa fictícia de um país não identificado do Leste europeu, e a jovem Elizabeth era a filha primogênita do rei George VI do Reino Unido, e em 1952 assumiria o trono como Elizabeth II.
De cara, um letreiro informa o local e a data dos fatos: “Londres, 8 de maio de 1945 – Dia da Vitória na Europa”. A Alemanha nazista acabava de se render. A Itália fascista de Mussolini já havia se rendido; a guerra ainda continuava no front do Pacífico – o Japão só se renderia em agosto, após os americanos lançarem as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, mas essa última informação não vem ao caso.
Era o Dia da Vitória: a guerra na Europa tinha acabado.
Vemos em close-up – e em preto-branco – um rosto que tem semelhança com o de Elizabeth Alexandra Mary Windsor quando jovem. Em maio de 1945, a princesa Elizabeth estava com 19 anos recém completados – ela é de 21 de abril de 1926.
E então vemos imagens de cinejornais da época, imagens documentais de Londres no Dia da Vitória, multidões e mais multidões comemorando e se abraçando e se beijando e dançando e cantando nas ruas.
Ouvimos um trecho de uma fala do primeiro-ministro Winston Churchill, vemos imagem dele diante de um microfone: – “As hostilidades terminarão oficialmente um minuto após a meia-noite. A guerra alemã acabou. Podemos nos permitir um breve período de júbilo.”
Vemos cenas da multidão junto das grades do Palácio de Buckingham, gritando: – “Queremos o rei! Queremos o rei!”
É forçoso admitir: o diretor Julian Jarrold fez uma abertura bem esperta. Com as imagens de cinejornais, as imagens autênticas do Dia da Vitória, e a imagem da atriz Sarah Gadon penteada e maquiada para realçar a semelhança física com a princesa Elizabeth, o filme leva o espectador a acreditar que o que virá a seguir é um relato de fatos históricos.
Não é. É fantasia pura – mas, exatamente por isso, é divertido.
Teria sido a noite mais divertida da vida das princesas
Elizabeth (interpretada, repito, por Sarah Gadon, à esquerda na foto acima) e Margaret (Bel Powley, à direita) estão entusiasmadas com os acontecimentos, as festas na rua – e querem aproveitar, sair, festejar também. Margaret, em especial, festeira desde sempre, quer dançar, se divertir.
A princípio, mãe e pai, a rainha e o rei, dizem não. Não, de jeito algum. As duas insistem, insistem, insistem – e finalmente os pais admitem – mas convocam dois tenentes para acompanhar as princesas.
O rei George VI é interpretado por Rupert Everett. A rainha Elizabeth Bowes-Lyon, que nas últimas várias décadas era conhecida como a Rainha Mãe), é o papel de Emily Watson.
Os tenentes encarregados de tomar conta das princesas se chamam Pryce e Burridge (os papéis de Jack Laskey e Jack Gordon).
Naturalmente, vão perder de vista as princesas já na primeira parada delas, no chiquetérrimo Ritz: distraídos pelas belas mulheres, pela bebida e pela animação geral, descuidam-se do dever – e Margaret, doidinha por uma diversão, escapa do Ritz. Elizabeth segue a irmã, mas Margaret entra – pela primeira vez na vida, e muito provavelmente a última também – em um ônibus. Elizabeth entra em outro, e os dois ônibus até andam paralelamente por um tempo, mas depois se distanciam.
No ônibus em que faz sua primeira viagem em transporte coletivo, a princesa Elizabeth acontece de ficar conhecendo um sub-oficial da RAF, a Royal Air Force, chamado Jack (o papel de Jack Reynor).
É uma fantástica sorte, a dela, porque esse Jack vai se revelar o mais perfeito cavalheiro, um sujeito bom até a medula.
E, ao longo da imensa maior parte do filme, veremos Elizabeth, com a ajuda de Jack, tentando achar a irmã mais nova, e Margaret se divertindo à beça.
Seria, sem dúvida alguma, a noite mais aventureira, mais fantástica, mais divertida, mais louca da vida das princesas Elizabeth e Margaret – se aqueles fatos tivessem acontecido, e não fossem apenas fruto da imaginação dos roteiristas Trevor De Silva e Kevin Hood.
Um filme com belas sequências de multidões
É de fato cheio de momentos engraçados este A Royal Night Out – e tem belas cenas de multidões.
Fiquei muito impressionando com isso: deve ter sido uma produção cara. Só com o pagamento de centenas e centenas e centenas de extras, e os gastos com figurinos e cabeleireiros e tudo o mais necessário para a recriação do visual da época, deve seguramente ter ido uma nota brava.
E tudo isso, a reconstituição de época, com os figurinos, os penteados, os carros e ônibus, todos os detalhes técnicos são britanicamente impecáveis.
As sequências da multidão em Trafalgar Square, a Praça da Sé, a Cinelândia deles, o umbigo da grande metrópole, são belíssimas – tão belas que chegam a emocionar, mesmo em uma comedinha despretensiosa. Vi depois no IMDb que a produção – espertíssima – se aproveitou de imagens feitas na comemoração do aniversário do Dia da Vitória, em 8 de maio de 2014, na época mesmo das filmagens, exatamente ali em Trafalgar Square, sob o olhar do Almirante Nelson do alto da colunata – o militar que derrotou os navios de Napoleão em 1805.
E aí é impossível não passar pela cabeça como é fantástica essa Grã-Bretanha, o país que conseguiu derrotar os dois mais poderosos exércitos da Europa nos últimos muitos séculos, o de Napoleão Bonaparte e o de Adolf Hitler.
Mas vamos em frente.
Há alguns diálogos e momentos bem sacados, interessantes. Como quando, bem no início, a rainha diz para a primogênita que ela precisa se preparar porque afinal será a rainha, num futuro bem distante, porque Bertie – o apelido familiar do rei George VI, Albert Frederick Arthur George de nascimento – iria viver muitos e muitos anos.
Ou quando, um pouco adiante, o rei e a rainha observam a multidão comprimida diante das grades do Palácio de Buckingham e conversam sobre o futuro imediato, como será a vida das pessoas naquele início de pós-guerra, o país empobrecido, os bens de consumo em falta, e um deles comenta que Winston Churchill ficará muito tempo no governo, pois o povo é grato a ele.
Ironias, ironias. George VI morreria dali a apenas 7 anos, bem jovem ainda, com 56 anos, e Elizabeth assumiria o trono aos 26. E Winston Churchill perderia o cargo menos de 2 meses após o fim da guerra. Só voltaria a chefiar o governo do Reino Unido em 1951 – seria o primeiro dos diversos primeiros-ministros britânicos durante o reinado de Elizabeth II.
O filme mostra o respeito do povo pelo rei
Há um belo momento quando Elizabeth se vê no meio da multidão que observa o Palácio de Buckinham. O povo havia exigido a presença do rei, e então lá estava ele, ao lado da rainha.
Uma pessoa do povo, ao lado de Elizabeth, pergunta algo do tipo: – “E as princesas, cadê elas?” E Elizabeth deixa escapar, baixinho: – “Metidas em confusão…”
Logo depois, todo o povo está acenando de volta para o rei e a rainha. Uma mulher do povo fala duro com a princesa que está ali incógnita: – “Por que você não acena para eles, senhorita metida? Eles nos fizeram ganhar a porra da guerra”.
Bem mais tarde, quando o filme já se aproxima do fim, Elizabeth, sempre incógnita, sem ser reconhecida pelos súditos, entra na casa de Joan Hodges (Ruth Sheen), a mãe do aviador Jack, e se depara com uma foto do rei em um lugar de destaque na sala. E a senhora simples, trabalhadora, com aquela dignidade imensa de quem é working class em filme inglês, diz para a filha do homem que está no retrato algo assim: – “Um bom homem. Não queria o trabalho, mas foi posto lá, e tocou direito”.
Não seria preciso lembrar, mas Albert Frederick Arthur George, o Bertie, não foi criado para ser rei. Era o segundo filho do rei George V, era tímido, inseguro – e gago. O irmão mais velho é que era o herdeiro natural – mas, após a morte do pai, governou como Edward VIII apenas durante meses, ao longo do ano de 1937. Optou pelo amor à mulher, a americana divorciada Wallis Simpson, e abdicou ao trono em dezembro, o mundo às vésperas da Segunda Guerra Mundial.
Aquele período turbulento para a Grã-Bretanha, com a abdicação de Edward VIII e a coroação de seu irmão como George VI, foi muitíssimo bem retratado em O Discurso do Rei (2010). Aparece também nas duas primeiras temporadas da extraordinária série The Crown (2016 e 2017).
E é fascinante que o diretor deste filme aqui, esta brincadeira, esta suave comedinha fantasia, Julian Jarrold, tenha participado da realização de The Crown. Ele dirigiu dois episódios da primeira temporada da série, e dirigiu também Brideshead – Desejo e Poder (2008), um filme sobre aristocratas ingleses na primeira metade do século XX. Ou seja: tem experiência com esse tipo de tema.
O filme retrata todos como inocentes, bobos
Apesar das qualidades todas que tem, no entanto, este A Royal Night Out não chega a ser um bom filme. Por erros tanto da direção de Julian Jarrold quanto do roteiro escrito por Trevor De Silva e Kevin Hood.
O principal problema, me parece, é que o filme retrata toda a família real, e todos os que a cercam, como bobos. Inocentes, duros, sem jogo de cintura, sem inteligência, sem esperteza – bobos. Tolinhos. Quase inteiramente bocós, panacas.
O que aquelas pessoas, evidentemente, não são.
O filme parece fazer questão de exagerar as características das personalidades de cada um dos membros da família real. A princesa Margaret é conhecida por ser impetuosa, festeira, namoradeira – e a Margaret do filme é isso aí elevada à décima potência. A atriz faz uma Margaret absolutamente sonsa, leviana, bobinha a não mais poder. O rei George VI é conhecido por ser tímido e enfrentar com dificuldade a gagueira – e então Rupert Everett exagera demais na timidez e na gagueira, e torna o rei um sujeito bobo.
Uma observação sobre a atriz Sarah Gadon, que faz a princesa Elizabeth.
É canadense de Toronto, nascida em 1987. Nós a tínhamos visto pouco tempo antes na série canadense Alias Grace; detestamos a série, Mary e eu; detestei tanto que tive imensa preguiça de escrever sobre ela. Mas Sarah Gadon, que interpreta a Grace do título, trabalha muito bem – é uma das poucas coisas boas da série, seguramente a melhor.
Pois está bem também aqui como Elizabeth, essa rainha que já foi interpretada por tantas atrizes, inclusive a grande, maravilhosa Helen Mirren.
O que me impressionou especialmente é que Sarah Gadon, aqui, não parecia absolutamente nada com a atriz que faz Grace na série de TV. Parecem duas jovens atrizes completamente diferentes. Sarah Gadon tem essa capacidade de ter muitas caras, essa coisa camaleônica que é uma das qualidades das boas atrizes.
Duas coisinhas sobre os títulos. A tradução literal do título A Royal Night Out seria Uma Noite Real Fora de Casa, ou Uma Noite com a Realeza em Festa. Algo por aí. O IMDb traz o título brasileiro como sendo Uma Noite Real – indicação de que esse foi o título usado pelos distribuidores brasileiros. Mas o filme está disponível na Netflix com o título A Noite da Realeza.
Duas informações bem importantes do IMDb:
A princesa Elizabeth de fato saiu do Palácio de Buckingham e andou por alguns locais de Londres no Dia da Vitória.
A princesa Margaret não estava junto com ela. No Dia da Vitória, era novinha demais: tinha apenas 14 anos.
Anotação em outubro de 2018
Uma Noite Real/A Royal Night Out
De Julian Jarrold, Inglaterra, 2015
Com Sarah Gadon (Elizabeth), Bel Powley (Margaret), Emily Watson (a rainha), Rupert Everett (o rei), Jack Reynor (Jack Hodges), Mark Hadfield (Mickey, o mordomo), Jack Laskey (tenente Pryce), Jack Gordon (tenente Burridge), Annabel Leventon (Lady MacCloud), Geoffrey Streatfeild (Jeffers), Roger Allam (Stan, o dono do bordel), Ruth Sheen (Joan Hodges, a mãe de Jack)
Roteiro Trevor De Silva e Kevin Hood
Fotografia Christophe Beaucarne
Música Paul Englishby
Montagem Luke Dunkley
Casting Sam Jones
Produção Ecosse Films, Film i Väst, Filmgate Films, Lipsync
North Light Film Studios.
Cor, 97 min (1h37)
**1/2
Gostei muito
Um detalhe que me chamou a atenção também foi na hora que Elizabeth acompanhada de Jack vão para o rebocador com destino a Chelsea, rota mencionada no Peaky Blinders e o rapaz que aborda os dois para cobrar tinha vestimenta completa de um “maldito” Peaky Blinder.