Gun Crazy, produção feita fora dos grandes estúdios e lançada no iniciozinho de 1950, dirigida por Joseph H. Lewis, um realizador que privilegiava a aparência, a forma, os fogos de artifício, começa tratando de um dos temas mais sérios que pode haver: exatamente o que diz o título original, a paixão pelas armas.
O tema é importante em qualquer lugar do mundo, mas em especial nos Estados Unidos. Ao longo dos últimos 65 anos, após o lançamento deste filme, a questão das armas no país mais rico e poderoso do mundo tem ficado cada vez mais relevante. Não passa um semestre sem que alguém munido de uma arma saia matando pessoas a esmo. As tragédias se repetem, se repetem, se repetem.
Parte do país entende que essa questão tem que ser revista, que leis mais severas devem ser aprovadas para diminuir a facilidade com que qualquer pessoa pode comprar armas e munição.
Parte do país defende o contrário – que, como é um país livre, todo mundo tem o direito de ter um revólver, uma pistola, uma espingarda em casa, para se defender do bandido que quiser chegar perto.
Dá para dizer, sem sombra de dúvida, que aquele é o pais em que mais gente tem paixão por armas, fascinação por armas – e que tem armas em casa.
Seguramente por isso, os Estados Unidos são o recordista absoluto em casos de atiradores que saem matando inocentes. É também, disparado, o país com maior população carcerária do mundo, tanto em números absolutos quanto em termos proporcionais. Os números são impressionantes: os Estados Unidos, com uma população de cerca de 313 milhões, tem mais 2,2 milhões de presos, enquanto a China, a segunda colocada, tem 1,6 milhão de presos numa população de absurdos 1,2 bilhão de habitantes.
Desde bem pequeno, Bart adora atirar, e tem uma incrível pontaria
Na primeira seqüência de Gun Crazy, logo após os créditos iniciais, um garoto aí de uns 14 anos caminha na chuva em direção a uma loja em cuja vitrine está um revólver. A câmara está colocada como se fosse dentro da loja, e vemos o garoto se aproximar com uma pedra na mão, com a expressão de um tarado diante de uma Marilyn Monroe absolutamente pelada. Ele quebra o vidro, apossa-se do revólver e de uma caixa de balas, e sai correndo. Mas escorrega no chão molhado e cai, não consegue segurar a arma e ela vai rolando até perto do meio-fio do outro lado da rua, onde, naquele momento, está um policial.
O garoto, o protagonista da história, se chama Barton Tare, Bart para os amigos. Nessas sequências iniciais, em que está com 14 anos, é interpretado por Russ Tamblyn, que, 11 anos depois, seria um dos atores principais do maravilhoso West Side Story. (Ele era tão novinho que nos créditos seu nome aparece como Rusty Tamblyn, e não Russ, que adotaria depois.)
Bart é levado ao juiz da sua pequena cidade. O juiz Willoughby (Morris Carnovsky) ouve com muita atenção e paciência os depoimentos de pessoas próximas ao garoto. Ruby (Anabel Shaw), a irmã mais velha, é quem cuida de Bart – os dois são órfãos. Ela conta que o garoto sempre teve absoluto fascínio por armas, desde pequenino. Ela deu para o irmãozinho uma espingardinha de chumbo, e ele passava horas e horas brincando com elas.
Vemos então, num flashback, um Bart de 7 anos de idade (interpretado por Dave Bair) atirando com a espíngardinha de chumbo em um pintinho. O pintinho cai morto, e Bart leva um susto imenso, um absoluto choque.
Ao juiz Willoughby, Ruby assegura que Bart adora atirar, é seu hobby, é o que mais gosta de fazer na vida; tem excelente pontaria – mas não usa a arma para matar. Nunca atirou em nenhum ser vivente, depois de levar um choque ao perceber que sua espingardinha de chumbo matou um pintinho.
Dois garotos da mesma idade de Bart, seus maiores amigos, Clyde e Dave, reafirmam o que a irmã do garoto havia dito. Contam uma história: um dia, estavam os três no mato, no parque nacional ali perto da cidade, e avistaram um puma. Naquela época, os pumas não estavam em perigo de extinção – ao contrário, havia até prêmio para quem abatesse um. Os dois pediram a Bart para matar o animal – mas ele simplesmente não conseguiu atirar. Um dos dois garotos pegou então a espingarda – mas errou o tiro.
O juiz ouve então o próprio garoto. Bart diz que gosta mesmo de armas, que atirar é o que ele sabe fazer bem – mas que nunca atirou para matar nem vai atirar no futuro.
Ruby pede licença para falar, diz que está para se casar, e seu noivo concorda em continuar criando o irmão mais novo dela.
O juiz Willoughby alega que o começo de um casamento já envolve muitos problemas, que ela não deveria pensar em casar e continuar cuidando do irmão. E, para Bart, diz, de forma suave, com jeito de quem acredita que está decidindo o que é melhor para o garoto, que ele cometeu um crime ao arrebentar a vitrine da loja e roubar o revólver; que ele precisa de ser levado para uma escola que o ensine a respeitar as leis – e o manda para um reformatório.
Numa feira de diversões, surge uma bela mulher com pontaria perfeita
Há então um corte no tempo, e vemos Bart reaparecer já adulto (interpretado por John Dall, de Festim Diabólico/Rope, de Alfred Hitchcock). Tinha ficado quatro anos no reformatório e, ao sair, tinha se alistado no exército. Ficara no exército durante vários anos, mas se cansara daquilo, e agora voltava para sua cidade. Reencontra a irmã Ruby, agora com dois filhinhos, e também os grandes amigos Clyde e Dave.
Clyde (agora interpretado por Harry Lewis) trabalha agora como policial, é assistente do xerife da cidade. Dave (Nedrick Young) é repórter do jornal local.
Os três vão para uma área despovoada, nos limites da cidade, para conversar, beber cerveja e permitir que Bart mostre a eles que sua pontaria, que já era excelente, só tinha melhorado.
Na noite daquele mesmo dia, a vida de Bart Tare vai mudar completamente – e o rumo da história também.
Clyde e Dave levam o amigo para uma daquelas feiras de diversão que passam por cidades do interior. Lá há uma tenda em que se exibe Annie Laurie Starr, o gatilho mais certeiro do Oeste, do Leste, do Norte, de qualquer lugar.
Laurie é de fato um portento na mira – e é uma mulher linda, e gostosa. Usa camisa negra e calça comprida negra, com grande cinturão de revólver no estilo Velho Oeste, e a calça é quase tão justa quanto Deus, mostrando o formato de uma bundinha que faria sucesso até mesmo no Leblon.
É o papel de Peggy Cummins, estrela inglesa de rosto lindo e perfeito como o de uma boneca Barbie. Nascida em 1925, aposentou-se do cinema em 1965, após carreira de apenas 28 títulos. Estava ainda viva, com 90 anos, quando vi o filme, no final de 2015.
O ponto alto do show de Laurie é quando o mestre de cerimônias (e dono da barraca, e patrão da garota), Packett (Berry Kroeger), pergunta se na platéia há alguém disposto a encarar um tira-teima com Miss Annie Laurie Starr. Se houver alguém, ele entra com US$ 500, e o desafiante entra com apenas 10% disso, US$ 50.
É onde o empreendimento mais rende, porque Laurie jamais perde.
Nessa noite, pela primeira vez, ela perde. E Bart perde a cabeça por ela.
O espectador percebe de cara que o casal vai se enfiar num buraco
Este é um filme noir. E uma das regras do filme noir é que a cada femme fatale corresponde um bobo, um pato, um bocó, um sucker. E que o mundo está sempre cheio de patos dispostos a perder a cabeça por um belo rabo.
Bart é um sujeito um tanto puro, um tanto ingênuo – mas, basicamente, uma pessoa boa. Tem essa loucura de adorar armas, mas o trauma da infância – a morte do pintinho – o deixou de fato vacinado contra atirar em seres vivos. Não é uma ameaça a ninguém – nem mesmo os quatro anos de reformatório o deixaram revoltado, raivoso, vingativo.
É uma boa pessoa.
Laurie, não. Laurie é daquele tipo de pessoa de ambição desmedida por riqueza, vida farta de prazeres caros. A única qualidade de caráter que ela tem – se é que podemos chamar isso de qualidade de caráter – é que ela não esconde, em momento algum, essa ambição.
É óbvio que a união dois dois vai dar merda.
A origem deste filme foi um conto de MacKinlay Kantor, publicado na revistas Saturday Evening Post. Essa informação está nos créditos iniciais, que dizem que o roteiro é de MacKinlay Kantor e Millard Kaufman. Millard Kaufman não escreveu uma linha do roteiro – era o nome de um testa-de-ferro, um front, para esconder a identidade do verdadeiro co-autor do roteiro, o grande Dalton Trumbo, que estava na lista negra da caça às bruxas, do macarthismo, proibido de trabalhar pelo famigerado, nojento Comitê de Atividades Anti-Americanas.
Confesso que me envolvi com a história: no momento em que a femme fatale entra na história, percebi que o pobre Bart ia se ferrar. Tive simpatia grande por ele, pena dela – e antipatia pela femme fatale, apesar da beleza toda da atriz.
Não conhecia Peggy Cummins, mas, ao não simpatizar nada com a personagem que ela interpreta aqui, percebi como ela o fez com talento. Ela torna Laurie uma pessoa realmente antipática. Cumpre o que o roteiro pedia que ela fizesse. O espectador sabe o tempo todo que, a partir do encontro dos dois, Laurie vai cavar o buraco em que eles vão se meter.
Há um excesso de formalismo do diretor, fogos de artifício demais
Não é um filme ruim, de jeito nenhum. Mas a verdade é que acabei não gostando muito dele por essa coisa emocional de me envolver com a história e ficar torcendo para que o coitado do Bart conseguisse sair daquela canoa furada, e também por achar que há uma certa forçação de barra nessa coisa de a mulher faz o homem.
E também por causa do excesso de formalismo do diretor Joseph H. Lewis, a insistência dele em soltar fogos de artifício – como, só para dar um exemplo, as três tomadas mostrando Bart e Laurie em fuga em que a câmara está como se fosse no chão do carro, em contreplongée, mostrando o volante em primeiro plano e, mais acima, os rostos apavorados do casal.
Sou da linha Ivor Montagu, o montador, roteirista e diretor inglês que trabalhou com Hitchcock e Eisenstein, e escreveu um livro chamado Film World, que foi quase uma bíblia para o jovem cinéfilo Sérgio Vaz. Montagu dizia que a câmara deve sempre funcionar como os olhos de alguém – um personagem, ou o espectador. Portanto, tomadas em que a câmara está dentro da geladeira, dentro da lareira (ou, como aqui, no chão do carro) são idiotas.
Mas tudo isso é pura idiossincrasia minha, não tem nada a ver com a qualidade do filme. É um bom filme, que, como eu disse lá em cima, trata de uma tema da maior importância.
Vou agora atrás de informações objetivas sobre o filme e as opiniões de outras pessoas.
Atenção: abaixo vão informações do IMDb que são spoilers
Gun Crazy foi também lançado com o título de Deadly is the Female – mortal é a fêmea. Algo bem próximo do que os exibidores brasileiros escolheram, Mortalmente Perigosa – um raro caso em que brasileiros e portugueses concordam. A França saiu-se com uma estranha mistura: Gun Crazy – Le Démon des Armes. A Espanha imitou a França, e lá o filme se chamou El Demonio de las Armas. A Itália preferiu ainda um outro caminho: La Sanguinaria.
Acho divertíssimo – e instrutivo – ver os diferentes títulos nos diferentes países.
Os dois parágrafos abaixo avançam em informações sobre fatos que acontecem depois da metade do filme, e portanto são spoilers. Quem não viu o filme e tem interesse em ver não deveria ler o que vai abaixo.
O IMDb diz o óbvio: que o casal Bart Tare e Laurie Starr foi inspirado na dupla real formada por Clyde Barrow e Bonnie Parker, que seriam retratados 17 anos mais tarde em Bonnie & Clyde, o filme marcante do grande Arthur Penn.
E o IMDb informa também que o assalto ao frigorífico Armour parece ter sido inspirado num assalto real ocorredo numa fábrica da Coca-Cola no Arkansas em 1938 por dois homens, um deles, Floyd Hamilton, um antigo parceiro de Bonnie & Clyde.
A Library of Congress, a biblioteca do Congresso americano, gigantesco centro de documentação das obras de arte criadas no país, escolheu Gun Crazy para passar por processo de preservação por ser “culturalmente, historicamente ou esteticamente significante”.
Leonard Maltin deu ao filme 3.5 estrelas em 4. Define Gun Crazy como um sleeper – um filme que não chama muita a atenção quando é lançado, mas vai sendo mais valorizado à medida em que o tempo passa.
Pauline Kael, a grande dama mal humorada da crítica americana, diz que “Cummins é uma mulher má, que tem como parceiro uma vítima desesperadamente complacente”. E atira mais: “Como um filme B, é de uma vulgaridade fascinante”.
Dame Kael adorava uma frase bonita, mesmo que não significasse muita coisa. O que raios seria uma vulgaridade fascinante?
Dame Kael, é forçoso reconhecer, parece com o diretor Joseph H. Lewis: ambos dão mais importância à forma que ao sentido das coisas.
Anotação em setembro de 2015
Mortalmente Perigosa/Gun Crazy ou Deadly is the Female
De Joseph H. Lewis, EUA, 1949
Com John Dall (Barton Tare), Peggy Cummins (Annie Laurie Starr)
e Berry Kroeger (Packett), Anabel Shaw (Ruby Tare Flagler), Russ Tamblyn (Bart Tare aos 14 anos), Mickey Little (Bart Tare aos 7 anos), Harry Lewis (Clyde Boston), Paul Frison (Clyde Boston aos 14 anos), Nedrick Young (Dave Allister), Dave Bair (Dave Allister aos 7 anos), Morris Carnovsky (juiz Willoughby), Trevor Bardette (xerife Sheriff Boston)
Roteiro MacKinlay Kantor e Dalton Trumbo (sob o pseudônimo testa de ferro de Millard Kaufman)
Baseado no conto “Gun Crazy”, de MacKinlay Kantor, publicado no Saturday Evening Post
Fotografia Russell Harlan
Música Victor Young
Montagem Harry Gerstad
Produção Frank King e Maurice King, King Brothers Productions. DVD Versátil.
P&B, 86 min.
**1/2
4 Comentários para “Mortalmente Perigosa / Gun Crazy”