A trama de Trama Macabra não tem nada de macabra. O título brasileiro é um horror – e errado. No original, o filme que Alfred Hitchcock fez em 1976, seu último, seu canto do cisne, é Family Plot, ou trama familiar. Toda a história se desenrola a partir de uma questão de família.
Insisto: macabro é fúnebre, lúgubre, que lembra morte.
Family Plot é uma comédia, uma comédia divertidíssima.
Claro: como é Hitchcock, há crimes, criminosos, um clima de mistério. Mas, ao contrário do que se vê na grande maioria dos filmes do mestre, e até mesmo na outra comédia escrachada que fez, O Terceiro Tiro/The Trouble with Harry, de 1955, aqui não aparece em cena sequer uma vez um cadáver, um corpo de gente morta, um corpse, palavra que o velhinho inglês doido adorava pronunciar.
Há sequências em um cemitério, e há até um enterro – mas não se mostra o corpse.
Uma pequena trapaceira que se faz passar por médium
Nos créditos iniciais, extremamente rápidos, sintéticos, vemos uma espécie de bola de cristal. Segue-se então uma seqüência bem longa, em que vemos duas mulheres. Julia Rainbird (Cathleen Nesbitt), uma senhora idosa, elegante, rica, é a dona da casa; chamou para ajudá-la a médium Blanche Tyler, conhecida como Madame Blanche (Barbara Harris, na foto abaixo).
A sra. Rainbird quer que a médium consiga notícias de seu sobrinho, Edward; 40 anos antes, a irmã dela, solteira, havia engravidado. Para evitar o escândalo, para proteger o nome da família rica, a gravidez foi escondida durante todo o tempo, e o bebê, dado para adoção logo após o nascimento. Agora, com a irmã morta, sem nenhum outro parente vivo a quem deixar sua fortuna, e arrependida por ter se desfeito do bebê, a sra. Rainbird quer encontrar Edward. Deixará para ele tudo o que possui – e dará a Madame Blanche a quantia de US$ 10 mil caso ela, com a ajuda dos espíritos, o encontre.
Em 1976, US$ 10 mil era uma pequena fortuna. Para Madame Blanche – que, conforme vamos vendo já nessa longa sequência inicial, é não propriamente uma médium, e sim uma trapaceira, uma pequena trapaceira – era uma sensacional fortuna.
Na “sessão espírita” diante da sra. Rainbird, Madame Blanche invoca seu aliado, o espírito Henry, para conversar com o espírito da outra Rainbird, a irmã morta. Mas é a Rainbird viva que dá a melhor dica: o garotinho havia sido entregue ao motorista da família, cujos maiores amigos eram o casal Shoebridge.
Terminada a sessão, Madame Blanche é conduzida até a porta da casa e entra no táxi que a espera. O táxi é dirigido por George Lumley (o papel de Bruce Dern), amante e parceiro da falsa médium nas trapaças.
Um sujeito que parece troncho mas é bastante esperto, tem faro de detetive
Na verdade, conforme se verá ao longo da narrativa, George é parte fundamental nas trapaças de Blanche. Ele havia feito pesquisas a respeito da família Rainbird, e fornecido elementos que permitiram à companheira usar na falsa conversa com os espíritos dos mortos.
Veremos também, enquanto a história se desenvolve, que, apesar de seu jeitão troncho, desalinhado, George não é nada bobo; é bastante esperto, tem perseverança, faro, e daria um excelente detetive.
O casal formado pela falsa médium e o motorista de táxi que se passa por jornalista e advogado para obter informações é absolutamente fascinante – e as interpretações de Barbara Harris e Bruce Dern são deliciosas. Atuam no limite da fronteira com o ridículo, o caricatural, mas sem ultrapassar o fio da navalha.
É impossível o espectador não simpatizar com aquela dupla de pequenos trapaceiros um tanto trapalhões, engraçados, sempre discutindo muito, e em voz alta – mas absolutamente apaixonados um pelo outro. Além de tudo, Madame Blanche – o filme mostra isso em várias ocasiões – tem um apetite sexual insaciável, capaz de deixar sem fôlego o pobre motorista-detetive amador.
Na segunda seqüência do filme, os dois estão no carro, após a “sessão espírita” na casa da sra. Rainbird. Blanche está sentada no banco de trás, e a toda hora George se vira para falar com ela. O diálogo é engraçadíssimo – e longo.
Numa dessas vezes em que George se vira para trás, o espectador teme que ele bata no carro da frente. Quando ele volta a olhar para a frente, pisa forte no freio: por pouco não atropela uma mulher que atravessava a rua.
A câmara de Hitchcock nesse momento abandona completamente o casal engraçado, e passa a seguir a mulher.
É um toque de gênio de Hitch e de seu roteirista Ernest Lehman.
A mulher está vestida com uma capa preta. Tem cabelos louríssimos sob um chapéu, e usa grandes óculos escuros. Na primeira tomada que a mostra em close up, os cinéfilos acostumados aos filmes americanos do final dos anos 60, início dos 70, seguramente a reconhecerão pelos lábios grossos, carnudos: é Karen Black (na foto abaixo), de Sem Destino/Easy Rider, Cada Um Vive Como Quer/Five Easy Pieces, Nashville, Agora Você é um Homem. Morreu há pouco, em 2013, aos 74 anos, deixando uma filmografia vasta, de mais de 170 títulos entre filmes e séries para a TV.
O personagem de Karen Black se chama – veremos mais tarde – Fran. Fran encaminha-se para o prédio de uma grande empresa. Não fala uma palavra, e carrega um revólver. Exibe uma nota que diz que o homem sequestrado – o dono daquela empresa, Constantine (Nicholas Colasanto – será entregue são e salvo. Recebe o pagamento, um diamante tão grande quanto o Ritz, e é levada pelos altos funcionários da empresa até um helicóptero.
O piloto do helicóptero tenta uma gracinha, durante o vôo: diz que o revólver que Fran segura firme na mão direita nem está carregado. Ela dá um tiro, a bala perfura o vidro ao lado do piloto. Ele não tentará mais nenhuma gracinha.
Fran faz sinal para o helicóptero descer num campo de golfe.
Daí a pouquinho o piloto encontrará o empresário sequestrado – está drogado, mas absolutamente são e salvo.
E em seguida Fran foge num carro ao lado de um sujeito bigodudo que atende pelo nome de Arthur Adamson (William Devane, um careteiro, na foto abaixo). Enquanto Fran se livra da peruca e mostra seu cabelo negro, Adamson delicia-se com o diamantão. Veremos que ele é dono de uma loja de jóias – e, nas horas vagas, experiente e competente sequestrador de pessoas.
Entram em casa, limpam o local onde o sequestrado ficou – um local todo bem preparado, de boa infra-estrutura, na parte de baixo da casa de três andares.
Enquanto Fran e Adamson andam pela casa, a câmara focaliza várias vezes um grande lustre bem no centro de uma sala, junto das escadas para o andar superior.
Estamos aí com exatos 25 minutos de filme.
Toda a trama que virá na hora e meia seguinte envolve esses dois casais, o dos pequenos trapaceiros e o dos bandidos espertos, profissionais.
O roteiro é de Ernest Lehman, um mestre, e se baseia num livro do inglês Victor Canning
A trama deliciosa, nada macabra, foi criada por Victor Canning, no livro The Rainbird Pattern, publicado em 1972.
Victor Canning (1911-1986), inglês de Plymouth, foi um prolífico escritor de novelas e thrillers que teve sucesso nos anos 50 a 70, mas foi sendo esquecido nas últimas décadas, segundo diz a Wikipedia. Era uma pessoa que não gostava de falar de si própria: não escreveu memórias e deu relativamente poucas entrevistas ao longo da vida.
Prolífico mesmo. Entre 1934 e 1985, publicou 64 livros, alguns deles sob os pseudônimos de Alan Gould e Julian Forest. Pelo menos dez de suas obras foram levadas para o cinema.
O nome de Victor Canning não é citado nos créditos iniciais, que, como já mencionei, são bastante sintéticos. Sequer os nomes dos atores aparecem – mas é dado o crédito, claro, ao roteirista Ernest Lehman (1915-2005). Como resume o IMDb, Ernest Lehman foi um dos roteiristas mais bem sucedidos da história de Hollywood, tanto em termos de sucesso comercial quanto crítico. Assinou os roteiros de dois dos melhores musicais da História, Amor, Sublime Amor/West Side Story (1961) e A Noviça Rebelde/The Sound of Music (1965).
Lehman já havia trabalhado com Hitchcock em Intriga Internacional/North by Northwest, de 1959.
O roteiro que escreveu a partir da história criada por Victor Canning é um brilho.
Um monte de fatos e curiosidades sobre o filme
Fatos, dados, curiosidades, a maioria tirada do IMDb, que traz nada menos que 42 itens de “trivia” sobre o filme, com alguns pitacos meus.
* Foi o filme de número 53 de Hitch. Seu último, como já foi dito. Ele estava com 75 anos.
* Aficionados enxergam de tudo. Na última tomada do filme, uma mulher olha direto para a câmara e pisca para o espectador. Houve aficionado que viu nisso – a última tomada do último filme do mestre – um símbolo do humor negro que sempre permeou os filmes de Hitch.
* Hitchcock já estava doente durante as filmagens, mas, depois que o filme ficou pronto, ainda chegou a trabalhar no roteiro de um thriller de espionagem, The Short Night. Morreria antes que as filmagens fossem sequer marcadas. A história de The Short Night não foi filmada até hoje.
* Consta que Hitchcock queria Al Pacino no papel de George. Segundo uma entrevista de Bruce Dern, que acabou ficando com o papel, Pacino pediu um salário alto, já que vinha de grandes sucessos – Serpico (1973) e O Poderoso Chefão (1972). Pensou-se também em Jack Nicholson, mas ele estava filmando Um Estranho no Ninho. Na minha opinião, o filme saiu ganhando com isso: Bruce Dern, feiozão daquele jeito, se deu perfeitamente com o papel do desengonçado, desgrenhado George. Não dá nem para imaginar Pacino ou Nicholson no papel.
* Consta que os nomes de Liza Minnelli e Goldie Hawn foram aventados para o papel de Madame Blanche. São duas ótimas comediantes, sem dúvida alguma. Mas, de novo, acho que o filme saiu ganhando: Barbara Harris está espetacular no papel.
* O papel de Fran foi oferecido a Faye Dunaway. A bela atriz, que estava com tudo nos anos 70, tendo feito Movidos pelo Ódio com Elia Kazan, Pequeno Grande Homem com Arthur Penn e Chinatown com Roman Polanski, esnobou o convite para trabalhar com Hitchcock, porque o papel não era o principal.
* A veterana Lillian Gish, essa grande lenda do cinema, cuja carreira foi de 1912 a 1987, demonstrou interesse em interpretar a milionária Julia Rainbird, mas o papel tinha sido prometido para Cathleen Nesbitt.
* Piadinha interna: lá pelas tantas, aparece uma placa com “Bates Ave”. Uma brincadeira com o nome do Bates Motel de Psicose.
* Foi o único filme de Hitchcock com trilha sonora de John Williams, que já naquela época fazia as trilhas dos filmes de Steven Spielberg. Um ano antes de Family Plot, John Williams compôs a trilha de Tubarão; no ano seguinte, compôs a de Contatos Imediatos do Terceiro Grau.
* A ação do livro do inglês Victor Canning se passa na Inglaterra, muito provavelmente em Londres. O religioso que seria sequestrado pelo casal de bandidos hábeis é nada menos que o arcebispo de Canterbury, a maior autoridade da religião anglicana, o papa dos ingleses. No filme, a ação se passa numa grande cidade americana não identificada – ou seja, que pode ser qualquer uma. As filmagens foram em Los Angeles e San Francisco, mas não aparece nenhuma edificação marcante que identifique onde o local. Nada de Golden Gate, por exemplo – bem ao contrário de outros filmes de Hitchcock que mostram grandes monumentos, como as gigantescas estátuas dos presidentes no monte Rushmore (que aparecem com destaque em Intriga Internacional), ou a Estátua da Liberdade (onde acontece a sequência final de Sabotador).
* Hitchcock definiu assim o filme: “um melodrama tratado com um pouco de leviandade e sofisticação. Eu queria a sensação de Ernst Lubitsch fazendo um thriller de mistério”.
* A extraordinária sequência do carro na estrada no meio da montanha, em que George e Madame Blanche ficam à beira da morte, foi inteiramente filmada – segundo afirma o IMDb – dentro do estúdio da Universal! É inacreditável.
* E, finalmente, uma daquelas informações absolutamente, mas absolutamente inúteis: Barbara Harris é canhota. Assim como outras atrizes que trabalharam com Hitch: Shirley MacLaine, Eva Marie Saint, Kim Novak e Tippi Hedren.
Leonard Maltin não gostou do filme. O Guide de Jean Tulard elogia muito
Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4 ao filme: “Hitchcock vai ladeira abaixo nesse thriller irônico. Harris é uma falsa vidente que se envolve em uma trama de assassinato criada pelo sinistro Devane. Levemente divertido, mas nunca crível”.
Hum… Acho que Maltin não viu o filme. Ou viu um filme diferente do que eu vi.
Diz o Guide des Films de Jean Tulard: “É uma comédia cheia de movimento, comportando uma boa dose de humor negro, com diálogos particularmente crus. Hitchcock estava visivelmente descontraído ao realizar este filme, que zomba dos principais temas que o interessam: o sexo, a religião, a comida”.
Ah, este foi o filme que eu revi. E adorei rever.
Anotação em fevereiro de 2014
Trama Macabra/Family Plot
De Alfred Hitchcock, EUA, 1976
Com Karen Black (Fran), Bruce Dern (George Lumley), Barbara Harris (Blanche Tyler), William Devane (Arthur Adamson)
e Ed Lauter (Joseph Maloney), Cathleen Nesbitt (Julia Rainbird), Katherine Helmond (Mrs. Maloney), William Prince (bispo Wood), Nicholas Colasanto (Constantine)
Roteiro Ernest Lehman
Baseado no livro The Rainbird Pattern, de Victor Canning
Fotografia Leonard South
Música John Williams
Montagem J. Terry Williams
Figurinos Edith Head
Produção Universal. DVD Universal.
Cor, 120 min.
***
Título em Portugal: Intriga em Família. Título na França: Complot de famille.
Um suspense delicioso. Interessante a nota sobre as canhotas. Desconhecia o fato. Todo o elenco está muto bem.
Achei o filme muitíssimo divertido e gostei muito dos actores principais – Bruce Dern e Barbara Harris, são um espectáculo.
Como todos os filmes do Hitchcock é delicioso e está na linha dos filmes de humor e diversão como o próprio Sérgio falou do Terceiro Tiro e Intriga Internacional. As cenas de violência ficam implícitas em termos dos sequestros e chantagens feitos por Edward e Fran. O final do filme tem uma reviravolta que mostra o quanto o sequestrador perdeu por não ter se identificado junto aos detetives e continuarem seu caminho de marginalidade. Realmente a cena mais emocionante é aquela em que o amigo de Edward mexe no freio do casal de pequenos trapaceiros, levando-os a uma descida desgovernada no caminho de volta para casa.Como pôde ser filmada dentro de estúdio?
http://www.sospesquisaerorschach.com.br
Haja alguém que concorde comigo! Este filme é bastante bom. Obviamente que ele está condenado a não ser apreciado. Se se comparar com as obras máximas de Hitchcock, Family Plot perde força. E se não fosse um filme de Hitchcock, as pessoas considera-lo-iam inferior por não ser de Hitchcock. Não concordo com Maltin. Normalmente concordo com ele, mas não mt com as pontuações que dá aos filmes. o que acha de Maltin, Sérgio?
Olá, Miguel!
Olha, eu gosto bastante do Maltin. Às vezes não concordo com ele – mas na maior parte do tempo acho correto o que ele fala. Gosto de vê-los nos pequenos documentários que acompanham alguns filmes nos DVDs. Ele está sempre sorridente, à vontade, demonstrando que de fato ama ver filmes.
Um abraço!
Sérgio