Stella, de 1955, foi o filme de estréia de Michael Cacoyannis na direção, e também o primeiro filme estrelado por Melina Mercouri. E ponto. Pode-se até não gostar de Stella, pode-se procurar defeitos aqui e ali, mas é preciso respeitá-lo. É um filme marcante, de óbvia, grande importância histórica.
Michael Cacoyannis (ou Mihalis Kakogiannis, em outra das tentativas de transportar o nome para o nosso alfabeto), 1922-2011, grego de Chipre, foi o principal diretor do cinema da Grécia na segunda metade do século XX. E Melina Mercouri (1920-1994) foi a maior estrela – nem a grande Irene Papas não discutiria isso.
Cacoyannis e Melina foram os nomes do cinema grego mais reconhecidos internacionalmente. São sinônimos de cinema grego.
Cacoyannis tem uma filmografia curta, enxuta: apenas 16 títulos, entre 1955, o ano de Stella, e 1999, em que fez O Jardim das Cerejeiras/The Cherry Oschard, produção internacional, baseada em peça de Tchekov, com Charlotte Rampling e Alan Bates.
Entre um e outro, fez a trilogia baseada nas tragédias gregas clássicas: Electra (1962), As Troianas (1971) e Ifigênia (1977). Entre Electra e As Troianas, fez seu filme mais popular, Zorba, O Grego (1964), baseado no livro de Nikos Kazantzakis e com Anthony Quinn, Alan Bates, Irene Papas e Lila Kedrova.
Ganhou 11 prêmios internacionais, fora 15 outras indicações, inclusive três ao Oscar, estas últimas todas por Zorba: melhor filme, melhor direção e melhor roteiro adaptado.
Jean Tulard o define assim, em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores:
“O cineasta por excelência da Grécia. De origem cipriota, soube transpor para a tela os grandes temas da tragédia grega (Electra, Ifigênia), a tristeza dos bairros pobres de Atenas (Stella), o folclore para turistas (Zorba), os problemas internacionais (a divisão de Chipre em Attila 74). Foi eventualmente criticado por ter se comprometido em co-produções interacionais que prejudicam a autenticidade dos seus objetivos. Mas como poderia ter agido de outra forma na falta de capital grego? E Anthony Quinn acabou por ser mais grego do que os próprios gregos em Zorba.”
Há muita música, dança, risadas, mas o tom de Stella é todo triste
“A tristeza dos bairros pobres de Atenas”, diz o mestre Tulard sobre Stella.
Sim, o tom de Stella é triste. Há muita música no filme – Stella, a protagonista, é uma cantora e dançarina de um bar-night club de um bairro bem pobre de Atenas, e ela e suas colegas cantoras apresentam diversas canções ao longo dos 94 minutos de duração. Os personagens dão muita risada, porque nos bares, depois de alguma cachaça, costuma-se rir. Os homens dançam daquele jeito grego, em um semi-círculo, um segurando o ombros do outros, mas vê-se que na verdade são demonstrações de alegria um tanto forçada, como que uma tentativa de esquecer as privações, a dureza da vida.
O tom de Stella é triste, e o espectador pode perceber desde cedo que haverá uma tragédia.
Iniciante, jovem (estava com 33 anos quando Stella foi lançado), Cacoyannis abre seu filme com um criativol, uma sacada formal. Vemos um homem que caminha por ruas pobres à noite, e ele passa por cartazes pregados nos muros das casas – nos cartazes vão aparecendo os créditos iniciais.
Stella é bela, gostosa, canta com voz sensual e mexe bem os quadris generosos
O homem que caminha à noite chega a um bar de nome bastante óbvio – Paradise. O homem, Alekos (Alekos Alexandrakis), veste terno e gravata no meio daquele ambiente de pobreza de periferia de grande cidade. A gravata é um indício de que Alekos é um homem de família rica, ou no mínimo muito mais rica do que todos os artistas e frequentadores do Paradise. (Não se explicará de onde vem a riqueza da família de Alekos, nem o que ele faz na vida, além de frequentar o Paradise. Não interessa.)
O Paradise está muito longe de ser um paraíso. Rola ali uma grande ciumeira. A jovem e bela Anetta (Voula Zouboulaki), que também canta no bar, tem ciúme e inveja de Stella (o personagem de Melina Mercouri). Não só porque Stella é a grande estrela do lugar, a mulher bela, gostosa, que canta com voz rouca e sensual, e dança mexendo os quadris generosos como se fosse passista de escola de samba carioca, mas também porque gostaria de ser ela, Anetta, a eleita do rico Alekos.
Alekos, naturalmente, só tem olhos para Stella.
Anetta diz para ele, já na primeira seqüência no bar Paradise, que Stella é inconstante, uma devoradora de homens que já quebrou uma longa lista de corações.
Alekos, naturalmente, não dá ouvidos a Anetta.
Mas a ciumenta Anetta estava certa.
Alekos está profundamente apaixonado por Stella; gostaria de casar com ela – mas Stella não é mulher de se casar, nem mesmo com um homem rico. Preza, acima de tudo, sua liberdade.
E não vai demorar muito para se apaixonar por outro homem – Miltos (Giorgos Foundas), bonitão, ele também um conquistador, jogador de futebol, admirado por homens pela maestria com a bola e pelas mulheres pela fina estampa.
Está preparado o cenário que terá não uma, mas duas tragédias.
Os atores interpretam algumas oitavas acima do que seria natural
Cacoyannis faz seus atores interpretarem algumas oitavas acima do que seria natural. Os gestos são todos exagerados, as vozes são sempre altas. É como se os atores estivessem interpretando num grande anfiteatro grego, e precisassem exagerar para que seus gestos, posturas, expressões, vozes fossem perfeitamente percebidos nas últimas e distantes fileiras de assentos na pedra.
Algo próximo do que fazem, por exemplo, os atores dos dramas de mestre Akira Kurosawa.
Esse estilo de interpretação pode incomodar os espectadores, ou ao menos parte deles. Confessou que me incomodou.
Mas as qualidades do filme acabam por soterrar esse incômodo com o over-acting.
E é muito impressionante, fascinante, como Stella, feito num país machista, em 1955, antes das conquistas do feminismo a partir dos anos 1960, mostra aquela protagonista livre, que não se deixa dominar pelos homens, que recusa com firmeza a idéia de se casar, de ser de um homem só.
Na França e no Brasil, os exibidores acrescentaram badulaques ao título original Stella. Na França, o filme se chamou Stella, Femme Libre. No Brasil, Stella, a Mulher de Todos. A mulher de todos é apelativo, sensacionalista. Mulher Livre é uma descrição bastante mais acurada.
Não há como não ver que Stella, a personagem, com aquela imensa vitalidade, aquela energia, aquela determinação de ser dona do próprio destino, tem bastante a ver com Ilya, a protagonista do maior sucesso internacional de Melina Mercouri, Nunca aos Domingos, uma prostituta feliz e irredutível.
“Nascer grega”, diz Melina Mercouri, “é ser magnificamente amaldiçoada”
Consta que o personagem Stella foi criado especialmente para Melina Mercouri.
Maria Amalia Mercouris nasceu em Atenas, em 1920. Ou teria sido em 1923? Ou 1925? A Wikipedia e o IMDb dão 1920; o Cinemania dá 1923; o livro The International Dictionary of Films and Filmakers – Actors & Actresses traz 1925.
Seja como for, ela estudou na Academia Nacional de Teatro da capital grega, e começou a atuar nos palcos em 1946; trabalhou em peças modernas, algumas assinadas pelos famosos dramaturgos americanos Eugene O’Neill e Tennessee Williams.
Depois de se firmar como uma grande estrela internacional, da estatura de uma Joan Crawford, Sophia Loren ou Anna Magnani, como diz o Baseline, Melina Mercouri teria participação ativa na vida política grega, como opositora da ditadura dos coronéis. Expulsa de seu país em 1967 pelos ditadores, voltaria em 1974 e, três anos mais tarde, seria eleita para o Parlamento grego pelo Partido Socialista.
Em 1971, publicou sua autobiografia, com um título tão forte quanto o do bar em que canta em Stella: Nasci Grega.
Diz dela o belo livro Actors & Actresses:
“’Nascer grega’, escreveu Melina Mercouri, ‘é ser magnificamente amaldiçoada’. A afirmação condiz com seu caráter; como suas atuações, é desassombradamente maior que a vida, e sua proximidade com a verdade literal não vem ao caso. Como atriz, Mercouri é um fenômeno; e objetar que ela over-act é semelhante a dizer que o Parthenon daria uma sala de estar desconfortável.”
Diz sobre Stella Pauline Kael, a grande-dama da crítica americana que parecia não perder um filme europeu:
“Homens jovens dançam em fila à luz do sol, e um homem solene, solitário, dança em frente de uma quase metálica orquestra bouzoukia. As ruas e bistrôs de Atenas são muito mais memoráveis do que a história desse filme grego cru, vigoroso, escrito e dirigido por Michael Cacoyannis. A história é bastante parecida com um cruzamento de A Dama das Camélias com Carmen – um melodrama sobrecarregado a respeito de uma fogosa jovem mulher (a leonina Melina Mercouri) e sua determinação de ser emocionalmente independente de seus amantes. (…) Este filme não tem a graça da obra posterior de Cacoyannis, o mais sutil A Mulher de Negro (To koritsi me ta mavra, de 1956), mas é um triunfo do temperamento.”
O Guide des Films de Jean Tulard diz: “Este poderia ser um melodrama sórdido como o cinema mediterrâneo muitas vezes aprecia. Graças à direção despojada de Cacoyannis, graças à beleza selvagem de Melina Mercouri, o filme se eleva à estatura de um drama trágico.”
Mas eu acrescentaria que o filme cresce também graças à música de Manos Hadjidakis.
A música do mestre Hadjidakis permeia todo o filme. Há diversas canções apresentadas no bar Paradise, cantadas por Melina Mercouri, por outras atrizes, e interpretadas pela orquestra que toca lá. São melodias maravilhosas, esplêndidas, com letras apaixonadas, dilaceradas, como as do mais melodramático tango argentino.
Então, voltando ao início: um filme de Cacoyannis, com Melina Mercouri e música de Hadjidakis tem que ser respeitado.
Anotação em abril de 2013
Stella, a Mulher de Todos/Stella
De Michael Cacoyannis, Grécia, 1955
Com Melina Mercouri (Stella),
e Giorgos Foundas (Miltos), Alekos Alexandrakis (Alekos), Voula Zouboulaki (Anetta), Sofia Vempo (Maria), Dionysis Papagiannopoulos (Mitsos), Hristina Kalogerikou (a mãe de Miltos), Kostas Karalis (Antonis), Tasso Kavadia (a irmã de Aleko)
Música Manos Hadjidakis
Roteiro Michael Cacoyannis
Baseado em peça de Iakovos Kabanellis
Fotografia Kostas Theodoridis
Música Manos Hatzidakis
Montagem Giorgos Tsaoulis
Produção Millas Film. DVD Lume Filmes.
P&B, 94 min
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Título na França: Stella, Femme Libre.
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